A polícia do Rio de Janeiro anda atrás de um tipo raro nas delegacias, mas muito conhecido na fauna carioca: o “trafica de condomínio”. Pródiga em fazer batidas nos morros, onde a população mais pobre é refém de comandos de bandidos, a polícia fluminense decidiu nas últimas semanas sair do circuito favela para buscar traficantes em condomínios e bairros charmosos da zona sul e na Barra da Tijuca. Na sexta-feira 16, policiais apreenderam em uma casa no condomínio Nova Ipanema, na Barra, cocaína, maconha, skank, comprimidos de ecstasy e balança de precisão. De quebra, acharam passagens aéreas para cidades como Amsterdã e Frankfurt. Investigado por tráfico internacional, o dono das drogas, o estudante Yan Corte, 19 anos, que vive com os avós, está foragido. No sábado 17, o músico Breno Gradel Ferreira, 30 anos, filho de uma família de classe média da Gávea, na zona sul, foi preso por traficar comprimidos de ecstasy. A polícia da governadora Benedita da Silva (PT) anuncia para breve novas prisões nesse mundinho fechado e protegido. Traficantes de outros dois condomínios, na Barra da Tijuca e no Recreio dos Bandeirantes, estão sendo investigados por distribuir drogas em boates e em festas rave no Rio e em São Paulo. Os “traficantes do asfalto” caçados pela polícia têm em comum a origem na classe média e o atendimento por telefone, o serviço apelidado de teledroga.

“Cada moleque desses que prendemos nós comemoramos como se fosse um chefão do morro”, exagera Marina Maggessi, inspetora-chefe do Serviço de Investigações da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) da Polícia Civil. Para ela, é preciso mostrar que não é só pobre que é preso por tráfico. “Não é o traficante do morro que serve as festas e boates frequentadas pela elite carioca. É o garotão de condomínio que transforma sua casa em um ponto de venda”, explica o delegado José Renato Torres, titular da 16ª DP, a delegacia da Barra. A verdade é que pescar filhotes do tráfico em condomínios fechados do Rio é coisa rara. Tubarões, mais ainda. A polícia sabe que em grandes condomínios de bairros como a Barra da Tijuca há traficantes que compram droga na Rocinha, maior favela da América Latina, com quase 200 mil habitantes, encravada num morro entre o Leblon e São Conrado, vizinho à Barra. As drogas são compradas no largo do Boiadeiro e entregues aos “traficantes do asfalto” de duas formas: venda pura e simples ou consignação. No segundo caso, os traficantes levam as drogas para seus condomínios, vendem o que conseguem e à noite voltam ao morro para acertar as contas. Um papelote de cocaína, com dez gramas da droga, comprada por R$ 10 na Rocinha, é vendido por R$ 50 na Barra. A favela é controlada pelo Comando Vermelho.

Delivery – “Vender drogas entre os amigos não pode ser visto como o bico de um garotão. É parte da engrenagem do tráfico, muitas vezes com ramificações internacionais”, afirma o delegado Torres. Yan Corte fazia viagens mensais para a Europa, segundo a polícia, levando maconha para trocar por comprimidos de ecstasy. Um frasco com 12 comprimidos da droga preferida nas raves é vendido por R$ 560, e o preço unitário varia de R$ 35 a R$ 50. O músico Breno Gradel Ferreira também traficava ecstasy, além de haxixe, maconha e ácido MDMA-4 (metilenedioximetanfetamina, princípio ativo de uma anfetamina usada para produzir o chamado brazilian ecstasy). A polícia apreendeu uma agenda com 100 nomes de consumidores, do Rio e de São Paulo, que usam o chamado delivery (encomenda por telefone).

Segundo a polícia, o envolvimento de filhos de famílias de classe média alta com o tráfico de drogas aumenta a cada dia no Rio. “A ação policial tem um aspecto educativo importante. A classe média, que todo dia reclama da violência e consome drogas em casa, precisa começar a olhar para o próprio umbigo”, diz o ex-procurador de Justiça José Carlos Biscaia. No caso do estudante Yan, as investigações começaram depois da denúncia do pai de um usuário. Mas a maioria chega por telefonemas anônimos ao disque-denúncia (21-2253-1177). Até quem defende a descriminalização das drogas, como o deputado federal Fernando Gabeira (PT), elogia a “repressão inteligente” da polícia. “Se é para prender, não podem discriminar classe social”, defende Gabeira. Ninguém sabe se as incertas nas “bocas de fumo cinco estrelas”, como são chamadas pela polícia, vão continuar. Mas já estão assustando muita gente.

