Existem inúmeras cenas fortes e perturbadoras em Cidade de Deus (Brasil, 2002), arrepiante painel sobre o surgimento do narcotráfico nas favelas cariocas, assinado por Fernando Meirelles e co-dirigido por Kátia Lund, que entra em cartaz nacional na sexta-feira 30. Mas uma delas consegue tirar o sono do espectador. É quando um garoto, a mando do diabólico Zé Pequeno (Leandro Firmino da Hora), chefe do tráfico local, se vê obrigado a escolher qual dos outros dois meninos ele deve executar como castigo por terem roubado gente da favela. Diante das crianças emparedadas, o mais velho, apelidado de Filé com Fritas, poupa o que cai em prantos e dispara sua arma no menos assustado. É o mote para o recém-adolescente ser aceito no bando do traficante, no papel de vapor, espécie de boy na gíria do morro. "Que criança? Eu fumo, eu cheiro, já matei e já roubei. Sou sujeito homem", diz ele.

O episódio inominável aconteceu de verdade e é descrito no livro homônimo e autobiográfico do carioca Paulo Lins, publicado em 1997, sobre o qual se baseia o filme. Está entre as passagens que enredaram o diretor Meirelles, 46 anos, conhecido publicitário paulistano, autor do elogiado Domésticas, o filme. "Comecei a ler o romance e não acreditava no absurdo daquilo tudo. As cenas iam aparecendo na minha cabeça. Fechei o livro e liguei imediatamente para o Paulo Lins", lembra. "Disse a ele para me vender os direitos que eu faria um filme. Parei minha profissão, mudei para o Rio, dei um rolê na minha vida." Sua entrega obstinada resultou num petardo de emoção crítica. Depois de 12 tratamentos de roteiro, quatro anos de produção, nove semanas de filmagens e 76 horas gravadas, Cidade de Deus chega às telas como uma das histórias mais impressionantes já feitas sobre o apartheid social no qual se transformou o País.

É daquelas obras que tornam inócuas análises acadêmicas e discussões estéticas, tamanha a urgência do tema. A atualidade flagrante da fita se confirmou na segunda-feira 19, durante a pré-estréia carioca, realizada no New York City Center, na Barra da Tijuca. Entre os presentes estava o traficante Paulo Sérgio Savino Magno, o Pequeno, gerente-geral de venda de drogas na Cidade Alta, em Cordovil, uma das três locações do filme. Na ocasião, Pequeno foi preso por policiais da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE). Em meio a ficção e realidade, a dupla de cineastas pode ser indiciada, caso tenha negociado a autorização das filmagens diretamente com o bandido, braço direito de Mineiro, do Comando Vermelho, por sua vez submetido ao poder de Elias Maluco. Meirelles nega peremptoriamente qualquer envolvimento. "A produção só tratou com as associações de moradores; temos os recibos com tudo discriminado. Com quem as associações falam a gente imagina, mas não sabe."

Realizado a um custo de US$ 3,3 milhões, praticamente saídos do bolso do cineasta, Cidade de Deus já se pagou com as vendas para cerca de 50 países. Nos Estados Unidos, onde será lançado pela Miramax em fevereiro de 2003, conseguiu o aval dos veículos mais influentes. "É violento de forma dramática e impiedosa", diz o jornal The New York Times. "Um nocaute visual e uma metralhadora na edição", qualifica a revista Variety. As frases de efeito fazem sentido. Com uma narrativa ágil e nervosa, Cidade de Deus descreve sem piedade três décadas de transformações pelas quais passou o conjunto habitacional, hoje uma das favelas mais violentas do Rio. Acompanha a trajetória de um grupo de garotos, dos anos 60 aos 80, desde os quase inocentes roubos de caminhões de gás até o nascimento do narcotráfico.

Na primeira parte, mais clássica e embalada por sambas de Cartola, o filme centra-se no chamado Trio Ternura, formado por adolescentes. Aos poucos, a criminalidade vai se tornando menos romântica. É quando a nova geração descobre que vender drogas seria bem mais vantajoso. Registrada em giros nervosos de câmera, a espiral de violência chega ao som de Tim Maia, Cassiano e Luiz Melodia para apresentar a entrada de armas pesadas e a guerra de facções. Cidade de Deus também é uma emocionante crônica do rito de passagem da adolescência para a idade adulta, contada com humor incômodo.

Trunfo – Com o trunfo de ser quase inteiramente interpretado por excelentes atores não profissionais, moradores de diferentes comunidades – a única exceção é o sempre ótimo Matheus Nachtergaele no papel do traficante Sandro Cenoura, que se esforçou para parecer um anônimo –, o elenco soma cerca de dois mil nomes, incluindo os figurantes. O time principal, preparado numa oficina de atores durante seis meses, chega aos 70. Mas quem polariza a história são três figuras: o já citado Zé Pequeno, chefe do tráfico local, Buscapé (Alexandre Rodrigues), que escapa do ciclo de violência ao se tornar repórter-fotográfico, e Mané Galinha (o músico Seu Jorge, criador do grupo Farofa Carioca), ex-cobrador de ônibus que pega nas armas depois de jurar vingança a Zé Pequeno.

Narrado por Buscapé, alter ego do escritor Paulo Lins, Cidade de Deus também pode ser visto como um retrato de Zé Pequeno, espécie de Macbeth do tráfico, cuja sede de poder o leva a eliminar um por um os adversários. O mais determinado é Mané Galinha, que resolve enfrentar o sanguinário traficante depois que ele estuprou sua namorada e chacinou seus familiares. Estas ressonâncias de tragédia clássica misturadas ao formato de thriller policial não desviam a história do seu foco urgente e realista. O incômodo gerado é em grande parte creditado ao elenco, no qual ainda brilham os irmãos Phellipe (o traficante Bené) e Jonathan Haagensen (Cabeleira), moradores do Morro do Vidigal. Qual o segredo de atuação tão convincente? "Foi só não atrapalhá-los", conta Kátia Lund.