O crédito de US$ 30 bilhões do Fundo Monetário Internacional em troca de políticas rígidas para o próximo governo foi como um balde de água fria. Refrescou na hora. Surpreendeu analistas de mercado, que esperavam um crédito de não mais de US$ 15 bilhões. Provocou pronunciamentos positivos e, em alguns, até um certo orgulho de ser “o queridinho dos Estados Unidos”, tamanha a prontidão demonstrada pelas autoridades americanas aliada à súbita crise de lepidez que atingiu o presidente Bush. O dólar cedeu e, no dia seguinte do anúncio,
a quinta-feira 8, caiu a R$ 2,90.

Pena que durou pouco. O balde de água fria teve o efeito de um balde de água fria – no dia seguinte evaporou. Mais do que acordo econômico, foi uma astuta manobra política. Ganhe quem ganhar a eleição de outubro, ninguém escapará da armadilha de cumprir o acordo fechado pelo governo de FHC, ou seja, ninguém ousará dar o calote na dívida pública do País de US$ 250 bilhões, ou R$ 800 bilhões, porque US$ 24 bilhões (R$ 77 bilhões) do empréstimo só serão repassados no próximo ano se o novo governo cumprir certas metas orçamentárias. Assim, o novo governo já entra sob as rédeas de uma instituição que só tem fracassado na América Latina.

Na hora em que o Fundo for repassar essa segunda bolada é que o circo vai pegar fogo se o futuro presidente não conseguir cumprir as metas draconianas estabelecidas. Já vimos esse filme na Argentina, que há quase um ano espera um crédito prometido e não liberado pelo Fundo porque os argentinos não estão cumprindo em todos os detalhes a sua cartilha-padrão (e única, seja qual for o país em questão): aumento da austeridade e disciplina fiscal, independentemente de suas consequências desastrosas para a população. “A julgar pela reação dos mercados financeiros, as cartas foram lançadas para o Brasil. O risco-país subiu praticamente 23% após o anúncio do pacote de auxílio do Fundo Monetário Internacional. Caso este nível venha a persistir, o Brasil se tornará insolvente e deixará de pagar suas dívidas”, crava, em editorial, o jornal inglês Financial Times. A cotação do dólar dá razão ao periódico: dos R$ 2,90 do pós-anúncio, já tinha saltado para R$ 3,21 uma semana depois.

Tolice – O tom atual é bem distante do otimismo deflagrado pelo ministro Pedro Malan e pelo presidente do Banco Central, Armínio Fraga, durante o anúncio do acordo, na gloriosa sexta-feira 9 – último dia em que o dólar fechou em baixa. Na ocasião, Fraga classificou o acordo de “espetacular e sem custos”. Na quinta-feira 15, o presidente do BC reafirmou sua opinião e disse que houve um mau entendimento do mercado. “O acordo é muito bom e seria uma tolice não aproveitar esta chance, dado que o custo adicional é nenhum”, afirmou à Agência Estado. “Seria uma decisão suicida não aproveitar este acordo, algo com um custo muito alto”, disse.
Em palestra na Associação Comercial de São Paulo, o economista e deputado federal candidato à reeleição Delfim Netto disse que o acordo é uma farsa e que vai acabar restringindo o crescimento da economia, a não ser que o próximo governo adote um forte programa de exportação e substituição de importações para diminuir a dependência externa. “Aos poucos, a coisa vai emergir e a volatilidade vai voltar. O dólar caiu e voltou a subir, o que mostra que o mercado está refazendo sua opinião sobre a qualidade do empréstimo.” A farsa, segundo ele, estaria nas exigências do Fundo. Para ser assinado às pressas, o Fundo teria feito um receituário light para conseguir a co-opção dos candidatos. Por exemplo, manutenção de 3,75% do superávit primário. “O FMI sabe que essa taxa de 3,75% é insuficiente, tem que ser isso no mínimo”, disse o economista, prevendo que no dia seguinte à eleição do novo presidente deverão ser anunciadas novas exigências para a liberação do empréstimo. “Para honrar o acordo, a necessidade de superávit primário é de 5,4%, e o Fundo sabe aritmética, como nós.”

