Era o oitavo dia dos ataques aéreos da coalizão liderada pelos EUA sobre Bagdá quando o veterano jornalista Peter Arnett ouviu, sintonizando a BBC de Londres, o porta-voz da Casa Branca chamá-lo de mentiroso. “O presidente tinha assistido à minha reportagem sobre o bombardeio a uma fábrica de leite em pó e não ficou satisfeito”, narra o repórter. O governo sustentava que a instalação era um “centro de armas biológicas” e o porta-voz chamou a rede de tevê CNN de “um meio de transmissão da desinformação iraquiana”. “As primeiras reportagens sobre os ataques contra Bagdá, de um modo geral, tiveram a aprovação do governo americano, porque nossa observação sobre a precisão do bombardeio era favorável à política americana. Agora que eu estava vendo o lado negativo, a Casa Branca evidentemente mudou a música”, constatou o jornalista. O episódio ocorreu durante a primeira guerra do Golfo, em 1991, quando Arnett, que já causara incômodos ao governo americano com suas coberturas sobre a guerra do Vietnã (1964-1973), celebrizou-se ao mostrar o “outro lado” do conflito no Iraque, que evidentemente não interessava ao governo americano. Doze anos depois, quando Bush filho tenta terminar o trabalho do pai, a mídia dos EUA está majoritariamente embebida de ufanismo patriótico, mas ao mesmo tempo não detém mais a exclusividade da informação. Assim, o outro lado da história está sendo mostrado pelas redes de tevê árabes, como a Al-Jazira, do Catar, e a Abu Dabi TV (ADTV), dos Emirados Árabes Unidos. Ao contrário das redes americanas, que dão ênfase na pirotecnia dos bombardeios, no ataque das tropas de terra e nos briefings de comandantes, as emissoras árabes estão mostrando imagens chocantes, revelando o drama humano das vítimas da guerra.

No domingo 23, a Al-Jazira veiculou imagens da tevê iraquiana em que apareciam pelo menos seis soldados americanos mortos em combate e uma pequena entrevista com cinco prisioneiros – quatro homens e uma mulher. O Catar, uma península sobre poços de petróleo com sua monarquia absolutista, não é exatamente um modelo de sociedade livre. Já nos Estados Unidos, o berço da democracia, o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, ao ver as imagens, reagiu dizendo que “as redes de televisão que levarem ao ar tais imagens estarão, eu diria, fazendo algo infeliz”. Logo depois que a CBS exibiu as imagens, a porta-voz do Pentágono, Victoria Clarke, ligou para os executivos da imprensa e pediu que não mostrassem o vídeo cedido pela Al-Jazira. Democraticamente, a CBS achou por bem acatar o pedido. As concorrentes NBC e ABC também não levaram as imagens ao ar. O Pentágono certamente nem se preocupou em fazer semelhante pedido à Fox News, do magnata Rupert Murdoch, que tem ninguém menos que o ex-coronel Oliver North, condenado pelo escândalo Irã-Contras, como enviado especial ao conflito. Já a CNN exibiu apenas as fotos dos prisioneiros. A Associated Press Television News, pertencente à AP, uma das mais tradicionais agências de notícias do mundo, chegou a impedir que o material fosse distribuído aos assinantes, mas acabou voltando atrás. Coincidência ou não, na terça-feira 25, a Bolsa de Valores de Nova York cassou as credenciais de dois repórteres da Al-Jazira e até o site da rede foi retirado do ar pela ação de “hackers”.

Repórteres incrustados – Paradoxalmente, do lado ocidental,
nenhum conflito humano teve maior cobertura jornalística do que
esta guerra. Nada menos do que 500 repórteres foram credenciados
pelo Departamento de Defesa para acompanhar as tropas americanas durante a invasão do Iraque. A prática ficou ironicamente conhecida como “embedded” (incrustado), numa denominação de que jornalistas
e soldados dividem a mesma cama. Os resultados desta manobra
já estão sendo vistos como a primeira e maior vitória do Pentágono
neste teatro de operações.

No Vietnã, arranjos paralelos entre comandantes de forças americanas
e jornalistas permitiram testemunhos diretos do que acontecia, no local do confronto. Os relatos das trincheiras serviram para demonstrar que não se tinha o cenário cor-de-rosa pintado nas entrevistas coletivas dadas nos centros de comando em Saigon, e que em última instância aquela era uma guerra que os EUA não iriam vencer. Depois desta experiência, o Departamento de Defesa cassou as credenciais de gente que via a guerra como ela era na realidade. Assim, em episódios como
a invasão de Granada (1983), do Panamá (1989) e a primeira guerra
do Golfo (1991), os repórteres recebiam informações através de um
pool controlado pelos militares.

Até que veio a guerra que a administração Bush perseguia como obsessão. Numa ponta, manipulando os sentimentos do 11 de setembro, a patriotada das grandes redes de tevê. Na outra, a novidade, a cenoura para os jornalistas. A porta-voz do Pentágono, Victoria Clarke, é tida como a mãe do esquema que iria manter a turma da imprensa feliz como coelhinhos. Inventou-se a posição do “embedded”. Ali, não apenas as regras impostas pelo Pentágono são rígidas como têm a vantagem de vir fantasiadas de proteção aos próprios repórteres. Assim, jornalistas com roupas protetoras de ataques químicos, capacetes estilosos e óculos escuros tipo Oakley viram estrelas. Os espetáculos vistos nas tevês americanas mostram repórteres embevecidos com o poderio tecnológico, suas veias pulsando com testosterona pelo fato de estarem ao vivo e em cores experimentando cenas semelhantes a um mau filme de Bruce Willis.

Nem todos, porém, concordam com isso. “A idéia de jornalistas
se permitirem ficar sob as asas das Forças Armadas me parece
muito perigosa. Acho que jornalistas que concordam em acompanhar tropas desse modo se tornam reféns dos militares, que podem
controlar sua capacidade de reportar”, diz ninguém menos do
que o veterano Bernard Shaw, que foi um dos últimos a sair de
Bagdá na primeira guerra do Iraque.

Máxima subvertida – “Esta guerra só foi possível porque a verdade
foi vitimada muito antes dos combates, obscurecida pela propaganda americana, que vendeu ao povo a necessidade do ataque ao Iraque
como forma de defesa dos EUA e a idéia de que a vitória seria fácil
e rápida. Ela é um produto da desinformação produzida pela máquina
de informação e propaganda dos EUA”, afirma o jornalista Eugênio Bucci, presidente da Radiobrás. Mas, para ele, esta invasão está contrariando uma máxima de que, em uma guerra, a primeira vítima seria a verdade. Desta maneira, o quadro muda quando, apesar de todas as pressões,
a realidade da guerra, com vítimas civis e baixas, começa a ser
mostrada por meio do trabalho correto de jornalistas como os da BBC. Afinal, lembrou o veterano correspondente de guerra Phillip Knightley, autor de The first casualty, “os objetivos dos jornalistas são incompatíveis com os objetivos militares”.