O julgamento de uma ação que se arrasta no Supremo Tribunal Federal (STF) desde junho de 1993 tem provocado um feito raro: unir gregos e troianos em torno de uma mesma causa em pleno Paraná, Estado onde as pendengas políticas costumam ser decididas com golpes abaixo da linha da cintura. Uma reportagem publicada na penúltima edição de ISTOÉ relata a disputa jurídica que coloca de um lado o governo paranaense e de outro a União. Respaldado por leis e convênios aprovados e assinados em 1968 e em 1971, o governo do Paraná entende que deve ser ressarcido pelo governo federal de tudo o que foi gasto pelo Estado na construção da Estrada de Ferro Central do Paraná, entre as cidades de Apucarana e Ponta Grossa. A Advocacia Geral da União (AGU) discorda da pretensão paranaense. Álvaro Augusto Ribeiro Costa, advogado-geral da União, sustenta que o governo federal já pagou o que devia pela ferrovia. Ele alega que a ação movida pelo Estado não passa de uma “aventura judiciária”, considerando-a uma tentativa de receber duas vezes pela mesma obra. As declarações de Costa irritaram os políticos paranaenses. Na quarta-feira 19, os deputados estaduais deixaram de lado as divergências políticas e foram unânimes ao aprovar uma moção de desagravo ao STF, em que tecem duras críticas ao advogado-geral da União.

“Ele está promovendo uma campanha para pressionar os ministros do STF a votarem contra o Paraná”, reclama o presidente da Assembléia, deputado Hermas Brandão (PSDB). “Suas declarações não condizem com a postura ética e profissional relativa ao alto cargo que ocupa.” Além das farpas disparadas pelo advogado-geral da União, o que mais tem incomodado os políticos do Paraná são os valores divulgados pela AGU: R$ 20 bilhões, uma quantia 43% maior do que o corte de despesas feito pelo governo Lula no Orçamento da União. Os paranaenses entendem que a divulgação de número tão astronômico é uma forma de terrorismo para influenciar a decisão dos ministros do STF. “Nada mais correto do que o Estado lutar por seus direitos, até porque não possui recursos para pagar uma condenação já imposta por causa da ferrovia”, explica o petista Angelo Vanhoni, líder do governo na Assembléia. A dívida com o consórcio de empreiteiras que construiu a estrada de ferro soma quase R$ 3 bilhões.

Projeto nacional – A ferrovia Apucarana–Ponta Grossa começou a ser planejada pelo governo federal na metade da década de 60. O objetivo era o de garantir uma integração à malha ferroviária nacional, permitindo assim um incremento nas exportações agrícolas do Paraná, Mato Grosso (hoje Mato Grosso do Sul) e oeste de São Paulo, pois criaria um corredor de acesso rápido ao porto de Paranaguá. Somente no final da década, porém, é que o governo federal resolveu tirar o projeto do papel. Como a União encontrava dificuldade para a obtenção de recursos externos, buscou o governo paranaense para fazer uma operação triangular. O então governador Paulo Pimentel, favorável à construção da ferrovia, concordou com o projeto. O governo do Paraná obteve recursos internos e externos para o empreendimento e obrigou-se a entregar a ferrovia para a União tão logo fosse concluída. Em contrapartida, o governo federal constituiu uma comissão para administrar a obra e se comprometeu a reembolsar o Paraná por todos os gastos.

O então governador exigiu que o Poder Legislativo do Estado se manifestasse e a Assembléia, por unanimidade, em maio de 1968 aprovou a lei 5.768, autorizando o governador a “firmar convênios com o governo federal, destinados a entregar a obra, uma vez concluída a construção, e a receber indenização dos recursos que forem aplicados na execução do projeto ferroviário”. Meses depois, em outubro de 1968, foi assinado o convênio entre a União e o Estado do Paraná. “Sem essa lei eu não teria condições de seguir avante, comprometendo o orçamento estadual”, afirmou, na semana passada, o ex-governador Paulo Pimentel.

O acordo é claro ao afirmar que o governo federal deveria pagar ao Paraná tudo o que fora gasto para construir a estrada de ferro. “O presente tem por objeto a transferência para o governo federal de todo o acervo da ferrovia Apucarana–Ponta Grossa, a ser construída pelo governo do Estado do Paraná, bem como a indenização pelo primeiro de todas as despesas suportadas pelo segundo para conclusão da obra”, estabelece a cláusula 1.1 do documento. Dois anos depois, já com as obras em andamento, houve a necessidade de um rearranjo orçamentário. Em 23 de julho de 1970, a Assembléia aprovou a obtenção do novo empréstimo, desde que também fosse feito um novo acordo com a União. Em 1971, o novo acordo foi feito, reafirmando o que fora assinado dois anos antes. Mas, em dezembro de 1973, devido a dificuldades de caixa, o governo federal deixou de fazer os pagamentos e editou um “aditivo-apostila” ao convênio de 1971, prorrogando o prazo de sua validade. Neste aditivo fica claro que continuava em vigor tudo o que fora acertado em 1968. “A AGU sustenta que o primeiro convênio se esgotou por causa do acerto de 1971, mas isso não é verdade. O texto é muito claro e o aditivo de 1973 é também bastante claro”, reclama o procurador Lacerda. De fato, nos dois convênios e também no aditivo fica claro que a União é responsável em indenizar o Estado por “todas as despesas que teve para a conclusão da obra”.

Desenvolvimento – Na década de 60, um dos maiores problemas para a plena utilização do porto de Paranaguá estava na falta de uma ferrovia que ligasse o norte do Estado até Ponta Grossa. Até então, para desovar a produção do oeste de São Paulo e do Mato Grosso, além do próprio Paraná, era preciso percorrer 620 quilômetros por um traçado cheio de problemas, como declives e aclives muito acentuados e curvas extremamente fechadas. A construção da ferrovia Apucarana–Ponta Grossa solucionou esse problema, com economia de quase 300 quilômetros e traçado bem mais seguro. A ferrovia foi inaugurada em 1975 e imediatamente entregue ao governo federal. “O Estado cumpriu religiosamente os compromissos acertados nos dois convênios”, avalia o procurador Lacerda.

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Logo no primeiro ano de funcionamento da Estrada de Ferro Central do Paraná, o porto de Paranaguá registrou um acréscimo de 44% no volume de carga embarcada. No último ano, quase metade dos 31 milhões de toneladas movimentadas em Paranaguá transitou pelo trecho
Apucarana–Ponta Grossa da ferrovia. Em 2001, segundo dados da Assembléia Legislativa do Paraná, dos 8,5 milhões de toneladas exportadas por Paranaguá e que chegaram ao porto por ferrovia, 7,2 milhões foram produtos agrícolas produzidos no Mato Grosso do Sul e no oeste paulista. “Esses números representam uma receita para a União equivalente a US$ 5,3 bilhões”, estima o deputado tucano Hermas Brandão, presidente do Legislativo paranaense.

O julgamento – De acordo com o procurador Lacerda, não existe um prazo definido para que o Supremo Tribunal Federal se manifeste. Ele explicou que o processo está em fase de votação – não cabem mais recursos –, mas que cada um dos nove ministros que irão definir a questão tem o direito de pedir para estudar detalhadamente o processo antes de se pronunciar. “Não estamos querendo apressar nada. Trata-se de um caso muito complexo e não é bom que os ministros votem rapidamente”, diz o procurador. “Mas não podemos permitir que a AGU distorça os fatos, gerando um clima desfavorável a nossa causa.” Até a última semana, quatro ministros do STF haviam votado. O Paraná está perdendo por três a um. “Os textos dos convênios e do aditivo são claros, as leis são claras e a ferrovia é federal. Então, temos a certeza de que poderemos ganhar essa briga”, contabiliza o procurador. Para sustentar a versão de que a ação movida pelo governo paranaense nada mais é do que uma tentativa de receber duas vezes pela mesma obra, a AGU recorre a uma outra ação já julgada pelo STF, a respeito do mesmo tema. De fato, uma ação similar já foi julgada pelo STF e o Paraná venceu a parada. Na ocasião, a União foi condenada a indenizar o Estado em cerca de US$ 84 milhões para o pagamento às empresas projetistas das obras da ferrovia. “Agora é outra ação, referente a outras despesas da estrada”, rebate o procurador. Segundo ele, na decisão anterior, o STF não analisou toda a obra, mas apenas a parte que estava em disputa.

A polêmica jurídica, no entanto, não afasta definitivamente a busca de uma solução negociada. “Estamos trabalhando nas duas frentes. Não vamos desistir do processo, mas também não fechamos as portas para negociar com o governo federal”, assegura o petista Vanhoni, líder do governo na Assembléia. Ele lembra que, no final do governo passado, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso recebeu o ex-governador Jaime Lerner e acabou reconhecendo os direitos do Paraná, encaminhando ofícios, em dezembro de 2002, tanto para a AGU como para o Ministério da Fazenda para que fosse feito um acordo.


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