Cafezinho – Ele também prevê que o Fundo exigirá a realização de reforma tributária, previdenciária e a flexibilização do mercado de trabalho e acredita que até mesmo a reunião que o presidente Fernando Henrique Cardoso terá, nesta segunda-feira 19 com os presidenciáveis é exigência de Washington. “Provavelmente a coisa mais prática que vai acontecer no encontro é que será servido um cafezinho. Gostaria de ser otimista e achar que o FMI não fará o que já fez antes, mas ele tratou muito mal os argentinos.”

Todo mundo gostaria de ser otimista – mas não é fácil, dadas as circunstâncias. Joseph E. Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia em 2001, diz que “é fácil lá no topo mandar cortar gastos, mas é difícil quando você é um político e a taxa de desemprego está em 18%”. Mais difícil ainda é num país da América Latina, que não é como os Estados Unidos, onde há uma rede de proteção social. “Demitir um trabalhador tem enormes consequências econômicas e sociais”, disse Stiglitz. De 1980 a 2000, a renda per capita na América Latina cresceu apenas um décimo da taxa das duas décadas anteriores, quando os governos seguiam políticas mais intervencionistas e protecionistas.

Em um relatório divulgado no início de agosto, a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) previu que não haverá nenhuma melhora imediata. Segundo o relatório, a economia latino-americana enfrentará uma contração de 1% neste ano, em grande parte devido à implosão
da economia da Argentina.

O novo dinheiro para o Brasil será distribuído ao longo de 15 meses. É, como disse Delfim Netto, uma bóia para salvar o governo Fernando Henrique Cardoso em seus meses derradeiros e uma âncora para amarrar quem ganhar a eleição presidencial.
 

O BC VOLTA ATRÁS

Durou apenas 75 dias a tentativa do governo de dar transparência aos fundos de investimento. Na noite da quarta-feira 14, o Banco Central (BC) anunciou um pacotinho de medidas para conter a sangria de recursos iniciada no início de junho, quando passaram a valer novas regras de contabilização dos fundos. Mais de R$ 50 bilhões já haviam migrado para outras modalidades de investimento desde então. Até a pouco atraente poupança estava recebendo um fluxo acima da média de recursos, em detrimento dos fundos.

A chamada “marcação a mercado” (ou a definição do valor da cota a partir do valor real dos títulos em carteira) já não vale mais. Agora, os bancos poderão voltar a informar aos investidores o rendimento calculado a partir do vencimento do papel. Uma prática que o próprio BC tentou coibir quando, no meio de um feriado na virada de maio para junho, baixou a norma que agora revoga. “Nós não estamos voltando atrás”, jura o diretor de política monetária do BC, Luiz Fernando Figueiredo, dizendo que não havia outra coisa a fazer em maio.
O pacote do BC inclui uma recompra de títulos públicos que deve chegar a R$ 11 bilhões até o fim do ano. Mais uma estratégia para atrair de novo os investidores que fugiram nos últimos dois meses e meio dos fundos. Como cliente de si próprio, o governo tende a causar uma elevação na cotação dos títulos, que se vêm desvalorizando gradualmente. Com isso, eleva a remuneração e, de quebra, valoriza o próprio “produto” no mercado.

O drama todo começou quando os clientes perceberam que, com as novas regras contábeis, os fundos deixavam de ser um porto seguro para guardar as economias. Fundos até então estáveis passaram a oscilar muito, inclusive causando perdas de até 5% em
um mês. A reação, em forma de saques em massa, foi imediata. Mesmo assim, o BC mantinha a linha adotada, apostando que a maior transparência trazida pelas novas regras agradaria aos poucos. Não foi o que aconteceu. O jeito foi voltar atrás.

João Paulo Nucci