Os oito brigadeiros do Alto-Comando da FAB ouviram surpresos, na terça-feira 13, no oitavo andar do edifício-sede na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, o vôo rasante do comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro-do-ar Carlos de Almeida Baptista, sobre a última grande licitação da gestão FHC: a compra de 12 caças supersônicos, por US$ 700 milhões, para substituir os obsoletos Mirage IIIEBr, baseados em Anápolis desde a década de 70. O brigadeiro Baptista começou como um diplomata: distribuiu elogios, dizendo que todas as propostas atendiam plenamente às necessidades do País. Mas havia diferenças. Ignorando as conclusões de um estudo de três anos realizado por uma comissão de 70 técnicos, engenheiros e especialistas do setor aeronáutico, que pontuava as melhores propostas entre os cinco consórcios internacionais interessados, Baptista começou destacando o caça anglo-sueco JAS-39 Gripen. Classificado em terceiro lugar no estudo técnico, ele tinha o melhor preço, garantia transferência de tecnologia e prometia compensação comercial à indústria nacional, onde já atua fortemente a Ericsson, ligada ao grupo sueco.

Depois, o comandante da FAB criticou o caça F-16, da americana Lockheed, dizendo que havia problemas de equipamentos e uma dificuldade intransponível: a recusa dos Estados Unidos de repassar para a FAB o sofisticado e secreto programa de computador de bordo que “ensina” o avião a voar e a atirar com precisão. Em seguida, sem dar apartes, Baptista falou sobre a proposta da Dassault, que oferece modelos Mirage 2000-5Br, produzidos em consórcio com a brasileira Embraer e compatíveis com os velhos aparelhos que ainda sobrevivem em Anápolis. Mas seu preço ainda é salgado. Os russos Sukhoi Su-35 e Mig 29 são caros e trazem uma tecnologia desconhecida e pouco confiável. Na conclusão final, o comandante da FAB deixou implícito que o Gripen era seu favorito. A preferência irritou o Alto-Comando, que acatava a conclusão do estudo técnico, apontando a solução franco-brasileira como a mais adequada aos interesses nacionais.

O que Baptista não contou foi a principal razão da preferência: a pressão dos Estados Unidos para tirar a França do negócio. Ela ficou explícita, segundo um especialista do setor, na audiência do secretário do Tesouro americano, Paul O’Neill, com o presidente Fernando Henrique Cardoso no Palácio do Planalto, duas semanas atrás. Na conversa, o secretário teria escancarado o interesse da Casa Branca na vitória do Gripen, por uma simples razão: os equipamentos mais caros, como turbinas e peças de alta tecnologia, são fabricados por empresas americanas. Os concorrentes suspeitam que essa conversa ajudou a selar o estratégico apoio americano ao novo empréstimo de US$ 30 bilhões que o FMI concedeu ao Brasil, 48 horas após a visita de O’Neill a Brasília. Até a visita do secretário, ninguém apostava um dólar na vitória do Gripen.

Os brigadeiros do Alto-Comando não gostaram da preferência de seu comandante, mas, apesar de contrariados, engoliram em seco. Na tarde da quarta-feira 14, Baptista foi ao Planalto para um encontro fora de agenda com FHC. Mostrou um mapa comparativo ao presidente e deixou com FHC a decisão final de convocar, talvez ainda em agosto, o Conselho de Defesa Nacional para a avaliação final de governo. Na quinta-feira, falando sobre a tormenta da economia, FHC parecia estar em outra rota (no ar): “Depois de enfrentar tanta turbulência, já estou preparado para ser piloto de caça”, comentou. E vai precisar de preparo. Na segunda-feira 19, na maratona de conversas com os presidenciáveis, ele vai enfrentar duas cobranças explícitas: Lula e Ciro avisaram que vão rever a licitação, antes mesmo de saber o resultado. Lula anda preocupado com a encomenda de plataformas de petróleo feita pela Petrobras a empresas de Cingapura e Noruega e não aceita repetir a dose com aviões de caça. Ciro Gomes diz claramente que faria a Aeronáutica encomendar os caças à Embraer. E prometeu interpelar FHC sobre a versão de que o dinheiro novo do FMI estava amarrado à vitória do Gripen.

