Patrick Miller nasceu há 23 anos na região de Wishita, no Estado do Kansas. Mas seu destino está diretamente ligado ao dia 12 de
agosto de 1949. Foi nesta data que os países que formavam o corpo das Nações Unidas (ONU) assinaram a Convenção de Genebra, que
entrou em vigor no ano seguinte. Os parágrafos deste acordo tratam das leis da guerra. Ali estão bem enunciados os direitos daqueles que
são feitos prisioneiros em conflitos armados. Miller é soldado especialista americano feito prisioneiro do Iraque no domingo 23, juntamente
com cinco colegas de destacamento. Naquele mesmo dia, as imagens da rede Al-Jazira, do Catar, mostraram ao mundo a figura de um desnorteado Miller respondendo perguntas de um interrogador iraquiano. O espetáculo público e humilhante consistia em clara violação da Convenção de Genebra, e colocou os soldados detidos no centro de uma revolta popular nos EUA.

No resto do mundo, as pessoas se perguntavam se as imagens dos americanos capturados não seriam apenas o outro lado de uma mesma moeda que apresenta iraquianos em ato de rendição, em posturas também humilhantes, com mãos na nuca e ajoelhados em frente a soldados americanos e das onipresentes câmaras da mídia. O jurista Adolfo Gramalli, especialista em Convenção de Genebra, responde:
“As imagens são diferentes em sua própria essência. Os iraquianos
foram filmados no momento da rendição, ou caminhando depois de capturados. As câmeras apanharam a cena, sem que os militares americanos houvessem provocado a filmagem. No caso dos americanos, os presos já estavam sob custódia e seus captores permitiram a entrada de equipes de filmagem no local. E ainda entrevistaram os presos para
o benefício do espetáculo de humilhação. Há grande diferença entre
o trabalho de um jornalista que reporta ações de rendição de soldados
e um show montado com gente sob custódia. No segundo caso,
estão infringindo a Convenção.”

Pelo menos uma pessoa achou algum valor na imagem dos americanos presos. Jessa Miller estava assistindo à guerra pela tevê, quando viu a imagem assustada do marido, Patrick, numa cela iraquiana. “No mesmo momento, caí no chão chorando e rezando. Mandei as duas crianças para o quarto. Elas ainda viram o pai na tela. A mãe de Pat passou ma
l e foi deitar no sofá. Choramos muito, mas, depois, percebi que nem
tudo era má notícia. Eu, pelo menos, pude ver que Pat está vivo e
sem ferimentos aparentes. Pensei nas famílias daqueles que foram
mortos ou estão desaparecidos. Essas pessoas não podem ter a
certeza que eu tive. Gostaria agora que eles mostrassem o Pat todos
os dias, que é para eu ver como ele está.”

Mas o restante da população americana não vê a situação do mesmo modo e o país está balançando entre a dor no coração e o ódio. Diferentemente do que ocorreu quando um outro prisioneiro, dois anos mais novo do que Patrick, também foi mostrado pelas tevês americanas amarrado, ferido, sujo e assustado, respondendo perguntas pessoais feitas por seus captores. O rapaz se chama John Walker e também é americano. Só que ele lutava com os inimigos – no caso, o Taleban, na campanha do Afeganistão. Por ele, ninguém clamou a Convenção de Genebra. É que existem americanos e americanos…

Em mais de um ano, eles nunca receberam visitas de familiares ou amigos, não tiveram nenhuma assistência judicial, como a presença de um advogado. Também sobre eles não pesa nenhum tipo de acusação. Moram em celas apertadas e têm direito a banhos de sol por apenas 15 minutos semanais. Assim vivem os cerca de 650 prisioneiros, de 40 nacionalidades, suspeitos de ligações com o grupo terrorista al-Qaeda ou de serem membros do Taleban, organização radical islâmica deposta na guerra do Afeganistão, no ano passado. As denúncias de maus-tratos vêm desde a detenção e transferência dos prisioneiros ao deixarem o Afeganistão algemados e encapuzados, alguns até sedados, para pequenas celas de 1,80 m por 2,60 m instaladas na base militar americana da Baía de Guantánamo, em Cuba.

As condições da penitenciária melhoraram. Hoje, a maior parte dos detentos não fica mais ao relento e não está mais cercada por arames farpados. Os militares da base naval estabeleceram uma operação que dá prêmios ou castigos aos prisioneiros, dependendo do comportamento. Os “bonzinhos” são transferidos para celas de 12 pessoas na zona 4 do acampamento Delta. Os “malcriados” vão para celas individuais.

O governo americano, responsável pela custódia dos detentos, se
recusa em classificá-los como “prisioneiros de guerra” (pows), status
que lhes garantiria os direitos da Convenção de Genebra de 1949. Para
a Casa Branca, trata-se de “detidos em combate”, categoria inexistente em qualquer lei internacional e que acabou criando um limbo legal,
porque não há como garantir as proteções concedidas a um prisioneiro comum. Como esses detentos são considerados terroristas, o governo americano acha que pode interrogá-los sistematicamente, como vem acontecendo em Guantánamo. Washington também alega que o al-Qaeda não é signatário da Convenção de Genebra porque não é um Estado,
mas uma organização terrorista.

O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), a única entidade que obteve total acesso aos detentos, conseguiu intercambiar 3,3 mil mensagens aos familiares. Em um papel da CICV, com a fiscalização dos militares, os detentos escreveram mensagens e no verso receberam respostas. A Cruz Vermelha, que monitora as condições das prisões, veio este ano mais uma vez pedir a Washington que reconsidere o status dos prisioneiros. Na época em que foi divulgada uma foto em que eles apareciam agachados, com a cabeça raspada (o que fere os preceitos islâmicos), a sirene das entidades dos direitos humanos tocou. Uma das razões da saída de Mary Robinson do cargo de chefe da Comissão de Direitos Humanos da ONU teria sido a condenação dos EUA pelo tratamento aos prisioneiros. Mas hoje esses homens estão condenados ao esquecimento porque não há previsão de quando possam deixar esse estado de penúria. Mais de 20 tentativas de suicído foram relatadas.

“Seria sábio por parte dos EUA aplicar totalmente a Convenção
de Genebra para esses prisioneiros, uma maneira de garantir que
os soldados americanos presos no Iraque também sejam tratados
assim”, afirmou a ISTOÉ Arthur Heltom, do Council of Foreign Relations, em Washington. Para Bush e sua turma, Convenção de Genebra
no olho dos outros é colírio.