O ideal da resistência pacífica, eternizado por Mahatma Gandhi na independência da Índia, parece renascer no mundo com a força de um Tomahawk, o poderoso míssil americano. Essa pode ser a síntese da campanha de boicote a produtos dos Estados Unidos, que atravessa fronteiras desde o início da invasão do Iraque. O movimento, forte nos países europeus que mais se opõem à guerra, também cresce no Brasil, capitaneado por políticos, estudantes, sindicatos e boêmios. “Não beba Coca-Cola” é o slogan mais ouvido. Outro alvo é a rede de lanchonete McDonald’s, mas todas as marcas de gigantes americanos estão sob o bombardeio pacífico. Em menor escala, bem menor, produtos da Inglaterra e da Espanha, principais aliados de George W. Bush, também se encontram entrincheirados.

Não é fácil deixar de consumir Coca-Cola, mas cada vez mais jovens parecem dispostos ao sacrifício. É o caso da estudante carioca
Bartira Prado, 19 anos, que agora só bebe guaraná. “Quero diminuir
a soberania dos Estados Unidos até mesmo aqui no Brasil”, explica.
Os vereadores cariocas contribuíram para o ideal da garota. Por unanimidade, os parlamentares da cidade votaram uma moção que considera o presidente dos EUA, George W. Bush, persona non grata
em solo carioca (o que significa que, se ele visitar o Rio de Janeiro, não será recebido com honras de chefe de Estado). A notícia repercutiu até nos EUA, em mais um exemplo de que o tema desperta paixões. Desde que escreveu em sua coluna dominical no jornal Folha de S.Paulo que “pode parecer infantil, mas Coca-Cola nunca mais”, Danuza Leão tem
sido bombardeada por e-mails. “No domingo em que saiu o artigo, foram duzentos. Até agora, a média é de 100 por dia. Uns três ou quatro disseram que sou idiota, mas quase todos apóiam e sugerem marcas
para boicote. Estou impressionada.”

Não estaria se morasse em Paris, onde o refrigerante Muslim up acaba de ser lançado na linha de frente da guerra ideológica contra o ícone americano. Após classificar a guerra como injusta, Hassen Farsadou, diretor financeiro da empresa, calcula o enorme lucro que poderá ir para seus cofrinhos: “Há cinco milhões de muçulmanos na França e 1,2 bilhão no mundo. São consumidores com forte sentimento contra o Tio Sam.” No Brasil, a campanha anti-EUA coincide com a onda de valorização de produtos nacionais. O deputado Chico Alencar (PT-RJ) distribui mensagem conclamando: “Valorizemos nossos produtos tropicais.” Ele explica que a mobilização é pedagógica, cultural e educativa, por ter uma motivação política. “De quebra, tem efeito nutricional”, pois a proposta é trocar enlatados por alimentos naturais. “Vamos sair do sanduíche e comer a broa de milho, o bauru, o pão de queijo”, incita.

Gasolina brasileira – O deputado está trabalhando junto a ONGs e sindicatos para uma “mobilização de capilarização, um exercício de cidadania horizontal, sem comitê central, sem hierarquia”. Ele participou de uma assembléia com mais de mil educadores do Rio de Janeiro dispostos a ampliar a campanha para as escolas. Os petroleiros também decidiram distribuir panfletos aconselhando os motoristas a optar por postos da Petrobras e Ipiranga, em vez de Esso e Texaco. “O gesto é simbólico e possibilita a atitude individual, diferentemente de passeata ou vigília”, afirma o petista. Ele se diz surpreso com a grande adesão de jovens e adolescentes, justamente os que mais consomem fast-food e os modismos importados.

Caroline Lellis, 22 anos, estudante da PUC de São Paulo, organizou um manifesto e o enviou a vários colegas sugerindo substituir produtos ianques por similares nacionais. “Acho que só vão nos ouvir quando pararmos de dar lucro para eles”, acredita. Na universidade paulista, cartazes com “Diga não ao imperialismo”, “Somos contra a guerra pelo petróleo” e “Queremos paz” multiplicam-se pelo campus. A estudante Maíza Garcia, 21 anos, integra o movimento. “Mesmo com todas as manifestações, Bush e Blair insistem na prepotência do ataque”, diz. É o que pensa o adolescente carioca Rafael Mattos, 14 anos, outro combatente pacífico. “São uns imperialistas que querem ser donos do mundo. Eu já achava isso antes, mas agora acho mais ainda”, afirma o garoto, irremediavelmente divorciado da cultura americana. “McDonald’s nem pensar”, promete.

Truculência – A deputada Janete Capiberibe (PSB-AP) juntou-se ao jovem exército da paz. “A Coca-Cola é o símbolo da truculência econômica e política americana”, afirma a política, que jogou fora todo o estoque doméstico do refrigerante. O marido da deputada, senador João Capiberibe, ex-governador do Amapá, também aderiu. “Como vivemos em uma sociedade consumista, a melhor forma de protestar é mudando os nossos hábitos de consumo”, avalia. Ao ouvir do colega Tasso Jereissati (PSDB-CE) que o boicote poderia até fazer com que sua fábrica que engarrafa Coca-Cola (de Jereissati), em Fortaleza, quebrasse, Capiberibe respondeu: “É só engarrafar sucos de frutas brasileiras, que são mais saudáveis e geram também empregos no campo.”

