O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães alerta queo que está sendo proposto ao Brasil não é processo deintegração, mas de anexação

Aos 63 anos, 39 de carreira diplomática com passagem por postos importantes como a chefia do departamento econômico do Ministério das Relações Exteriores, especialista em comércio exterior e professor universitário, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães pertence àquele grupo de diplomatas que, por causa de suas posições firmes e polêmicas, obrigam a burocracia a fazer limpezas periódicas nas próprias posições. O último debate crucial em que se meteu, em agosto do ano passado, custou-lhe o cargo. Declarou abertamente que o Brasil não deveria aderir à Associação de Livre Comércio das Américas (Alca) por considerá-la uma pá de cal sobre qualquer estratégia de desenvolvimento econômico. Acabou exonerado da diretoria do Instituto de Relações Internacionais, braço do Itamaraty destinado a patrocinar estudos, discussões e seminários. Nem por isso abandonou o mote. “O que aí está não é um processo de integração, mas, sim, de anexação”, ataca. Guimarães afirma que o governo Lula herda um cenário difícil, agravado por decisões erradas, mas se diz confiante. Desde a exoneração, divide o tempo entre o “departamento de escadas e corredores” do Itamaraty (ironia aplicada aos diplomatas que aguardam nomeações, sem posto definido) e o trabalho no escritório, um espaço emprestado pelo tributarista e ex-secretário da Receita Federal Osiris Lopes Filho, onde recebeu ISTOÉ para a entrevista que se segue.

ISTOÉ – Qual o cenário para o próximo governo?
Samuel Pinheiro Guimarães

O cenário internacional é de extraordinária instabilidade política, arbítrio, violência. Há estagnação econômica nos três principais polos da economia mundial – Japão, União Européia e Estados Unidos. Há grande concentração de riqueza e marginalização, xenofobia dentro dos países desenvolvidos. A situação é muito desfavorável, mas vejo que está emergindo um sistema multipolar. Além desses três, há a Índia e a China. Outros podem surgir.

ISTOÉ – Nesse cenário, como está o Brasil?
Samuel Pinheiro Guimarães

As pessoas que traçaram a política externa brasileira
nos últimos anos acreditavam que o mundo passava por um processo
de globalização com expansão econômica e abundância de capitais.
Os capitais viriam, modernizariam a economia e transformariam o País
em uma plataforma exportadora. A globalização se mostrou altamente assimétrica, os fluxos de capital gerados eram especulativos e destroçaram economias. No Brasil, houve uma abertura irrestrita
da economia, sem nada exigir em troca. Tradicionalmente, os países abrem seus mercados a partir de negociações porque abrir significa aumentar importações. Libera-se o movimento de capitais, mas se
exige, por exemplo, que os investidores contribuam para o movimento exportador. Isso não foi feito. No Brasil, abriram-se o setor financeiro,
de mineração, telecomunicações, energia… Talvez não conhecessem bem a estrutura do poder mundial.

ISTOÉ – Onde mais o governo FHC errou?
Samuel Pinheiro Guimarães

Uma política que tem uma taxa de juros de 21% estimula investimento especulativo e aplicação em títulos. Há um enorme desemprego em regiões como São Paulo, o que decorre, em parte, de uma política tecnológica equivocada, que não leva em conta as necessidades de emprego. Se tudo se resume à lei de responsabilidade fiscal e à taxa de juro elevada, não deu certo. Um governo não pode governar para as instituições financeiras nacionais e internacionais.

ISTOÉ – A Alca não seria uma chance para o Brasil expandir mercados?
Samuel Pinheiro Guimarães

A Alca tem sido apresentada apenas como uma
questão comercial, mas ela tem vários objetivos. Eliminar todas
as barreiras tarifárias e não tarifárias ao comércio de bens e
serviços, estabelecer uma disciplina de capitais estrangeiros
de tal forma que o Estado não possa orientá-los, tornar mais
rígidas as regras de propriedade intelectual. Na prática, a Alca
impede que os Estados tenham política econômica.

