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Lixo. Foi esse o nome dado à maior parte do que se encontrou no material genético humano há 11 anos, quando cientistas conseguiram decodificar pela primeira vez o que nele estava escrito. Isso porque se descobriu que uma parte ínfima do DNA, inferior a 2%, possuía genes capazes de coordenar a codificação de proteínas, consideradas o carro-chefe do funcionamento celular. “Como apenas uma pequena parte seria capaz de fazer esse trabalho, considerou-se que o restante seria lixo”, disse Eric Green, diretor do Instituto Nacional de Pesquisa sobre o Genoma. Uma parcela grande dos pesquisadores, claro, duvidou dessa visão, pois não haveria sentido em tanto material genético sem função no nosso organismo. Por isso prosseguiram-se os estudos para conhecer melhor o que seria o tal “DNA-lixo”. “Agora sabemos que essa primeira conclusão está errada. A maior parte do genoma está envolvida em uma complexa coreografia molecular responsável por converter informação genética em células vivas”, completa Green.

Essa é a conclusão mais importante, divulgada na última semana, de 30 estudos realizados por 440 pesquisadores de 32 laboratórios de nove países. De acordo com a nova investigação, o que se descobriu é que, embora o restante do genoma humano não seja capaz de codificar a produção de proteínas, ele tem influência direta sobre o modo como elas atuam no organismo. Isso porque age como controlador, ligando ou desligando os genes. E não apenas: é ainda capaz de fazer o mesmo gene produzir proteínas diferentes. Por exemplo, apesar de todas as células do corpo terem o gene que codifica a produção de insulina – o hormônio que abre a porta das células para a entrada da glicose que está no sangue –, sua ativação se dá apenas no pâncreas. O moderador desse processo, acredita-se agora, está nessa outra parte do DNA. Com a descoberta, o que antes era lixo, ganha agora importante status científico, em especial porque o funcionamento dessas sequências de DNA que se encontram fora dos genes pode estar relacionado ao surgimento de várias doenças, em especial o câncer.

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SHOW
Após anúncio, os cientistas Ewan Briney (à dir.), Tim Hubbard (ao centro)
e Roderic Guigo posaram com "dançarinas do DNA"

Para se chegar às novas descobertas, foi preciso tempo e dinheiro. O Encode, sigla em inglês para Enciclopédia dos Elementos do DNA, surgiu em 2003 e, desde então, consumiu US$ 185 milhões. O recurso veio do Instituto Nacional de Pesquisas do Genoma Humano, nos Estados Unidos. Um dos principais nomes do projeto foi o professor de ciências da computação William Noble, responsável por desenvolver o programa de inteligência artificial que permitiu analisar e armazenar a informação contida no genoma humano para construir o que os próprios cientistas compararam ao Google Mapas do DNA. Enquanto o primeiro trabalho, em 2000, seria uma foto da terra no espaço, o material produzido pelo Encode, assim como o software de geolocalização, seria agora capaz de fornecer detalhes sobre essa imagem. “Se no Google Mapas é possível ver cidades, estados, ruas e até mesmo informações sobre o tráfico, pelo Encode podemos ver o funcionamento de cromossomos, genes e outros elementos funcionais”, diz Elise Feingold, uma das pesquisadoras do projeto.

A divulgação dos dados foi comemorada pelos pesquisadores ao redor do mundo. “O público em geral vai sentir o impacto desse estudo quando nós, cientistas, usando esses dados, aprendermos mais sobre o funcionamento do corpo humano”, explica a geneticista Lygia da Veiga Pereira, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo. “Conhecendo essa outra fração importante do nosso genoma, poderemos entender quais são as doenças causadas por falhas que ocorrem nessa parte do material genético”, disse a pesquisadora.

Como se vê, essa maior carga de informação permitirá conhecer, de forma inédita e muito mais profunda, como se originam as enfermidades no corpo humano. E, pelo que se viu, isso se dá de forma muito mais complexa do se imaginava. As informações servirão de base para o desenvolvimento de novas terapias buscando a cura de enfermidades para as quais hoje não há tratamento.

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Foto: Andrew Matthews