A historiadora canadense Margaret MacMillanafirma que líderes mundiais, como George W. Bush,não aprenderam as lições históricas que poderiamevitar tragédias

Quase 90 anos após a Conferência de Paz de Paris de 1919, que pôs fim à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e gerou, entre outros, o Tratado de Versalhes, as decisões tomadas pelos primeiros-ministros David Lloyd George (Grã-Bretanha) e Georges Clemenceau (França) e pelo presidente americano, Woodrow Wilson ainda reverberam no mundo. De maneira esplendorosa e com pitadas de humor inteligente, a historiadora canadense Margaret MacMillan faz em seu livro Paz em Paris – a conferência de Paris e seu mister de encerrar a Grande Guerra (Ed. Nova Fronteira) uma revisão precisa e necessária dos seis meses que traçaram os destinos do mundo e, de certa forma, lançaram as bases da Segunda Guerra Mundial. Das capengas soluções encontradas para os Bálcãs e o Oriente Médio na época, MacMillan encontra o fio condutor que levou aos impasses sangrentos vividos até hoje por aquelas regiões. Bisneta do premiê britânico David Lloyd George, a escritora se distancia da visão anglo-saxônica a respeito de Versalhes para se debruçar sobre os erros cometidos pelos grandes líderes mundiais e as lições ainda não aprendidas, como as de Clemenceau, que dizia: “Ganhar uma guerra é mais fácil do que fazer a paz.” Um desses erros é a falta de percepção de britânicos e franceses para o ressentimento árabe com a criação de um Estado judeu no coração da Palestina. A professora da Universidade de Toronto nota que esses acontecimentos históricos trágicos não ensinaram muita coisa a líderes mundiais contemporâneos, como o presidente George W. Bush, tão messiânico quanto seu antecessor Woodrow Wilson.

 

Margaret Mac Millan

"O presidente Wilson desprezou a opinião dos republicanos. Queria fazer tudo sozinho. Bush
faz o mesmo. O unilateralismo é muito ruim"

"Os EUA não entenderam que é mais fácil ganhar uma guerra do que fazer a paz, como dizia o premiê francês Georges Clemenceau"

ISTOÉ – Chaim Weizmann, que mais tarde seria o primeiro presidente de Israel, defendeu, na Conferência de 1919, uma nação para os judeus na Palestina – então um lugar esquecido do Império Otomano. Onde estão as raízes desse conflito?
Margaret Mac Millan

Acredito que França e Reino Unido agiram como os imperialistas do século XIX. Eles não refletiram sob o ponto de vista dos árabes. Eles não pensavam que os árabes fossem se importar com a criação do Estado de Israel na Palestina, uma terra remota, pequena, tranquila e até então não desenvolvida. Eles acreditavam que ninguém se importaria se os judeus fossem morar lá e não levaram em consideração que os árabes fossem ficar ressentidos com isso. Chaim dizia que árabes e judeus iriam se entender. Poucos o alertaram para a possibilidade de seu projeto dar errado. Os árabes não eram politicamente organizados, a maioria era de trabalhadores rurais; então o raciocínio era o seguinte: eles são camponeses e, portanto, não vão se importar.

ISTOÉ – Pode-se afirmar que hoje os EUA repetem os erros do Império Britânico quando não compreendia o ressentimento dos árabes?
Margaret Mac Millan

Não dá para mudar a história, mas, se não forem compreendidas as causas desse ressentimento árabe, não será possível entender os sentimentos dessa população. É interessante observar que, até a Segunda Guerra Mundial, os EUA não se importavam com o que ocorria no Oriente Médio. E me parece que os americanos agora cometem os mesmos erros que os britânicos fizeram na formação do Iraque. Os americanos foram para a guerra acreditando que o Iraque seria um país fácil de lidar e os iraquianos iriam recebê-los de braços abertos quando chegassem. Os britânicos também pensavam assim. O Reino Unido não via as dificuldades de se criar um Estado, mesmo com todos os conflitos étnicos já existentes entre curdos e xiitas. Em 1919, eram os bolchevistas culpados pelos males do mundo; agora isso se repete com os muçulmanos. Não é bem assim. Existem os moderados e é com eles que devemos tratar os assuntos de paz. Mesmo resolvendo o conflito de Israel, não resolveremos os problemas com o mundo islâmico; não estão aí as raízes desses conflitos. O conflito em Israel é usado pelos fundamentalistas islâmicos. Os EUA têm que promover a democracia no Oriente Médio e negociar com os moderados. O terrorismo, uma ameaça internacional, deve ser combatido com cooperação.