ISTOÉ – O sr. não está exagerando?
Samuel Pinheiro Guimarães

Se não for possível disciplinar o capital estrangeiro nem ter tarifas, como estimular as exportações? As maiores empresas do mundo, com maior capacidade organizacional, dinamismo, economia de escala e acesso a crédito concorrerão no mesmo espaço econômico com as empresas brasileiras. O Estado precisa ter os instrumentos de política econômica para enfrentar os desafios da sociedade brasileira. Entre 30 milhões e 50 milhões de pessoas estão excluídas. As empresas brasileiras são eficientes, mas é óbvio que, quando se tem igualdade de competição entre empresas assimétricas, as médias, por mais eficientes que sejam, quebram ou são absorvidas. Se a nossa tarifa média é
mais elevada que a americana é porque, na média, as empresas americanas são muito mais competitivas que as brasileiras.

ISTOÉ – O sr. já fez contas, cenários a esse respeito?
Samuel Pinheiro Guimarães

Tem sido colocado que a integração aponta para
um leve aumento nas exportações. Seria verdade para alguns
setores, mas também haveria um aumento das importações. Uma
área de livre comércio onde os países são muito assimétricos agrava
as diferenças. Os EUA têm 80% do PIB das Américas. Pode haver
um déficit. Ver isso não depende de conta.

ISTOÉ – Mas o Brasil é competitivo em setores importantes.
Samuel Pinheiro Guimarães

O Brasil é muito competitivo em café, siderúrgicos, têxteis e calçados. São as commodities mais simples, onde há mão-de-obra mais barata. Ser competitivo, no caso brasileiro, em geral, significa pagar salários mais baixos. Não é coisa para ficarmos muito satisfeitos.

ISTOÉ – Houve uma virada surpreendente na balança comercial. O sr. não estaria subestimando a capacidade brasileira de competir?
Samuel Pinheiro Guimarães

O superávit que temos agora é baseado na estagnação
da atividade econômica. Um aumento de 1% nas exportações contra
a queda de 17% nas importações. Para ter um superávit saudável
é preciso aumentar as exportações, agregar valor, diversificar
mercados. É preciso ter política comercial.

ISTOÉ – O que está colocado é a Alca entrar em vigor em 2005. O que o próximo governo pode fazer? Dizer não?
Samuel Pinheiro Guimarães

É preciso uma avaliação séria do que significa a Alca em termos de restrição da capacidade de fazer política econômica, ou vamos ficar diante de uma situação muito grave. Além disso, o próprio governo americano diz não à Alca quando afirma que não negociará produtos agrícolas e a sua legislação de defesa comercial. Avançam em outras áreas, que lhes interessam.

ISTOÉ – Mas é possível dizer não à Alca?
Samuel Pinheiro Guimarães

Não se trata disso. Embora eu ache que o resultado final dessa integração seja altamente prejudicial a qualquer estratégia de desenvolvimento econômico, hoje em dia há condições para vincular de forma precisa negociações entre diversos setores.

ISTOÉ – O País não pode perder mercados, sofrer represálias?
Samuel Pinheiro Guimarães

O Brasil não tem dez milhões de habitantes, tem 170 milhões. Não é obrigado a fazer nada que não deva. Imaginar isso é
um equívoco. As relações de comércio são regidas pela OMC. Além
disso, há interesses americanos no Brasil. Não é simplesmente dizer
não à Alca. Devem-se colocar na mesa os temas que nos interessam
e condicionar o avanço. Não podemos abdicar de instrumentos de promoção do desenvolvimento econômico e social. Ou o Brasil resolve suas disparidades, vulnerabilidades e constrói uma infra-estrutura
para garantir o crescimento, trilhando um destino de grandeza,
ou mergulhará na estagnação e na instabilidade social.

ISTOÉ – O sr. teria dito que o Brasil não deveria se sentar à mesa para negociar a Alca. O sr. mudou de posição?
Samuel Pinheiro Guimarães

Tal como está, a Alca elimina instrumentos de política de desenvolvimento imprescindíveis. Seria necessário uma Alca diferente. Por exemplo, teria que haver transferência de fundos compensatórios entre os países para reduzir assimetrias, como na União Européia. Liberdade para movimentação de mão-de-obra, o que, no caso do Brasil, seria fundamental. O que eu sempre disse – e continuo dizendo – é que não podemos abrir mão de instrumentos de política industrial. O que está aí não é um processo de integração, é uma anexação. Resta saber como transformar um processo de anexação em um processo de integração. Entrar na Alca como ela está poderia levar o Brasil a uma situação tão grave que o País não seria capaz sequer de cumprir o tratado.

ISTOÉ – Como seria o Brasil sem a Alca. Não perderia mercados?
Samuel Pinheiro Guimarães

Não temos nada a temer da concorrência dos outros
países na América Latina no mercado norte-americano. Têm uma estrutura econômica muito menos diversificada. Não competem
com o Brasil ou, quando competem, o fazem com produtos que
já têm tarifa zero. O problema maior está na concorrência com
os produtos americanos em cada um dos mercados maiores.
A solução é investir em acordos bilaterais.

ISTOÉ – O que deveria ser feito?
Samuel Pinheiro Guimarães

Essencialmente, o Brasil deve investir na integração
sul-americana. Também nas relações com os Estados Unidos e,
em seguida, na possibilidade de estabelecer laços muito proveitosos
de cooperação com países como China e Índia, que, além de
serem semelhantes ao Brasil, têm elevado grau de desenvolvimento científico e tecnológico em áreas importantes para o País.

ISTOÉ – É crível expandir as relações com os Estados Unidos e ao mesmo tempo dizer não à Alca?
Samuel Pinheiro Guimarães

Não se trata de dizer não à Alca. O Brasil tem
seus objetivos e os Estados Unidos têm os seus. É definir
os melhores meios. Mas o compromisso brasileiro tem que
ser com a sociedade brasileira, não com os EUA.

ISTOÉ – O Mercosul está em frangalhos. Como promover essa integração sul-americana?
Samuel Pinheiro Guimarães

É preciso repensar o Mercosul. Ele tem que deixar de ser uma união aduaneira neoliberal, onde se eliminam as tarifas para ver o que acontece. O Mercosul também não tem fundos de compensação, não tem política agrícola e industrial, não tem coisa nenhuma. Isso gera ressentimentos, porque aumenta os desequilíbrios. É preciso transformá-lo em uma união econômica semelhante à européia, que preveja a redução das assimetrias e onde o Brasil tenha uma posição que corresponda ao seu peso econômico e político.

ISTOÉ – Na integração sul-americana que o sr. propõe, o Brasil teria que investir nos parceiros. Isso seria factível? Também estamos em crise.
Samuel Pinheiro Guimarães

O BNDES é um dos maiores bancos de investimento
do mundo. As necessidades dessas economias são razoavelmente pequenas, comparadas com a nossa economia. Pode-se, por exemplo, abrir linhas de crédito para empresas brasileiras que queiram investir naqueles países em associação com empresas locais.

ISTOÉ – O sr. mostrou um quadro difícil. Como o governo Lula vai se sair?
Samuel Pinheiro Guimarães

governo Lula tem todas as condições de se sair bem em termos de política externa porque parte de um diagnóstico correto da situação da sociedade brasileira, concentrando as  prioridades na geração de emprego, da eliminação da fome e redução
da vulnerabilidade externa. Mas a política externa tem de corresponder ao diagnóstico. Para criar empregos, aumentar as exportações,
é preciso que, externamente, se preservem os instrumentos.

ISTOÉ – Como o sr. imagina que serão as relações entre o Brasil e os Estados Unidos com o novo governo?
Samuel Pinheiro Guimarães

Os Estados Unidos são um importante parceiro
comercial brasileiro, mas não o mais importante. Devem corresponder
a 20% do comércio exterior brasileiro. O Brasil é um local excelente
para os investimentos americanos, que, certamente, não têm receio
de determinadas regras porque delas não têm receio na China.
Investem muito mais lá. Os chineses são duros, sabem o que
querem. Sempre que houver no Brasil a compreensão de que
os Estados Unidos estão contribuindo para o desenvolvimento
brasileiro, não há razão para um conflito maior.

ISTOÉ – A saída é crescer pela exportação. Há espaço?
Samuel Pinheiro Guimarães

Há uma situação delicadíssima. Com a abertura
comercial irrestrita, aumentou o componente importado nas
cadeias produtivas, o que significa que para exportar mais será
preciso importar mais. Promover a substituição das importações
em cadeias produtivas mais importantes não é uma tarefa trivial.
Nos setores mais avançados é grande a presença estrangeira.
Como induzir essas empresas a exportar sem competir com suas
matrizes e filiais presentes em outros mercados? A tarefa é essa.

ISTOÉ – O sr. diverge da maioria dos seus colegas do Itamaraty. Como o sr. reage a críticas que o colocam como um radical?
Samuel Pinheiro Guimarães

Sou até muito ponderado. Não há radicalismo
quando se parte da realidade. Radicalismo é abrir a economia
sem nada exigir em troca.