A vida pessoal e intelectual do economista Maurício Dias David, assessor econômico do candidato Ciro Gomes e coordenador de seu programa de governo, está sendo vasculhada, segundo ele. Os escritos do filósofo Roberto Mangabeira Unger, principal nome da equipe técnica de Ciro, “estão sendo examinados com lupa”, diz. Em clima de guerra contra os tucanos, Maurício, funcionário do BNDES, fundador do PSDB e velho conhecido do ministro Pedro Malan, não cansa de reclamar do que chama de “terrorismo econômico e eleitoral de José Serra” e critica com veemência o acordo do governo brasileiro com o FMI: “Há um pacto de hipocrisia de que não se pode falar mal do acordo. Antipatriótico é fazer o Brasil precisar dele.” O economista também se empolga quando perguntado sobre a aliança da Frente Trabalhista com os ex-companheiros de Fernando Collor (PRTB). “Todo mundo já esqueceu que Luiz Paulo Velloso Lucas, chefe da equipe técnica de Serra, foi um dos homens da equipe de Zélia Cardoso de Mello? E sabe quem elaborou o programa macroeconômico dos tucanos? Antônio Kandir, outro homem do confisco da ministra.”

ISTOÉ – Roberto Mangabeira Unger esteve nos EUA na semana passada conversando com investidores. O que ele foi dizer?
Maurício David –
Ele foi numa missão informativa. Estamos preocupados com esse terrorismo econômico e eleitoral que o Serra vem fazendo. A campanha dele diz que o Ciro transformaria o Brasil numa Argentina, que seria responsável pela alta do dólar, pela tensão no mercado. É um despropósito. O dólar sobe e desce de acordo com a especulação e variáveis outras que não as estritamente políticas. Claro que a transição coloca um elemento de instabilidade, mas está longe de ser o fator principal. E nós não vamos fazer como Fernando De la Rúa na Argentina: ganhou a eleição com um discurso e quis governar com outro, não alterando a política econômica.

ISTOÉ – Alguma coisa vai mudar no programa de governo
depois do acordo com o FMI?
Maurício –
A crítica que faço, como economista e não como assessor do Ciro, é a de que este acordo tem o objetivo de facilitar a saída dos capitais do Brasil. Os testemunhos disso são inequívocos. Allan Meltzer, um grande economista americano, conservador, que assessorou George Bush, o pai, disse: “Se eu fosse investidor no Brasil e tivesse que tomar uma posição, diria: ‘Ôba, me deram a chance de tirar meu dinheiro em condições mais favoráveis’.” É claro que, na perspectiva do governo, é o seguinte: “Vamos manter a porta aberta para não pensarem que vamos fechá-la, mas não quer dizer que os investidores saiam.” É como se, numa discoteca, alguém diz que pode acontecer um incêndio. Aí um fulano abre a porta e você pensa: “Tudo bem, a porta está aberta. Se pegar fogo, eu corro.” Mas o risco de o dinheiro sair existe. O problema maior é que o abacaxi vai estourar na mão do futuro governo. É uma bomba armada, que vem com uma carga pesada de exigências, uma clara tentativa de engessar a política econômica do próximo governo.

ISTOÉ – Como, por exemplo, o superávit de 3,75%?
Maurício –
Principalmente. Agora, veja você que o Fernando Henrique jamais conseguiu um superávit como esse, nem com uma política rigorosa, demitindo gente, acabando com investimentos. E só no final do segundo mandato colocou este superávit de 3,75%. Um presidente que, em oito anos, não conseguiu isso, agora se compromete a conseguir em nome de um futuro governo.

ISTOÉ – Mas, afinal, alguma coisa vai mudar no programa
depois do acordo?
Maurício –
Estamos trabalhando com uma segunda versão, mas ela
não terá mudanças substanciais em relação à primeira, que tinha 95% das idéias de Ciro e Mangabeira. Não há nada que você pegue de um programa para o outro e veja que mudou radicalmente. Agora estamos melhorando a redação, reunindo contribuições e idéias de pessoas e dos partidos da Frente. Para nós, programa de governo é uma coisa séria. Formamos uma equipe de mais de 300 pessoas e queremos fazer deste programa o motor para a transformação nacional, invadindo as universidades, discutindo com a sociedade, com os jovens, com intelectuais. Até com o PT.

ISTOÉ – Que papel teria o PT num
eventual governo Ciro?
Maurício –
Por enquanto, o Ciro não está nem pensando nisso. Volta e meia leio no jornal que fulano vai ser ministro, mas é a última coisa que passa pela cabeça dele. Nossa obrigação é chamar as pessoas mais competentes deste país. Não me parece possível governar o Brasil hoje sem um pacto, em maior ou menor grau, com o PT. Eu, particularmente, gostaria muito até de um governo de coalizão. O PT tem quadros que fariam falta a qualquer governo. Não imagino melhor ministro do Trabalho que o Lula. Acredito que será possível superar as desavenças de campanha, e não são tantas. As relações entre Ciro e Lula são as melhores possíveis. Entre as equipes técnicas, também. Assim como a colaboração com o PFL também será boa. Descobrimos que o PFL tem bons quadros, com
experiência de governo.

