O Brasil entrou para o epicentro de uma batalha secreta pelo mercado internacional de armamentos. A disputa envolve a indústria brasileira de pistolas Taurus, marca tradicional, dona de um terço do mercado americano de armas leves, e a austríaca Glock, fábrica de pistolas que mais cresce no mundo por conta de uma característica especial. Produzida em um material plástico que, rege o mito, permitiria atravessar o raio X dos aeroportos e o detector de metais dos bancos, a Glock se tornou ícone de poder entre terroristas e bandidos de toda sorte – mas também a arma predileta dos policiais que os combatem. Nos Estados Unidos, a Glock partiu para cima da Taurus com uma agressiva política de merchandising. Tom Cruise, em Missão impossível III, empunha uma Glock. Tommy Lee Jones, em O fugitivo, vai mais longe e obriga seu parceiro a jogar uma Taurus no lixo e comprar uma Glock. No Brasil, essa disputa virou uma batalha encarniçada com lobbies, pressões políticas e liminares judiciais – tendo o Exército no meio do fogo cruzado. A Glock quer instalar no Brasil uma fábrica de pistolas para exportação. “Será a fábrica mais moderna do mundo, totalmente digitalizada”, promete Luiz Antônio Horta, presidente da Glock Latin America. “Mas o lobby da Taurus não está deixando o projeto andar”, acusa.

A idéia reinante na matriz da multinacional austríaca é reservar para si os mercados da Europa, dos Estados Unidos e do Japão, deixando para a filial brasileira América Latina, África, Oriente Médio e parte da Ásia, o que inclui os filões Índia e China. Isso porque a legislação européia não permite a venda para países em conflito. Ou seja, caberia aos brasileiros fornecer tanto para as democracias, como Chile, como também para os “mercados cinzentos”, onde se incluem governos ditatoriais, grupos rebeldes e até máfias. “Queremos fabricar 300 mil armas por ano”, informa Horta. Mas a Glock precisa da autorização do Exército. E foi aí que o Alto Comando da Força elaborou uma contraproposta ousada. Documentos a que ISTOÉ teve acesso com exclusividade revelam que o Exército propôs a divisão do planeta com os austríacos. O Hemisfério Norte seria reserva de mercado da Glock Áustria; já o Hemisfério Sul, seria totalmente controlado pela Glock Brasil. O Exército exige ainda que a Glock faça uma joint venture com Indústria de Material Bélico do Brasil, a Imbel, estatal que na década de 80 foi um dos carros-chefe das nossas exportações. Tem mais. Pela proposta, os austríacos fariam 100% dos investimentos, de US$ 30 milhões iniciais, mas entregariam para a Imbel 50% dos lucros. “A produção deverá, nos primeiros três anos, destinar-se exclusivamente ao mercado externo”, propõe em documento o general Albano do Amarante, presidente da Imbel. Em resposta, a Glock escreveu que não aceita “a divisão do mercado mundial” da forma proposta. Quer mais. “Até mesmo porque, a priori, exclui fatias importantes do mercado americano, como todo o Caribe e a Venezuela”, escreveu Horta. No ano passado, Gaston Glock, fundador da indústria, veio em pessoa conversar com o comandante do Exército, general Francisco Albuquerque, para tentar um acordo. “As negociações estão em aberto”, avisa o general José Rosalvo de Almeida, diretor de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército. É ele quem assegura: “A Glock é muito bem-vinda ao Brasil, pois traz nova concorrência e novas tecnologias.”

Mas porque a Glock ainda não conseguiu montar
sua fábrica no país? O general diz que a empresa austríaca, na última contraproposta, sugeriu construir a fábrica em seis anos. Neste período, importaria 25 mil armas por ano. O Exército acha que isso fere os interesses nacionais, pois abasteceria quase todo o mercado de armas leves do País com pistolas fabricadas na Áustria. “Queremos ser um país produtor, não um importador”, diz o general.

Na direção contrária, a Taurus, que seria a grande perdedora com o acordo, também se movimenta. Para pressionar o Exército a cozinhar a Glock em banho-maria, a empresa brasileira contratou um general da reserva, Antônio Roberto Terra. Sua missão é convencer os militares brasileiros sobre a importância de preservar a indústria nacional no setor. Além disso, a Taurus tem investido na formação de uma bancada de políticos aliados – doou oficialmente R$ 353 mil às campanhas de 12 candidatos, entre eles o ex-deputado Roberto Jefferson. Enquanto isso, a Glock, que tenta há seis anos entrar no País, avança pelas beiradas. Conseguiu vender há um ano 200 pistolas para os seguranças do Palácio do Planalto e, recentemente, cinco mil armas para a Polícia Federal. “É nossa vitrine”, festeja Horta. Dias atrás, no mais recente embate, a Taurus entrou com uma liminar na Justiça Federal em Brasília para impedir que a Glock efetive a venda à PF – e ganhou. Por lei, somente empresas nacionais podem vender para órgãos públicos. Neste momento, a Glock está no contra-ataque. Enviou um dossiê ao Ministério da Defesa e ao Exército, acusando a Taurus de usar o monopólio para vender armas ao governo a preços superfaturados. As polícias de países vizinhos, como o Equador, comprariam Taurus por US$ 305, sem imposto. No Brasil, a mesma pistola seria vendida por US$ 620 – enquanto a Glock promete entregar por US$ 440. Procurada por ISTOÉ, a direção da Taurus não se pronunciou.