ISTOÉ – Por que os grandes líderes insistem nos mesmos erros de estratégia?
Margaret Mac Millan

O petróleo não é o único interesse de Bush no Iraque. Ele realmente acredita que é capaz de fazer um mundo melhor. O que ele precisa é aprofundar seu conhecimento. Bush não dá ouvidos às pessoas altamente capacitadas sobre o panorama da política mundial. Ele achou que, obtendo apoio para guerra no Iraque, seria suficiente para que o país se tornasse uma democracia, pronta para ingressar no livre mercado. Claro que não é assim tão fácil. Sempre há de se levar em consideração o sentimento da população, como ela enxerga culturalmente o mundo, ainda mais no caso dos iraquianos, que possuem uma visão muito distinta da dos americanos. E os EUA subestimaram essa visão.

ISTOÉ – Na formação do Iraque, os impérios britânico e francês reuniram diferentes etnias em um Estado, como curdos e xiitas. Quais as consequências disso?
Margaret Mac Millan

Antes do nacionalismo, não havia grandes conflitos entre as diferentes populações no Império
Austro-Húngaro e no Império Otomano. Elas conviviam
sem grandes conflitos entre si. Porém, quando grupos étnicos não se aceitam em um mesmo território, o quadro se complica. Não culpo o Ocidente pela existência desses conflitos. Na Conferência de Paris de 1919, uma nova ordem mundial surgia como um assunto espinhoso a ser lidado. Ao determinar as novas fronteiras na Europa Central, inevitavelmente algumas etnias não estariam todas em um mesmo Estado. No caso da Bósnia, por exemplo, foi no momento em que as lideranças sérvias quiseram criar seu próprio Estado que a situação se complicou. Esses separatistas não aceitam ninguém em seu território que não pertença à etnia deles. Esse tipo de postura de exclusão é que leva aos genocídios, às migrações em massa. O nacionalismo étnico é uma força irracional que não aceita acordos, uma força destrutiva. Foi o que assistimos com a ex-Iugoslávia quando os sérvios decidiram que queriam criar seu Estado.

ISTOÉ – Como a sra. analisa o crescimento do fundamentalismo islâmico?
Margaret Mac Millan

Quanto ao fundamentalismo islâmico, ele não trata dos anseios
das etnias, mas resume-se a uma visão muito estreita e particular da religião. Os islamitas, como eles se autoproclamam, estão usando a religião para justificar a opressão. Dessa forma, eles vêm transformando o islamismo em algo opressor. Esse não é o Islã. Os fundamentalistas usam o Corão para justificar sua visão de mundo. Veja o que o Taleban fez no Afeganistão: uma sociedade fascista. Os radicais estão pervertendo o Islã, que sempre foi uma religião de inclusão.

ISTOÉ – Essa visão restrita do fundamentalismo ganha força quando se tem um inimigo em comum – como, por exemplo, o premiê Ariel Sharon para os palestinos? A organização Fatah, de Yasser Arafat, era secular e uniu-se aos radicais religiosos do Hamas depois da morte de seu líder.
Margaret Mac Millan

É isso mesmo. O Fatah sempre foi secular e com métodos distintos do Hamas, que é uma organização religiosa. O que Sharon está fazendo com suas ações é unir essas distintas organizações. O próprio Conselho Nacional da Autoridade Palestina agrega diferentes visões. É o Hamas que tem um olhar restrito sobre a situação.

ISTOÉ – Por que boa parte dos árabes vê os americanos como inimigos?
Margaret Mac Millan

Na Conferência de Paz em 1919, França e Reino Unido tinham posições similares sobre a necessidade de se criar um Estado para os judeus na Palestina. Segundo a visão árabe, o que aconteceu no final da Primeira Guerra Mundial foi que os britânicos e franceses traíram os palestinos porque prometeram a independência a eles e ela não aconteceu. Paralelamente a isso, essas lideranças ocidentais estabeleceram um Estado judeu. Então, os árabes se sentiram duplamente traídos pelo Ocidente. Quando esses poderes, francês e britânico, perdem suas forças e os EUA passam a substituí-los, os americanos herdam o ressentimento dos árabes. Durante séculos – do Império Otomano, passando pelos franceses, britânicos, russos e agora os americanos –, o Oriente Médio sempre esteve sob o controle de uma potência estrangeira. Daí a origem desse ressentimento.

ISTOÉ – A sra. diz que muito dos dilemas da Conferência de Paz de 1919, como o Iraque versus o Ocidente, a Europa versus os Estados Unidos e o Japão versus a China, são atuais. Por favor, explique.
Margaret Mac Millan

Ao analisar os bastidores da Conferência de 1919, percebi que muitos dos problemas ali discutidos ainda não encontraram suas soluções e por isso as temáticas serem tão atuais, como os impasses entre
Japão e China e EUA e Europa. Claro que houve
mudanças no mundo desde 1919. Os grandes impérios se foram e hoje os países se relacionam melhor entre si. E a distância entre as nações foi diminuída através da tecnologia. Além disso, a Alemanha hoje integra a União Européia e não é mais um inimigo. Mas o Iraque, por exemplo, é um assunto em pauta desde então. Discutimos os mesmos problemas, como a importância da manutenção de uma organização internacional para o equilíbrio mundial; em 1919 foi a Liga das Nações e hoje é a ONU.