Não faltam os defensores da supremacia consumista ianque. Irado com manifestações anti-Coca-Cola, Eduardo de Braga Melo, de Niterói (RJ), enviou carta ao jornal O Globo para lembrar aos “arruaceiros de plantão” que “a cada Coca-Cola derramada ou McDonald’s apedrejado, um ou mais brasileiros perdem o emprego”. A filial brasileira da Coca-Cola não se pronuncia sobre a onda de protestos, mas o diretor de comunicação da empresa na Alemanha, Jonathan Chandler, lembrou à agência Reuters que o produto é fabricado no próprio país. “Estão, portanto, boicotando produtos alemães”, argumentou, numa lógica que poderia ser aplicada à situação brasileira. Na mesma tecla bate o McDonald’s: atacar as lojas é atacar o Brasil, já que a rede é a quarta maior empregadora do País, com 36 mil funcionários e recolhimento anual de impostos de R$ 150 milhões.

Na outra frente de combate, Alfredo Melo, dono do tradicional bar carioca Bip Bip, em Copacabana, zona sul, e pai da idéia dos adesivos “Não à guerra – boicote aos produtos USA, Espanha e Inglaterra”, pensa diferente. “Isso é de uma infantilidade atroz: se acabar uma rede, outra vai ocupar o espaço e absorver a mão-de-obra. Com sorte, poderá ser nacional e deixar mais dinheiro aqui, em vez de mandar para fora.”

A adesão aos adesivos do Bip Bip foi tão grande que a primeira tiragem de duas mil peças acabou em poucos dias. A segunda, de cinco mil, é disputada no antigo reduto boêmio de Copacabana. Melo frisa que toda manifestação é bem-vinda, desde que seja pacífica. Não foi o que fizeram os 30 estudantes que se deslocaram de Minas Gerais para jogar pedras, paus e coquetéis molotov no consulado dos Estados Unidos e numa loja McDonald’s no centro do Rio. Para “aproveitar a viagem”, apedrejaram agências de dois bancos, um brasileiro (Bradesco) e outro
espanhol (Santander). Os manifestantes se disseram integrantes
de um tal Movimento Estudantil Popular Revolucionário. “Nosso ato
é um repúdio aos imperialistas”, disse Maria Aparecida de Souza,
27 anos, da PUC de Belo Horizonte.

A internet é fundamental na propagação da idéia. Mensagens eletrônicas pró-boicote circulam com vigor. E já existem vários sites dedicados à campanha, como o www.boycottwar.net, do Idea (Grupo Internacional por Ações Econômicas Diretas contra a Guerra); o www.consumers-against-war.de; e o www.adbusters.org, todos com listas de empresas americanas. Curiosamente, os Estados Unidos experimentam um tratamento que costumam dedicar a países inimigos: o embargo econômico. A guerra ao Iraque parece reacender no mundo o sentimento antiamericano que vigorou nas décadas de 60 e 70, quando os EUA patrocinaram ou participaram de golpes para derrubar governos mundo afora. Desta vez, saem as armas e surgem guerrilheiros sem uniformes dispostos a minar o império pelo flanco mais sensível: o bolso.

Ainda não existem dados que comprovem a eficiência do movimento antiamericano ao redor do mundo. Mas pesquisas realizadas na semana passada por um instituto de Washington em vários países comprovam
um forte desgaste na imagem do país perante o consumidor. O movimento foi detectado, por exemplo, na França e na Rússia, dois países que claramente se opuseram à guerra. Mas também na aliada de primeira
hora – Grã-Bretanha –, a imagem de Tio Sam não anda nada boa. Em
um ano caiu de 75% para 48% o total de pessoas que têm uma visão favorável da América. O dado é desalentador para a máquina de fazer dinheiro em que se transformou o “american way of life” (estilo de vida americano) desde que o Muro de Berlim veio abaixo e os EUA passaram
a comandar um vigoroso processo de globalização. “Produtos americanos desfrutam de uma vantagem competitiva na maior parte do mundo
porque a imagem preponderante é de uma nação amante da liberdade
que respeita os direitos humanos. A guerra vai criar hostilidades que custarão bilhões de dólares às companhias americanas”, analisa o professor de marketing internacional Shih-Fen Chen, em entrevista
ao jornal britânico Financial Times.

Há quem aposte num novo rumo da globalização a partir da derrocada da imagem dos EUA. Países em desenvolvimento, como Brasil, China, Índia e México, encontrariam espaço para impor seus produtos ao redor do globo, livres que estão da pecha de imperialistas sanguinários e insensatos. Defensores da tese lembram que faz apenas 20 anos que as marcas americanas começaram a tomar conta do mundo em larga escala e os próximos 20 anos seriam suficientes para reverter o processo. Outros especialistas apostam numa recuperação do prestígio ianque ao fim do combate no Iraque. Os ânimos esfriariam e a potência continuaria seu curso de dominação do consumo global.