ISTOÉ – Se o sr. conta até com o PT no governo, que
dirá com o PFL…
Maurício –
A parte do PFL que nos apóia será decisiva no processo
de vitória do Ciro e não tem sentido que depois ela não colabore
com o governo. Sei que há quadros técnicos competentes do PFL que possivelmente deverão ser chamados. Claro que será uma decisão do Ciro. Imagino que ele vá fazer um balanço de todas as forças políticas e formar uma base sólida para ter condições de governabilidade. As alianças são fundamentais para evitar que haja riscos políticos como na Argentina, na Venezuela, no Peru.

ISTOÉ – Qual será a prioridade da política econômica do
governo Ciro?
Maurício –
Retomar o crescimento, porque sem ele não se consegue resolver o problema da distribuição de renda. O drama maior hoje é o pai de família desempregado, o jovem que não consegue emprego, o cidadão com mais de 40 anos na informalidade. O ponto de honra é colocar o País em marcha, com políticas de recuperação da capacidade de crescimento. A primazia do setor produtivo é fundamental para gerar emprego. E achamos que o crescimento por si só não resolve tudo. Queremos melhorar a distribuição de renda e, para isso, vamos abandonar esta política social de FHC, a pior dos últimos anos.

ISTOÉ – O programa não fala em metas de crescimento
ou de criação de empregos…
Maurício –
Não estamos preocupados com cifras ou metas absurdas que estão sendo colocadas de qualquer maneira. O Serra fala em oito milhões de empregos, o Lula, em dez milhões. Nós não vamos cair nisso e falar em 12, 13 ou 15 milhões, é uma coisa fora de sentido. Aliás, não vejo que credibilidade tem o Serra falando em oito milhões de empregos se o governo dele gerou 11 milhões de desempregados. Durante oito anos o crescimento foi de 2,5% ao ano. Queremos corrigir isso rapidamente.

ISTOÉ – Rapidamente como?
Maurício –
Isso será tarefa para quando formos governo. Não é nosso dever elencar agora todas as medidas que iremos tomar. Mas temos
este rumo muito claro e definido.

ISTOÉ – Ciro Gomes chegou a falar em salário mínimo de
US$ 100. Não provocaria um rombo na Previdência?
Maurício –
Absolutamente. Este rombo só existe na cabeça dos economistas que manipulam os dados. Primeiro: o aumento nos gastos pode ser administrado através de políticas públicas e do retorno do desenvolvimento do País. Aquela velha história de que, se o País crescer, desaparecerá o déficit da Previdência. Segundo: as estimativas do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) são de que, para cada R$ 1
a mais no salário mínimo, aumenta em R$ 170 milhões o déficit previdenciário. A elevação do mínimo para R$ 250, por exemplo, faria crescer este déficit em R$ 8 bilhões. Mas as evasões da Previdência hoje são de US$ 8,5 bilhões. São clubes de futebol tratados como entidades filantrópicas, santas casas tratadas como entidades filantrópicas…

ISTOÉ – Mas recuperar a perda da evasão não é algo demorado?
Maurício –
Não vejo por que demorar muito. É simplesmente cobrar. Outra coisa é a estimativa de que 30% dos benefícios pagos são indevidos, gente que não tem direito àquilo. Nós vamos fazer isso.
Não há possibilidade de distribuição de renda no Brasil sem aumentar o salário mínimo. Vamos colocá-lo num nível mais elevado: US$ 100
eu acho fácil para começar.

ISTOÉ – O ministro Pedro Malan disse que “a margem para
grandes aventuras, para grandes rupturas, para grandes
mudanças é limitada”…
Maurício –
Ninguém quer fazer aventura. Essa frase do Malan, para mim, só reflete o ceticismo, a decepção de quem viu o fracasso de sua política e não acredita mais em utopias. Um funcionário íntegro que faz um balanço de seu mandato e verifica que não fez nada do que tinha como sonho. Para nós, as utopias são importantes. Mas queremos utopias com pé no chão. Fui muito amigo do Malan no passado. É um gentleman, um homem de correção absoluta. Sei que vai deixar o governo e não vai se transformar em economista banqueiro. Só que ele cometeu um erro histórico: comprou de FHC a idéia de que não havia outro caminho a não ser entregar o País, subordinado, à globalização. O verdadeiro ministro da Fazenda chama-se FHC. Malan é seu alter ego. Como gentleman que é, arcou com o ônus das críticas que o responsabilizam pelo desastre. Fernando Henrique jogou seu amigo na fogueira, e agora quer entregar essa bomba na mão de outro amigo, o Serra.