A despeito das dúvidas dos candidatos, o jogo comercial tenta se adaptar às circunstâncias. Fontes da FAB antecipam que, confirmada a vitória do Gripen, antes mesmo da assinatura do contrato será exigida uma parceria com a Embraer no desenvolvimento tecnológico, nos mesmos termos que hoje existe com a Dassault, que controla 22% da empresa brasileira. Em maio, o presidente da sueca SAAB, Bengt Halse, acompanhado do presidente da inglesa BAE System, Charles Masefield, foi ao Palácio do Planalto para dizer que aceitava transferir todo seu know-how para a Embraer. Mas sua parceria no Brasil é muito frágil: o grupo formou um consórcio com a VEM, uma simples empresa de manutenção da Varig que funciona no aeroporto de Porto Alegre. É uma espécie de oficina de funilaria, sem condições de absorver tecnologia, coisa que só a Embraer faz no Brasil. Com esta conversão, o Gripen ganharia o colorido verde-amarelo que antes garantia o favoritismo do Mirage.

Um dos interesses mais defendidos dentro da Aeronáutica é a necessidade de transferência de 100% de tecnologia para qualquer acordo operacional. Graças a esta obstinação, o Brasil hoje é um dos 14 países do mundo admitidos no clube seleto que constrói, no espaço, a Estação Orbital Internacional. Este é um orgulho que a FAB não dispensa. Desde 1946, quando criou o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), a Força Aérea se gaba de ter um centro de excelência comparável ao que o Massachusetts Institute of Technology (MIT) é para os Estados Unidos. Hoje, dizem os entendidos, existem quatro áreas de produção aeronáutica no mundo: EUA, Canadá, Europa e Brasil. “Produzimos grandes aviões, mas nenhum Fórmula 1. E o caça supersônico é o F-1 da aviação”, lembra um engenheiro.

Os avanços da Ferrari acabam sendo transferidos para a linha de montagem da Fiat. O caça é o laboratório voador que permite os avanços nos aviões de carreira. As questões comerciais, neste caso, são menos importantes do que os interesses estratégicos. Os Estados Unidos, através de O’Neill, disseram ao Brasil que não vão permitir o avanço da indústria francesa numa região tão decisiva para Tio Sam. O vice-presidente de defesa da Embraer, Romualdo de Barros, diz ainda acreditar na vitória. “Confiamos nos critérios de licitação da Aeronáutica e mantemos a crença na qualidade da nossa proposta, que tem o compromisso de garantir ao Brasil capacidade tecnológica e industrial de aeronaves de defesa”, afirma.

A Aeronáutica vai realizar uma nova licitação, a do avião CLX, que ainda está nos seus estudos preliminares e reservados. Será uma aeronave para transporte de tropa, e, segundo um oficial do Alto-Comando, a Embraer terá pelo menos 70% de chances de produzir a aeronave, isoladamente ou associada a uma de suas sócias francesas.

Ozires – A associação do Gripen com a Varig seria um ingrediente a mais a favor do avião sueco, embora o próprio ex-presidente da Varig, Ozires Silva, tenha manifestado apoio ao Mirage 2000-5Br, da Embraer/Dassault Aviation, o que, segundo um funcionário da companhia aérea, teria influenciado em sua repentina saída da empresa. Esqueceram que Ozires Silva faz parte da extraordinária história de sucesso da Embraer, por ele presidida duas vezes, da fundação da empresa, em 1969, até 1986 e, depois, de 1991 a 1995, período em que conduziu a privatização.

A surpreendente opção em favor dos suecos, se for confirmada, vai gerar polêmica e protestos. Não pela questão de a Embraer ser brasileira, mas pelo fato de ser a menina dos olhos do mercado de ações, a quarta maior fabricante de aviões do mundo, primeiro lugar na classificação das maiores empresas exportadoras do País pela terceira vez consecutiva (1999, 2000 e 2001) e também no primeiro trimestre 2002, com uma contribuição de divisas para a balança comercial brasileira em 2001 de US$ 1,1 bilhão, já descontados os valores das importações. “Não se pode gastar US$ 700 milhões fora do Brasil”, esperneou Lula. “O País não está em condições de criar empregos na Suécia”, disse o diretor de competitividade da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Mario Bernardini. Para ele, compras dessa natureza devem levar em conta os interesses do País. “Se a FAB conseguir provar que o avião sueco custará metade do preço, a opção seria aceitável.” O economista Júlio Sérgio Gomes de Almeida, diretor-executivo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), diz que a condição básica para a concorrência é a competitividade do produto brasileiro. Ou seja: a qualidade e o preço do produto, seja ele qual for, devem ser compatíveis com o produto importado. Condições à parte, o economista diz que “uma dose de nacionalismo, evidentemente, tem de estar presente”. Segundo ele, mesmo em transações fechadas entre partes privadas há um pendor pelos compatriotas – desde que eles, é claro, ofereçam algo competitivo. “O Brasil seria o primeiro país a abrir mão dessa dose de nacionalismo”, afirma.

