Na porta, a placa “Nessa casa até o gato é nervoso”. Na
parede da sala, uma amarelada reprodução de um quadro cubista. Ao lado do Picasso
falso, a pintura de uma mãe amamentando o filho. Enfeites, sofás, mesa e jogo de talheres. Para muitos, tudo isso não
tinha mais serventia. Não é o
que pensa a gaúcha Celoi S.
Rosa, 34 anos. Ela faz parte
de uma imensa comunidade que vive do que os outros jogam
fora. Catadora, mãe de 11
filhos, cinco deles adotivos, esta porto-alegrense sustenta sonho e realidade separando muito papelão, garrafa plástica de refrigerante e, principalmente, um produtinho leve, colorido e brilhante. O ouro da rua, conhecido como latinha de alumínio.
O metal que ajuda a restituir a cidadania de Celoi e de mais 150 mil brasileiros que vivem exclusivamente da coleta de latinhas deu ao
País um importante título. O Brasil ultrapassou o Japão e sagrou-se campeão mundial de reciclagem de latas de alumínio. Dados da Associação Brasileira do Alumínio (Abal) mostram que 85% desse
material é reaproveitado. No início de setembro, a Japan Aluminum Can Recyclin Association anunciou o índice nipônico: 82,8%. Os Estados Unidos, pioneiros no desenvolvimento da tecnologia de reciclagem,
têm 55%. A Europa recicla apenas 45% desse material.

Os números impressionam. Em 2001, 119,5 mil toneladas de alumínio foram recicladas. No total, foram nove bilhões de unidades reaproveitadas. Daria uma latinha e meia para cada habitante do
planeta (leia quadro à pág. ao lado). Mais de duas mil empresas, ONGs
e instituições estão envolvidas com a atividade. Por trás deste mundo
de cifras existem milhares de Celois. Quem vai a festas populares, comícios, jogos de futebol e shows de rock se acostumou a ouvir a
frase: “Tio, tia, me dá latinha?” Não é por acaso. Cada quilo recolhido naqueles grandes sacos de lixo rende, em média, R$ 2. O segundo produto deste “supermercado”, as garrafas de plástico conhecidas
como pets, tem o quilo avaliado em R$ 1. Papelão, jornal, ferro e outros metais vêm depois, com preços mais baixos. Na prateleira dos resíduos sólidos só há um produto mais rentável que o alumínio: o cobre. Mas
não é o tipo de material encontrado com facilidade. Sua coleta, na maioria das vezes, é crime. Trata-se da matéria-prima utilizada nas fiações da rede elétrica e nos cabos de alimentação de trens e
metrôs. Além de ser ilegal, a captação desse produto é perigosa.
Muitos morreram eletrocutados ao roubar o material.

Catar latas é uma atividade infinitamente mais segura. Porém, cada dia mais difícil. A crise econômica está tornando o mercado concorrido. Há algum tempo, bares, restaurantes, casas de show e grandes condomínios tinham o hábito de separar e entregar os recipientes aos próprios catadores. Hoje, com o preço do alumínio regulado pelo dólar, em vez de dar, estão vendendo. O dinheiro da comercialização é rateado entre os funcionários de baixo escalão. Assim, faxineiras, manobristas, porteiros, vigias, etc. ganharam um extra no fim do mês. Isso sem falar nos que unem o útil ao agradável. Ou seja, se divertem e no final da festa levam o bolo para casa. “Fui a um comício do Lula e vi três mulheres bem maquiadas, de jaqueta de couro e salto alto, catando latinha. Elas vêm com essa desculpa de que é para a empregada. Eu duvido. Pegam mesmo para vender”, diz a catadora gaúcha Roseli Cezar dos Santos, 27 anos. Graças ao dinheiro do alumínio e de outros produtos, ela conseguiu trocar as frias ruas e praças de Porto Alegre por um barraco na cooperativa no bairro Beira Rio, ao lado do estádio do Internacional, na capital gaúcha.

Dignidade

Mas, para os catadores, a maior ameaça vem das próprias empresas recicladoras. Gigantes como Latasa e Alcoa estão desenvolvendo tecnologia para eliminar a intermediação entre coletores e indústria. Grandes supermercados e centros atacadistas têm máquinas que recolhem latinhas e garrafas plásticas. Em troca, emitem um cupom que garante desconto nas mercadorias. “O alumínio é um material altamente rentável para nós. Se ele desaparecer de nossas mãos, teremos nossa renda muito diminuída. Famílias inteiras poderão voltar às ruas, sem perspectiva de uma sobrevivência digna”, alerta o gaúcho Alexandre Camboin, 27 anos, diretor do Movimento Nacional dos Catadores. A questão é delicada e polêmica. O coordenador da Comissão Nacional de Reciclagem da Abal, José Roberto Giosa, também diretor da Tomra/Latasa, uma das maiores empresas do setor, afirmou ter oferecido aos catadores a tarefa de operar as máquinas. “Há um ano e meio estive reunido com eles em Brasília e disse que, se as cooperativas estivessem organizadas e com pessoal qualificado, poderiam fazer o serviço. De lá para cá não tivemos outros encontros”, diz Giosa. A ausência de diálogo tem outra explicação para Camboin. “Acho que eles perceberam que a operação se tornaria inviável. Afinal, teriam que pagar os cupons para o consumidor e o preço de mercado das latinhas para o catador.”

Questões como essa seriam discutidas de outra forma se a profissão
de catador fosse regulamentada. O reconhecimento da atividade é um antigo desejo da “categoria”. Há dois projetos de lei tramitando na Câmara nesse sentido. A legalização daria ao catador os mesmos benefícios e obrigações de um trabalhador autônomo, além de implantar normas de segurança e instituir procedimentos técnicos de coleta e identificação de materiais. Traria também dignidade. É grande o preconceito que cerca a classe. “A sociedade nos vê como bandidos em potencial. Somos apenas trabalhadores, cientes dos nossos deveres e obrigações. O que buscamos é o respeito. A regulamentação acabaria com o preconceito que nos cerca”, diz Eduardo Ferreira de Paula, presidente da Copamare, de São Paulo, uma das maiores e mais organizadas cooperativas do País. A seguir, você conhecerá a história de brasileiros que venceram o alcoolismo, a miséria, a violência, o abandono e a frieza das ruas juntando e vendendo as sobras das praias, churrascos, baladas ou mesmo das desilusões. “Vamo batê lata.”

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail
 

Esperança e dor

A alagoana Maria José da
Silva não poderá ler esta reportagem. Analfabeta, a
ex-faxineira trocou o rodo por latas e garrafas. E não se arrepende. “Sou catadora com orgulho.” Na antiga profissão, ganhava R$ 180 por mês.
Na cooperativa, tira R$ 300.
Com isso, ela construiu duas casas vizinhas, no Jardim
Vera Cruz, São Paulo. Maria reza para que o alumínio possibilite a realização de dois sonhos: aprender a ler e recuperar os três filhos, que estão com o primeiro de seus dois maridos. “Ele os roubou de
mim. Só vou ser feliz de novo quando os tiver ao meu lado”, diz


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias