Como os caçadores que desbravaram o Pacífico no começo do século XIX, o catarinense Cedolino Alexandre Matos fez dezenas de incursões marítimas em pequenos baleeiros de madeira. Na tripulação de seis homens, liderada pelo comandante e pelo arpoador, Cedolino era um dos quatros remadores. Em 1956, o troféu de uma dessas caçadas no mar foi exibido ao primeiro fotógrafo da cidade de Imbituba (SC), João Hipólito. Quase meio século depois, aos 82 anos, Cedolino é o único sobrevivente do registro histórico. “Hoje gosto mesmo é de ficar vendo as baleias brincarem no mar”, compara. “Elas transmitem tranquilidade.” Depois de passarem séculos à mercê dos arpoadores, as baleias estiveram à beira da extinção nos anos 70, mas, agora, quando chegam da Antártica para se acasalar e cuidar dos filhotes, recebem tratamento de primeira classe. Em contrapartida, com seu balé aquático, oferecem um espetáculo de rara beleza. Sua importância é tamanha que a Comissão de Constituição e Justiça do Senado acaba de votar um projeto adotando uma das espécies, a baleia-franca, como símbolo nacional do ecoturismo.

Nos tempos coloniais, baleias de variadas espécies singravam os mares do litoral brasileiro. Sempre estiveram na mira dos arpoadores, em especial a baleia-franca, conhecida por ser lenta e nadar rente à costa, o que aumenta sua vulnerabilidade. Numa época em que seu óleo iluminava os lampiões das cidades e servia como liga na argamassa das construções, a baleia era vista apenas como abundante fonte de renda. Depois de atingi-la com arpões e lanças, os antigos baleeiros a rebocavam até a praia, onde sua espessa capa de gordura era arrancada, retalhada e fervida para a obtenção do óleo. As barbatanas viravam espartilhos femininos. As caçadas, praticadas até por barcos estrangeiros, à revelia da coroa portuguesa, foram duramente criticadas, ainda em 1790, por José Bonifácio de Andrada e Silva, o patriarca da Independência. “Deve certo merecer também grande contemplação a perniciosa prática de matarem os filhotes de baleia, para assim arpoarem as mães com maior facilidade”, reclamou José Bonifácio nos anais da Academia Real de Ciências de Lisboa.

No litoral catarinense, as primeiras armações – como são chamadas as bases de caça à baleia – surgiram em 1740. Uma das principais, instalada na praia do Porto, em Imbituba, era originalmente uma construção de pedra e funcionava à base de trabalho escravo. Da versão mais recente, em madeira, que o remador Cedolino conheceu no cotidiano, ainda restam duas caldeiras e uma imensa chaminé. Quando entravam em atividade, o cheiro de gordura impregnava a cidade. Imbituba tinha apenas três grupos de caça, mas processava todas as baleias capturadas na região. Para lá foi muita caça alvejada pelo arpoador Rubens Alexandrino, da cidade vizinha de Garopaba, referência entre seus contemporâneos como o homem que, em 1968, caçou a maior baleia já vista naquelas paragens. Era uma franca, com 23 metros de comprimento – a espécie costuma alcançar, no máximo, 18 metros –, e rendeu 32,4 mil litros de óleo. Só a língua dessa baleia pesava mais de sete toneladas.

Agora com 73 anos, Rubens recorda que foram precisos cinco dias para retalhar a gordura da baleiona. Outro episódio, no entanto, marcou mais profundamente sua carreira como caçador, começada quando o arpão era lançado junto com dinamite e encerrada depois que o canhão foi incorporado ao arsenal dos baleeiros. Sem entrar em detalhes, o antigo arpoador confidencia que ainda se lembra dos gemidos de um filhote. “Matamos a baleia, o baleote começou a gemer e não parou mais. Parecia uma criança”, conta. “Durante muito tempo, por mais que eu tentasse esquecer, o choro do baleote órfão voltava na minha cabeça.”

Pelo relato dos remanescentes, os filhotes de baleia costumavam ser preservados na região, ao contrário do que acontecia nos tempos de José Bonifácio. Homem do mar e espécie de gerente da antiga armação, Manoel Rosa, 78 anos, também lembra que a caça não rendia muito dinheiro aos pescadores. “Para ganhar uns trocados a mais, eles ajudavam a retalhar a gordura”, conta. O trabalho era, no mínimo, desagradável. “Por mais que a gente esfregasse, o cheiro não saía da pele e a roupa usada naquele dia tinha de ser jogada fora”, diz o remador Cedolino. “A gordura entranhava na pele e, semanas depois do serviço, a gente ainda fedia”, reforça o arpoador.

