Em O mito de Sísifo, ensaio em que o escritor e filósofo franco-argelino Albert Camus (1913-1960) aborda o tema do absurdo, ele diz que o suicídio era o “único problema filosoficamente sério”. No julgamento se a vida vale ou não a pena, Camus nem imaginava que um dia haveria uma realidade como a dos homens-bomba, a mais recente ameaça trazida pela guerra no Iraque. De acordo com o governo iraquiano, eles passam de quatro mil homens e vêm de várias nações muçulmanas. Número bastante discutível, mas o certo é que os “voluntários do suicídio”, oriundos de países árabes como o Iêmen, o Egito, a Argélia e a Síria, assustaram a coalizão anglo-americana com o atentado que aconteceu no sábado 29 de março e matou ao menos quatro soldados americanos.

A partir desse dia, qualquer civil iraquiano tornou-se um inimigo em potencial, até que seja provado o contrário e por todo o Iraque, as tropas americanas e britânicas realizam rigorosas inspeções. O perigo agora pode realmente vir de qualquer direção. O atentado suicida também aniquilou a tese do Pentágono de que a maioria xiita, descontente com o governo de Saddam, apóia a invasão estrangeira para “libertar os iraquianos”. O autor do ataque, o sargento Ali Hammadi Al- Nomani, era muçulmano xiita, um soldado que lutou na guerra Irã–Iraque (1980-88) e ainda foi voluntário combatente da primeira guerra do Golfo (1991). Al-Nomani, que se fez passar por um taxista, jogou seu carro contra fuzileiros navais americanos em um posto de controle em Najaf. Ele recebeu uma condecoração póstuma de Saddam Hussein, chamada de “Mãe de Todas as Batalhas”. Além da medalha, a viúva e os cinco filhos teriam recebido do regime US$ 34 mil, uma verdadeira fortuna no Iraque.

É difícil confirmar se a família de Al-Nomani embolsou esta soma e se há realmente uma campanha de Saddam para arregimentar homens-bomba nesta guerra que de limpa não tem nada. Se Saddam Hussein tentou se distanciar da imagem do terrorista saudita Osama Bin Laden, hoje ele vê vantagens em conclamar o terror e capitaliza o antiamericanismo que varre a região do Oriente Médio como uma arma para abater a coalizão anglo-americana. Bagdá apela para que os muçulmanos esqueçam as diferenças e venham derrubar o inimigo comum. Logo depois do atentado, o vice-presidente iraquiano, Taha Yassin Ramadan, previu que “outros ataques virão, como parte da força de resistência”. O porta-voz do Exército do Iraque, general Hazem al-Rawi, reforçou a invocação a outros voluntários a camicases de Saddam, afirmando que as “operações de martírio não deverão se limitar aos iraquianos” e “todos os muçulmanos têm dever religioso de ajudar o Iraque”. “Somos um povo islâmico e a jihad (guerra santa) é um dever, uma ordem de Deus”, disse al-Rawi. Depois de “oferecer” um atentado em Israel aos iraquianos, o grupo radical palestino Jihad Islâmica anunciou em um comunicado que enviou um comando de suicidas de seu braço armado, as Brigadas de Al-Quds para o Iraque. Para Murhaf Jouejati, do Centro de Estudos de Oriente Médio de Washington, a maior parte dos suicidas é de palestinos. “Eles vêm de classes baixas. São jovens humildes e alienados. Esta guerra está radicalizando os povos árabes. Mais e mais pessoas estão se tornando radicais islâmicos em busca de soluções para os problemas do Oriente Médio. Ao contrário do que pensa o governo americano, o terrorismo deverá aumentar com a suposta libertação do Iraque. Os Estados Unidos estão sendo vistos como invasores e não como libertadores, como Washington afirma”, disse Jouejati a ISTOÉ.

O rancor dos árabes contra a investida dos americanos e britânicos aumenta na proporção em que são veiculadas pelas tevês árabes como a Al-Jazira e Abu Dubi TV as imagens de crianças mortas, cidades arrasadas e famílias desabrigadas. “Nós não estamos defendendo o Iraque, mas todos os países islâmicos”, afirmou um candidato à morte voluntária, o sírio Abdel Karim Abu Azzam. O presidente Hosni Mubarak profetizou que a guerra dos Estados Unidos contra o Iraque fará surgir “100 novos Bin Ladens”, expressando a posição de líderes da região sobre esta questão.

O Islã condena o suicídio, assim como os países árabes, mas na concepção dos radicais islâmicos tornar-se um suicida é um sinônimo de “martírio”. Tanto a Jihad Islâmica como o também extremista Hamas preparam seus homens para tornarem-se “mártires” desde que são meninos. “Nós ensinamos às crianças que os ataques suicidas são a única forma de amedontrar os israelenses”, afirmou certa vez o líder da Jihad, Mohammed el-Hattab. O pior é que esta arma humana poderá não cessar em um gesto insano de se acabar com o adversário, mas corre-se o risco de a expressão máxima do absurdo virar uma prática banal.