O fim do mundo foi anunciado para o ano 2000, naquilo que ficou conhecido como Y2K. Vê-se que não aconteceu. Recentemente, os profetas do Apocalipse escolheram novo alvo – menor do que o anterior, mas ainda assim bastante abrangente. Quem estaria com os dias contados são os Estados Unidos e sua postura imperial. Há farto estoque de indicações para esta morte anunciada. O assunto virou ladainha obrigatória em livros acadêmicos e ensaios na imprensa. Mas o Império Americano poderia usar o famoso fraseado de um de seus mais ilustres cidadãos, o escritor Mark Twain (1835-1910), quando este deparou com o próprio obituário nos jornais: “As notícias sobre minha morte são altamente exageradas.” Twain viveria ainda mais 13 anos fecundos. Já seu país, na atualidade, pode estar bêbado, mas não está morto. Longe disso: continua sendo a maior potência militar do planeta, a maior economia e o maior exportador de cultura – entre outros superlativos. “O que acontece é uma perda constante de hegemonia”, diz o professor Immanuel Wallerstein, pesquisador acadêmico da Universidade de Yale, autor do best-seller The end of the world as we know it: social science for the XXI century (O fim do mundo como o conhecemos: ciência social para o século XXI). O professor pode estar certo. O que é hegemonia? “Preponderância, supremacia”, respondem os dicionários. Mas para o pensador marxista italiano Antonio Gramsci o real significado vai além da coerção e envolve principalmente o consenso. Trocando em miúdos, é quando uma classe ou um país dominante conseguem convencer os dominados de que seus interesses particulares são universais e beneficiam a todos. E, neste caso, Tio Sam pode estar mesmo com um pé na cova.

“Os Estados Unidos são a única superpotência, mas não têm poder real. Trata-se de um líder que não é seguido, uma nação perdida no meio do caos global que lhe é incontrolável”, diz Wallderstein. Exagero do professor? Pode ser, mas ele tem argumentos bastante fortes. Por exemplo: “Em qual parte do planeta os americanos impuseram sua vontade em anos recentes? Iraque, Bálcãs e Afeganistão? No primeiro o que se conseguiu foi apenas uma paz provisória, onde permanecem as fronteiras que se tinham antes da invasão. Mas a meta era acabar com o regime de Saddam Hussein ou, no mínimo, destruir a ameaça que ele representa ao mundo. Isso, como vemos, não foi alcançado”, diz o professor. Pior: obrigou o estacionamento de tropas na região, com gastos fixos de milhões de dólares, no que é percebido pelos árabes como uma ocupação. Os seis mil homens estacionados na Arábia Saudita – onde se localizam Meca e Medina, os dois maiores santuários muçulmanos – ameaçam a estabilidade política do regime local e deram combustível aos terroristas islâmicos. O maior desagravo de Osama Bin Laden é a presença de “infiéis” na terra santa.

Paz precária – No caso dos Bálcãs, é bom lembrar que a Iugoslávia era uma nação industrializada, com um padrão de vida superior a muitos países do Leste europeu, mas que, mesmo com oposição americana, foi arrasado. Nada pode impedir a fragmentação definitiva do país. O máximo que se conseguiu na região foi uma paz precária, com redutos demarcados por fronteiras étnicas, e a legitimação de fato da segregação racial. Por último, no tripé de exemplos de Wallderstein, vem o Afeganistão. A campanha militar naquele país é decorrência direta do desafio à supremacia ianque. E as pessoas que o fizeram não compõem nenhuma potência militar. “Era uma organização não-estatal com grande determinação, algum dinheiro, um bando de seguidores dedicados e uma base forte num Estado fraco”, diz o professor. Ou seja: um bando armado conseguiu perpetrar o mais devastador ataque a solo americano. O resultado da expedição das tropas americanas ao ninho inimigo conseguiu derrubar o regime do Taliban e colocar um governo amigo em seu local. Mas quem é este governo, e qual a extensão de seu poder? Trata-se de uma colcha de retalhos de senhores de guerra, cada um com interesses variados e cuja lealdade varia com o vento. Desse modo, assim que as tropas americanas saírem da região, o caos certamente voltará.

A ocupação de fato do país já tem conta estimada em US$ 10 bilhões, fora os US$ 1,8 bilhão por dia gastos durante a guerra e os mais de US$ 100 bilhões de custos atrelados ao combate ao terrorismo. Em 1º de agosto, o Congresso americano teve de aprovar um orçamento para 2003 de US$ 355,4 bilhões ao Pentágono, no maior aumento em duas décadas. “O sucesso dessas despesas de energia e dinheiro – além de vidas humanas, é claro – pode ser questionado”, diz o senador democrata John Kerry. “O objetivo final da campanha – acabar com a liderança da al-Qaeda e do Taliban – ainda não foi alcançado e ninguém sabe se estamos perto de conseguir”, diz.

A fabulosa fonte de recursos econômicos americanos, porém, não é inesgotável. Calcule: o país tinha há dois anos o maior superávit de sua história. Para este ano, a previsão é um déficit orçamentário em torno de US$ 165 bilhões. De março do ano 2000 até este mês foram perdidos no mercado de ações americano US$ 7,7 trilhões. O governo insiste que os prejuízos em Wall Street, por si, não são capazes de descarrilar a economia. Mas os índices que medem a confiança do consumidor americano indicam o contrário: em julho a maior queda em cinco meses, chegando a patamares quase iguais aos da plena recessão de 1987. Já o nível de investimentos em produção na indústria caiu 28% desde janeiro. De junho a julho deste ano, os indicadores de atividade industrial caíram de 56,2 pontos para 50,5. As aquisições de empresas americanas por grupos estrangeiros, em 2002, chegaram quase ao nível zero. Fusões e investimentos tiveram queda dramática, trazendo apenas US$ 124 bilhões no ano passado, muito abaixo dos US$ 301 bilhões de 2000.

“A suposição de que o corte na receita fiscal fosse servir de alavanca da recuperação já está categorizada como falsa”, diz o economista Paul Krugman. “O truque econômico aplicado por George W. Bush – devolver aos ricos os impostos que seriam investidos em produção e aos pobres o dinheiro para o consumo – já havia sido tentado anteriormente e infelizmente não deu certo. “Antes, como agora, o que se conseguiu foi a criação de déficit enorme e recessão”, diz Krugman.

Vale lembrar também que a globalização revela atualmente outros paradoxos no ideário exportado pelos EUA. Exemplo: as novas medidas protecionistas aos setores do aço e da agricultura, estabelecidas pelo governo George W. Bush neste ano. Medidas, diga-se, que foram incorporadas no espírito do TPA ( Autoridade para Promoção Comercial, que antes era o chamado fast track). Em suma: somente para o Brasil, nada menos do que 49,49% das exportações do País para México, EUA e Canadá enfrentam restrições não-tarifárias.

O faire un faux no liberalismo econômico, porém, é revelador da nova ideologia de Washington: aquela que agarra o unilateralismo. Na Casa Branca impera a noção de que a única superpotência do mundo não apenas pode seguir sozinha, como deve fazer apenas aquilo que bem entende. “Os falcões de direita – que mesmo durante os governos mais conservadores eram relegados ao ostracismo – agora estão no poder. Saíram dos porões da Casa Branca e ocupam agora o Salão Oval”, diz Wallerstein. “Depois dos ataques de 11 de setembro, a filosofia que prevalece é a expressada pelo presidente: ‘Ou está conosco, ou está contra nós.’ A idéia é primária: eles acreditam que os EUA detêm o poder militar absoluto e podem impor sua vontade ao resto do planeta. O mundo não poderá ou irá fazer oposição”, diz o professor de Yale. Deste modo, o governo Bush acredita que deve agir como império porque pode e, se não o fizer, ficará cada vez mais desmoralizado. “Hoje, essa posição dos falcões de guerra têm três expressões marcantes.” Em primeiro lugar, o Afeganistão, com fins e resultados incertos. Depois, o apoio irrestrito a Israel, que gerou ódio no Oriente Médio, decepção nos aliados locais, enfraquecimento das forças moderadas árabes e perda das credenciais de negociador confiável que Washington manteve durante anos. O desfecho da verdadeira guerra que se trava na Palestina promete ser sombrio. Por último, o Iraque: quem mais apóia os planos para ações militares contra Saddam são civis. Capitaneando o grupo está o vice-presidente Dick Cheney, acompanhado pelo secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, e seu adjunto, Paul Wolfowitz. Contra a invasão está todo o establishment militar, inclusive o Estado-Maior das Forças Armadas e seu chefe, general Richard Meyer, mais o diretor da CIA, George Tenet, e o secretário de Estado, Collin Powell. Até agora, o resultado desta briga foi o vazamento de vários planos para acabar com Saddam. Nenhum deles, diga-se, parece muito viável.