Embora os homens encarregados da parte dura do trabalho não ganhassem muito, a atividade baleeira era altamente lucrativa para os donos das armações. O próprio Manoel Rosa se lembra de uma comissão recebida, em setembro de 1958, pelo gerenciamento da produção e do transporte de óleo até um curtume gaúcho, que usava o produto para preparar couro. Com a comissão, ele pagou o equivalente a um terço do valor de um caminhão Ford zero-quilômetro. A caça à baleia, interditada por acordos internacionais desde os anos 30, foi mantida na região, de forma artesanal, até 1973. Na época, a baleia-franca já estava em processo de extinção. Apesar do alerta da natureza, uma empresa nipônica instalada desde 1910 na Paraíba continuou matando baleias-minke aos milhares, até 1987, quando uma lei federal proibiu a caça no País.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

Contemplação – Atualmente empenhado na criação de um santuário para baleias no Atlântico Sul (ver mapa), o almirante Ibsen de Gusmão Câmara esteve entre os mais atuantes defensores da interdição da caça. Seis anos antes da promulgação da lei, ele recebera relatos de avistagens esparsas de baleia-franca no litoral sul do Brasil. “Como existia uma população importante na pensínsula Valdés, na Argentina, fiquei intrigado com a informação”, lembra o almirante. Pouco depois, ao participar de um congresso internacional sobre meio ambiente, conseguiu uma pequena verba para pesquisar o assunto. Daí começou o Projeto Baleia Franca, que acaba de completar duas décadas monitorando o ressurgimento do animal e estimulando sua preservação. “Nos meses de verão, as baleias-franca se alimentam nas regiões polares, onde há abundância de comida, e, nos meses de inverno, migram para áreas mais quentes”, comenta o almirante. Assim, de julho a novembro, é fácil encontrar baleias nadando ao lado de seus filhotes ao longo dos 130 quilômetros da área de reserva delimitada no litoral catarinense, de Laguna a Florianópolis.

Outras espécies, como a jubarte, outrora perseguida no litoral baiano, também se exibem pela costa, em especial no entorno do arquipélago de Abrolhos (leia quadro). Em Imbituba, basta caminhar pelas praias para apreciar o espetáculo. A apenas 100 metros da praia da Vila, no alto do Silvestre Praia Hotel, o Projeto Baleia Franca instalou um de seus oito pontos de observação. Nele fica a estudante de biologia Audrey Amorim Côrrea, 17 anos. “Desde pequena, meu pai me trazia à praia para ver baleia”, conta. “Agora, toda a família está orgulhosa, vibrando com meu estágio.” Na cidade portuária, atividades em torno da baleia estão em alta. Em todas as escolas, o tema é debatido com frequência, como relata o estudante Bruno Mello, 14 anos. Embora esteja habituado a navegar com o tio, o pescador Luiz Paulo Sabino, Bruno vibra cada vez que se depara com uma baleia. “Ela é tão linda que nem acredito que tiveram coragem de matar”, comenta. Para que o passado seja compreendido, a prefeitura e um grupo de empresários estão transformando os resquícios da antiga armação em museu, a ser inaugurado mês que vem. É quando acontece a VI Semana da Baleia, que, entre muitas atividades, terá uma gincana. “A principal tarefa será coletar documentos e objetos baleeiros para o acervo do museu”, adianta Evaldo Marcos, da New Millennium, empresa que organiza a festa.

Como os baianos da região de Abrolhos, os catarinenses há muito investem na nova indústria da baleia, voltada para a contemplação. Estima-se que, todo ano, um milhão de pessoas viajem para observar baleias em 87 países, movimentando cerca de US$ 1 bilhão. Não é à toa que o senador Cacildo Maldaner (PMDB-SC), atendendo à sugestão da ong Instituto Baleia Franca, também baseada em Imbituba, preparou o projeto de lei transformando a baleia-franca em símbolo nacional. Nas águas por onde circulam, as baleias só incomodam quando arrastam as redes dos pescadores. Antigo caçador, Valmiro Agostinho do Nascimento, 54 anos, minimiza o prejuízo. “Elas só levam um pedaço do tamanho delas”, diz. “Quando acontece, é só emendar a rede”, conta. No leme de sua escuna, a Lendário, Valmiro, que cresceu convivendo com a matança, mais parece um conservacionista de primeira hora. Sinal dos tempos.

Jubarte à vista

Uma baleia viva gera mais recursos do que morta. Essa é a filosofia da nova modalidade de turismo que começa a ser explorada no Brasil. O Whale Watching – turismo de observação de baleia – é praticado na costa de Santa Catarina, no arquipélago de Abrolhos e no litoral norte da Bahia. Nos dois últimos destinos, entre julho e novembro, reina soberana a baleia jubarte. Desde 1995, pescadores começaram a perceber a presença da espécie ao largo da praia do Forte, a 50 quilômetros de Salvador. Cinco anos depois, foi instalada ali uma base do Projeto Baleia Jubarte. Criada há 14 anos em Abrolhos, a Ong fornece suporte técnico e operacional para que os turistas possam ver os famosos cetáceos. Mas, antes de embarcar, é preciso seguir algumas determinações, que valem para toda a orla brasileira. Tem que ser respeitada a distância mínima de 100 metros entre o animal e o barco com motor ligado. É proibido perseguir as baleias, assim como alimentá-las e, sonho de todo ecoturista, nadar em sua companhia. Seguidas as regras, é só esperar o show começar. No repertório estão saltos, batidas com as nadadeiras, esguichos e o inesquecível mergulho. Com sorte, é possível até ouvir o doce e melancólico canto das jubartes, não por acaso também chamada de cantoras.

Chico Silva
 


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias