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Ottoni: narrativa de aventuras entrecortada por memórias da militância

Na cadeia, enquanto esperava sentar no banco dos réus do primeiro tribunal de pena de morte da ditadura militar, o marxista Ottoni Fernandes Júnior apaixonou-se pelo O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar. Preso entre 1970
e 1976, pareceu ter enxergado no realismo fantástico o paralelo com aqueles anos 60 e 70 em que os anjos tentavam tomar os céus de assalto. Vinte e oito anos depois, escolheu a mesma estrutura do livro do escritor argentino – de capítulos entrecortados pelo passado e pelo presente, que tanto podem ser lidos de trás
para a frente como vice-versa – para relatar um dos períodos mais intensos da história brasileira.

Seu livro, O baú do guerrilheiro (Record, 304 págs., R$ 36,90), pode ser lido como uma história de aventuras ambientada em São Paulo e no Rio de Janeiro, entre 1966 e 1976, entrecortada pelas memórias do guerrilheiro, um militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), ex-estudante de física da USP e atualmente jornalista. Mas ao final o leitor descobrirá que devorou uma análise profunda dos caminhos que levaram alguns dos mais brilhantes jovens daquela geração a pegar em armas e enfrentar a morte, mesmo sabendo que a guerrilha urbana e a rural contra a ditadura militar já estavam liquidadas.

Do alto de seus dois metros, Ottoni desnuda-se no texto. Ora como um molengão de coração mole, ora como um racionalista frio, que salvou sua vida enganando com um truque o implacável torturador e delegado chefe do Dops paulista, Sérgio Fleury. Mas os anos passados entre o fato e o livro permitiram que ele olhasse tudo com o distanciamento do analista político. Como quando se põe a refletir sobre uma tentativa de assalto a banco que resultou na morte do vigilante da agência. “Pensava no fracasso da ação de Ramos e acabei por concluir que o problema era maior, e não apenas azar”, escreve. “O fato concreto, que procurávamos desconhecer, confiantes na pureza e na justiça de nossos ideais e cegos por um voluntarismo juvenil, era que a economia brasileira crescia a taxas de 11% ao ano desde 1968. A classe média, assustada com a repressão, deixava-se seduzir pelas delícias da sociedade de consumo e compunha um mercado consumidor de dez milhões de pessoass que mantinha a economia funcionando a pleno vapor.”

Ottoni, no entanto, não é um polemista. Abatido por estar na cadeia – enquanto seus amigos que deixaram a ALN para formar o Movimento de Libertação Popular (Molipo) eram quase todos mortos ao tentar retornar ao Brasil –, ele não procura atribuir a queda aos fantasmas de infiltração na organização que hoje povoam as mentes dos velhos militantes, a exemplo do ministro José Dirceu. Basta-lhe como explicação o desejo daqueles jovens por um mundo melhor. Lembra, no livro, que os sequestradores do embaixador americano Charles Burke Elbrick foram descobertos graças ao erro de quem ficou encarregado de “limpar” o cárcere e esqueceu no local o casaco de um dos militantes com a etiqueta do alfaiate. Mas não revela o nome desse “companheiro”, o deputado Fernando Gabeira.