ISTOÉ – Depois dos atentados em Madri, alguns americanos sustentaram que só agora os europeus vão compreender o que foi o 11 de setembro. As percepções entre americanos e europeus não mudaram desde 1919?
Margaret Mac Millan

 Há um oceano, o Atlântico, que separa Europa e EUA. Os americanos ainda vêem os europeus atados às velhas maneiras, fala-se na Europa como o Velho Continente. Em 1919, o sentimento era o mesmo. Quando os americanos chegaram em Paris, diziam que iriam mostrar aos europeus como fazer as
coisas. Esse sentimento ainda está aí. É uma relação bastante complicada.
Os EUA se dizem conscientes de uma nova sociedade e, apesar de muitas
das idéias americanas serem originárias da Europa, os americanos olham
com desconfiança para a fala dos europeus. Em contrapartida, os europeus
acusam os EUA de serem poderosos, mas de não saberem usar esse poder.
Esses discursos já existiam em 1919.

ISTOÉ – A sra. diz que um dos erros cometidos pelo presidente americano democrata Woodrow Wilson na Conferência de Paris foi o de não ter levado em conta a opinião dos republicanos. Esta visão se repete com o presidente americano George W. Bush quando ele menospreza outras opiniões?
Margaret Mac Millan

Esse é um ponto bastante interessante, porque Bush fez dessa visão unilateral uma grande questão. Um pouco antes das eleições americanas para o Congresso, antes de embarcar para Paris, o presidente Wilson desprezou a opinião dos republicanos porque acreditava que poderia fazer tudo sozinho. E Bush hoje faz o mesmo ao dizer que qualquer um que questione suas posições está errado e não deve ser considerado um bom cidadão americano. Seu posicionamento unilateral não é apenas perante o mundo, mas também dentro dos Estados Unidos. E Wilson fez isso. O unilateralismo é muito ruim. Porque quando você é a grande potência, tem que tentar fazer coalizões e acordos com os diversos segmentos das populações. O presidente Bush está cometendo os mesmos erros de Wilson. Desta forma, não será entendido nem no seu país nem na esfera da política externa.

ISTOÉ – Mas mesmo com as críticas sobre sua política externa, Bush tem boas chances de ser reeleito.
Margaret Mac Millan

Acabei de vir da Flórida, um Estado republicano, onde os eleitores estão preocupados com o andar da economia. A maior parte dos eleitores também não acredita que havia armas de destruição em massa no Iraque (justificativa de Washington para a invasão). E isso pode pesar na votação, se eles se sentirem enganados. Outro fator importante para a reeleição de Bush é a rapidez com que os americanos venham a deixar o Iraque. Quanto maior o número de soldados americanos mortos nessa guerra, mais crítico será o eleitorado. A opinião do eleitorado no momento está volátil.

ISTOÉ – Um dos pontos de sua revisão histórica é quanto ao Tratado de Versalhes (1919) e à ascensão do nazismo como consequência das rígidas punições à derrotada Alemanha. Por que o interesse pelo assunto?
Margaret Mac Millan

Nem tudo foi ruim na Alemanha e nem tudo era culpa dos resultados do Tratado de Versalhes. Descobri que o governo alemão daqueles dias foi também bastante responsável pelos erros cometidos. Os aliados acreditavam na época que a melhor coisa a ser feita em relação à Alemanha era a reconstrução. Mas, para a opinião pública, isso teria sido muito ruim, porque ela acreditava que a Alemanha é quem deveria pagar as contas da guerra. Apesar de ser essa a solução mais difícil, talvez tivesse sido melhor se não fosse requisitada a reparação. Os aliados deveriam dizer: “Não queremos a reparação, mas vocês serão punidos.” A melhor ação seria trazer a democracia para a Alemanha.

ISTOÉ – Em 1919, uma das célebres frases do primeiro-ministro da França, Georges Clemenceau, é de que é mais fácil ganhar a guerra do que fazer a paz. Os EUA entenderam isso?
Margaret Mac Millan

Não. Ganhar a guerra do Iraque foi relativamente fácil para os americanos. As dificuldades vieram quando a guerra acabou. Porque construir sociedades, estabelecer a paz e a infra-estrutura de um país leva tempo. E, frequentemente, quando as guerras terminam, os aliados se dispersam, porque a amálgama que os mantinha ligados já não existe mais.