A experiência

Quando se mudou para o Rio de Janeiro, a jornalista inglesa Gabriella Gamini, correspondente do jornal londrino The Times, certamente sabia que estaria sujeita a fazer algumas reportagens sobre o domínio dos traficantes de drogas nos morros da cidade. Não imaginava, no entanto, que ao escolher a casa em que iria morar, no bairro de Cosme Velho, na zona sul, passaria a testemunhar o poder dos bandidos não por condição profissional, mas como vítima da violência. Logo na chegada de Gabriella, os traficantes picharam em seu portão a advertência “Os chefões das drogas governam aqui. Os delatores serão mortos”, como uma espécie de cartão de visitas. Daí para a frente, a repórter começou a tomar conhecimento do universo marginal. Chegou a se encontrar com o chefão do tráfico no morro do Cerro Corá – um jovem de 19 anos – e foi apresentada por ele às benfeitorias que fez para conquistar a comunidade, como uma creche, um campo de futebol e uma padaria que cobra preços populares.

A experiência de Gabriella se transformou em um artigo publicado na quarta-feira 21 e distribuído para vários veículos de todo o mundo. Procurada por ISTOÉ, ela disse que foi orientada pela direção do jornal a não dar entrevista sobre o assunto por motivo de segurança – Gabriella é casada, tem um filho e continua morando no local. Em pouco tempo, notou que, se seguisse o código ditado pelos traficantes, poderia desfrutar de uma relativa segurança, como acontece com qualquer habitante de uma favela carioca. “Só viramos alvo quando saímos de nosso território”, diz no artigo.

Polícia mata mais

 

O mesmo governo que está entrando nos condomínios de classe média para combater o tráfico anda batendo recorde de morte de bandidos. Em meio à queda geral em julho do número de crimes violentos no Estado – homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal e estupro –, cresceram os chamados autos de resistência, de pessoas mortas supostamente em confronto com a polícia. Foram 73 casos em julho, contra 58 em junho. Do outro lado da trincheira, o índice de mortes é menor: em junho, oito PMs morreram em serviço. Em julho, o índice caiu para três. O chefe de Polícia Civil, Zaqueu Teixeira, nega que a polícia tenha se tornado mais violenta.

Desde a morte do jornalista Tim Lopes pelo bando de Elias Maluco, em junho passado, cinco traficantes ligados a ele morreram. Há três semanas, o traficante Maurício Lima Matias, o Boizinho, 28 anos, e Ricardo Vitor dos Santos, o Cuco, 31 anos, morreram em tiroteio com policiais na favela de Vigário Geral. Mais suspeita foi a morte de André da Cruz Barbosa, o André Capeta, baleado na cabeça no dia 12 de agosto na entrada da Vila Cruzeiro. A polícia está investigando a hipótese de suicídio. No último dia 15, Flávio Reginaldo dos Santos, 31 anos, o Buda, gerente de Elias Maluco, foi morto na Favela do Jacarezinho. Na noite de terça-feira 20, policiais militares mataram Waldir Ferreira, o Vado, e Rodrigo Cláudio de Moraes Silva. Vado foi grampeado conversando amavelmente sobre drogas e armas com o cantor Marcelo Pires Vieira, o Belo. Em todos os casos, a polícia diz que os traficantes foram mortos em troca de tiros.

A cada nova morte, o tráfico impõe o fechamento do comércio em bairros da zona norte. Nos últimos dias, ordenou o fechamento do comércio na praça Saens Peña (Tijuca) e no Cachambi. Neste último, até escolas tiveram de suspender as aulas. Depois de ser velado por dezenas de pessoas na madrugada, Vado foi sepultado na quinta-feira 22 no cemitério São João Batista, em Botafogo, zona sul. Tudo filmado pela polícia. Jornalistas que registravam o sepultamento foram hostilizados e um cinegrafista de uma rede de TV foi apedrejado.

O trauma pela morte de Tim Lopes também voltou a rondar a Rede Globo. Na quinta-feira 22, a empresa divulgou um comunicado informando o desaparecimento desde sexta-feira 16 de agosto do editor Carlos Alberto de Carvalho, vítima de dois sequestros anteriores. Em outubro passado, Carvalho afirmou ter sido levado para a Rocinha, onde bandidos queriam detalhes da reportagem Feirão das Drogas, de Tim Lopes. A polícia está tentando descobrir o paradeiro do jornalista.