Não é difícil. O governo brasileiro recebeu de braços abertos a decisão da Petrobras de encomendar uma plataforma petrolífera a Cingapura. O contrato, de quase US$ 500 milhões, singrou mares por causa de uma diferença de 6% no preço final. O estaleiro Fels-Setal, instalado em Angra dos Reis, foi o segundo colocado na licitação. Com a licitação da Aeronáutica para a aquisição dos caças que vão substituir os velhos Mirage-III, os brasileiros correm o risco de ver esse filme de novo, numa versão com mais polêmica e suspeita que a do Sivam (em 1995, por pressão americana, o governo mudou as regras da licitação do Sistema de Vigilância da Amazônia, inaugurado recentemente).

Ao analisar as chances do Gripen, o brigadeiro Eden Asvolinsque, que serviu na Junta Interamericana de Defesa (JID), em Washington, foi enfático: “Não tenho dúvida de que a negociação do avião fez parte da agenda do secretário do Tesouro, Paul O’Neill, em sua visita ao Brasil.” Demonstrando indignação com a influência de interesses externos na escolha do avião, ele afirma que “a necessidade de capacitar a indústria de tecnologia de defesa foi sempre um dos itens das reuniões da JID, e nesta licitação o Brasil não pode levar em conta apenas os aspectos comerciais em jogo ou a criação de empregos no Exterior”. O ex-oficial da JID denuncia “uma intenção do governo de adiar ao máximo a definição e aquisição dos novos caças e de privilegiar não aspectos tecnológicos de interesse do Brasil, mas sim aspectos comerciais e políticos”. Para ele, “o Brasil não pode ser tratado como um país periférico em uma negociação deste tipo, porque sua indústria, notadamente a Embraer, já tem capacidade para absorver tecnologia”.

Mesmo poupando o comandante da Aeronáutica, o brigadeiro Carlos Baptista, de suas críticas – “infelizmente não depende só dele a compra dos aviões” –, Asvolinsque afirma que a Aeronáutica tem de manter a antiga estratégia de nacionalização do material. Ela tem suas origens, segundo o militar, na orientação adotada pelo marechal Casimiro Montenegro Filho, quando buscou professores do MIT para criar na região do Vale do Paraíba, em São Paulo, as bases para uma indústria aeroespacial. Daí surgiram o Centro Técnico Aeroespacial, a Embraer e outras empresas. Em razão de suas origens e dos investimentos feitos pelo governo brasileiro na empresa é que, na privatização da companhia, em 1994, foi adotada a ação de ouro, que assegurava os interesses do governo na Embraer.

A preferência pelo Gripen, segundo oficiais da Aeronáutica, é a pior. Entre os que participam da licitação, é o caça que tem o menor raio de ação, segundo o ministro do Superior Tribunal Militar e brigadeiro Cherubim Rosa Filho. Esses oficiais encaram a escolha do Gripen como um retrocesso, na medida em que não deverá ser feita através de uma parceria com uma empresa brasileira com experiência em material militar. A negociação teria que atender a esse requisito, segundo o brigadeiro Hugo de Oliveira Piva. O Gripen é a pior alternativa entre as apresentadas à Aeronáutica, segundo um oficial da ativa, que considerou risível o argumento de seus lobistas de que o avião sueco-britânico-americano pode pousar em pistas curtas e até em estradas.

Entre tecnologia e capacidade de fazer aviões e os interesses comerciais, o governo parece ter ficado com a segunda alternativa. Perdem chances os dois projetos com parcerias tecnológicas: o Mirage 2000-5Br, do consórcio Dassault-Embraer, e o Sukhoi Su-35, da Rosoboronexport-Avibrás. Também vão para o lixo as chamadas diretrizes para o “offset” – ou seja, os critérios a serem considerados na oferta de compensação pelo vendedor –, descritas no manual da licitação: “Transferência de tecnologia, treinamento, assistência técnica… não serão aceitos como compensação; com exceção dos equipamentos e serviços adquiridos no Brasil.” Acordos de compensação têm por princípio a ênfase à transferência de tecnologia e o poder de acesso às empresas nacionais, a custo mínimo para o governo, a tecnologias que, do ponto de vista comercial, colocarão seus produtos em condições de competir com vantagem no concorridíssimo mercado mundial.