Quem paga? – A segunda guerra do Golfo tem complicadores políticos, como a absoluta falta de apoio dos países da região (Arábia Saudita e Jordânia já disseram que não vão ceder suas bases para os ataques); oposição de aliados ocidentais, Rússia e China. Além disso, caso Saddam seja mesmo deposto, não há figura confiável ou de peso para ocupar seu lugar. Mas é no campo econômico que o Iraque pode infligir sua maior derrota a Tio Sam. Uma campanha e ocupação demorada no país teriam o poder de esgotar recursos que o governo Bush não tem. Na guerra do Vietnã, por exemplo, foi gasto quase todo o estoque de ouro americano. Na primeira guerra do Golfo, consumiram-se mais de US$ 60 bilhões, dos quais a coligação de 27 nações aliadas pagou 80%. Mesmo desembolsando apenas US$ 13 bilhões, os EUA entraram numa recessão que custou a reeleição de Bush pai.

Some-se aos gastos da campanha uma certeira explosão nos preços do petróleo, o que agravaria a crise mundial. Na melhor das hipóteses, pelo tempo suficiente para inundar o mercado com o produto iraquiano. Mas e se Saddam Hussein se vir perdido e resolver colocar fogo em seus poços? “Estão todos minados”, garante o ex-inspetor da ONU Richard Butler. O ditador de Bagdá já fez isso no Kuait. O resultado da manobra mandaria o valor do barril de petróleo ao espaço, e ainda criaria um apocalíptico desastre ecológico envolvendo toda a região mais rica em combustível no planeta. Aí, sim, a Águia ianque iria para o brejo.

O consenso dos arrependidos

Um novo consenso parece estar se formando em torno da América Latina: o coro dos decepcionados com o consenso de Washington. Paul Krugman que o diga. Este era o pomposo nome do elenco de reformas capitalistas – privatizações, abertura aos capitais estrangeiros, austeridade fiscal – vendido há uma década por economistas, empresários, políticos e jornalistas renomados como o Alfa-Ômega da redenção continental. Mas depois de ter feito o que os arautos do neoliberalismo chamam presunçosamente de “lição de casa”, os latino-americanos estão às voltas com uma gravíssima crise econômica e social. Segundo a revista Time, “apesar das doces promessas de que os mercados abertos e a austeridade orçamentária melhorariam o padrão de vida de todos, a maioria dos 500 milhões de habitantes da região está imersa na pobreza, e, em vez de se tornarem peças-chave na economia mundial, a maior parte das economias latino-americanas está em frangalhos”.
Os EUA e o FMI só vieram em socorro do Brasil porque perceberam que uma moratória brasileira poderia melar a tênue recuperação americana e comprometer a Alca, a Área de Livre Comércio das Américas. Assim, não é de estranhar, como constatou o Financial Times, que “nos mercados torna-se cada vez mais forte a impressão de que os países latino-americanos terão uma disposição cada vez menor para agradar credores internacionais e Wall Street”.