A opção pelos aspectos puramente comerciais dos acordos de compensação, principalmente se direcionados para setores não relacionados com o setor aeroespacial, ao contrário, não traz nenhum benefício à indústria. Na verdade, o que estaria ocorrendo é que as exigências de compensação estariam sendo objeto de interesses outros que não os da Aeronáutica e do parque industrial aeroespacial brasileiro. E isso, além de grave, nos faz sentir saudades dos tempos em que executivos americanos eram recepcionados em Brasília e lá ouviam do então ministro da Aeronáutica, brigadeiro Délio Jardim de Mattos, nos anos 80, o aviso de que a prioridade era a criação de tecnologia própria e nacionalização do material aéreo.

Uma rara história de sucesso internacional

Quarta maior fabricante de aviões comerciais do mundo, a Embraer sustenta o título de maior exportadora do País desde 1999. Só no ano passado, as vendas para o mercado internacional somaram US$ 2,8 bilhões, ou 98% das receitas totais da companhia. A companhia domina 45% do mercado mundial de jatos de transporte regional.
Criada em 1969 pelo governo para dar asas ao sonho dos militares de montar aviões para a Força Aérea, a empresa acabou tendo um papel estratégico na aviação militar brasileira. Metade da frota aérea militar brasileira ainda em atividade saiu dos hangares de São José dos Campos (SP).

Em 1994, atolada em prejuízos, a empresa foi privatizada. A Companhia Bozano e os fundos de previdência Previ e Sistel detêm, juntos, 60% das ações. Só em 2001, foram entregues 161 aeronaves. A previsão para o complicado 2002 é entregar 135 aviões. Em 2003, as apostas se voltam para a China, onde a Embraer pretende colocar 400 aeronaves nos próximos dez anos. Hoje, cinco aviões brasileiros já fazem rotas comerciais naquele país.

Há três anos, a Embraer se associou à Snecma, EADS, Dassault Aviation e Thales – as maiores aeroespaciais da Europa, que passaram a controlar 20% de seu capital. A aliança estratégica pretende garantir o acesso a novas tecnologias, especialmente na área de defesa. Clientes para essa área não faltam. Mais de 20 países já compraram aviões militares brasileiros.

Lino Rodrigues

O bode da FAB

Uma grande maracutaia de US$ 92 milhões sobrevoa o crepúsculo do governo FHC: a compra sem licitação de 12 Kfir, um caça ferro-velho israelense desativado há 12 anos em Israel. O próprio comandante da Aeronáutica, brigadeiro Carlos Baptista, está defendendo a idéia, que provoca turbulências no Alto-Comando. Adaptação israelense dos Mirage vitoriosos da Guerra dos Seis Dias, de 1967, o Kfir envelheceu, foi desativado – mas continua pairando sobre a FAB. O brigadeiro Baptista imagina usar o avião para cobrir o intervalo entre a desativação dos Mirage de Anápolis e a chegada dos novos caças, prevista apenas para 2006.

O principal inspirador de Baptista é um velho amigo, o brigadeiro da reserva Lauro Ney Menezes, ex-comandante da base aérea de Santa Cruz (RJ) e atual presidente da Associação Brasileira dos Pilotos de Caça. Hoje pilotando um escritório de lobby no Rio, Menezes tenta empurrar a sucata há dois anos, como representante da fábrica israelense IAI. “Este avião israelense é pior do que os nossos velhos Mirage. Foi feito para bombardear barraca de árabe no deserto”, critica o brigadeiro Sérgio Ferolla, criador do Centro Tecnológico da Aeronáutica e ministro do STM. “Quem fala sobre isso é o comandante Baptista. Eu não falo nada”, esquiva-se Menezes, desligando o telefone. Compra de avião de guerra, por leasing, é uma novidade que deixa estarrecidos os brigadeiros da FAB – com exceção de seu comandante.

 

Leonel Rocha e Luiz Cláudio Cunha