Assustar é fácil. Difícil é perder a pecha de bicho-papão. Que o diga o petista Luiz Inácio Lula da Silva. Mas, na sua quarta campanha pela Presidência, ele não corre mais com esse peso nas costas. Está mais leve. Talvez por isso venha afirmando que nunca esteve tão perto de chegar ao Planalto. O pragmático Lula, aos 56 anos, cansou de ser oposição. Parou de se comportar como tal. Por isso, vem jurando que nesta campanha não vai falar mal de ninguém. Essa talvez seja uma das promessas mais difíceis de ser cumpridas. Com raras exceções, Lula vem se comportando como manda o figurino. Sorri quando é espetado com uma pergunta espinhosa e amacia a voz rouca para não parecer antipático. O PT fez uma verdadeira lipoaspiração em seu vocabulário. Nas 88 páginas do programa de governo, chamado “Um Brasil para todos”, nenhum sinal do “palavrão” socialismo. A palavra “mercado” é uma das campeãs de aparição. O discurso e a prática de Lula estão articulados numa só direção: vitaminar e humanizar o capitalismo brasileiro.

Ao receber carta branca de seu partido para fazer a campanha a seu gosto, começando pela contratação do marqueteiro Duda Mendonça, Lula ficou livre das amarras das patrulhas petistas. “Hoje a posição majoritária do PT é social-democrata. Ao longo dos anos 90, houve um processo de moderação programática que fez com que as pessoas abandonassem o socialismo”, observou Valter Pomar, terceiro vice-presidente do PT, integrante de uma corrente radical no leque ideológico do partido. Em seus discursos de campanha, Lula defende enfaticamente o fortalecimento do capitalismo, sem ter que dar explicações no dia seguinte. Prega insistentemente a necessidade de o País criar um amplo mercado de consumo interno e impulsionar as exportações. O petista começou o mês de agosto colhendo fartos elogios da mídia internacional, que passou a vê-lo como um político maduro e pragmático. Não é à toa que saiu de cena o alemão Karl Marx, o principal teórico da esquerda mundial. Outras referências teóricas e práticas são muito mais presentes nos discursos petistas, como o economista John Keynes, o ex-presidente dos EUA Franklin Roosevelt e o empresário americano Henry Ford. “O nosso projeto de combate à fome é totalmente keynesiano”, exemplificou o economista José Graziano da Silva, um dos mais antigos assessores de Lula. Talvez por essas e outras mudanças, Lula possa até, quem sabe, ganhar o voto mais inusitado de sua vida: o do empresário Mário Amato, o mesmo que afirmou há 13 anos que, se o petista vencesse a eleição, 800 mil empresários fugiriam do Brasil. Hoje Amato não só não fugiria, como não descarta a possibilidade de votar no ex-sapo barbudo no segundo turno. “Eu voto no José Serra. Mas, se for Ciro Gomes e Lula para o segundo turno, vou ter que pensar”, afirmou a ISTOÉ.

Depois de ter sido muito bem recebido na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), no dia 30 de julho, foi a vez de o mercado de capitais matar a curiosidade com relação ao petista. Na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) ele provocou frisson na segunda-feira 5, quando defendeu, sob aplausos dos investidores, a popularização do mercado de capitais, proposta feita por 45 entidades do setor, que elaboraram o Plano Diretor do Mercado de Capitais. Diante de uma platéia de 300 pessoas, mostrou que essa idéia já constava de seu programa de governo. “Lula não provoca mais medo nenhum. Eu o conheci há cinco meses num evento público. Vi logo que ele é uma pessoa muito inteligente e aberta a outras idéias, sem nenhum preconceito. Acabamos convergindo em muitos pontos”, contou o presidente da Bovespa, Raymundo Magliano. “A visita de Lula foi um momento histórico, recheado de simbolismo. Foi a primeira vez, em 113 anos de Bolsa, que um candidato a presidente de esquerda visita a Bovespa.” O entrosamento fez com que Lula indicasse petistas para trocar idéias com o setor e formular propostas conjuntas.

Diálogos – No mesmo dia, pela manhã, Lula havia feito palestra na sede da Associação Brasileira de Infra-Estrutura e Indústria de Base (Abdib), que reúne 160 empresas, que faturam a bolada de R$ 103 bilhões e empregam 294 mil pessoas. Lá, partiu do próprio presidente da entidade, José Augusto Marques, a iniciativa de propor desde já um diálogo entre empresas e PT para dirimir as divergências. O grupo de discussão vai se reunir ainda neste mês. “No programa de energia do PT, por exemplo, há referências sobre a idéia de o setor elétrico voltar às mãos do Estado, o que consideramos uma volta ao passado. Mas, como há abertura por parte de Lula, resolvemos propor o diálogo. Os dois lados têm a ganhar com isso.” Para Marques, não soa falso o discurso de Lula em defesa do capitalismo. “Isso faz parte do processo histórico. Eu acredito na evolução das pessoas e dos partidos. É claro que restam reservas com relação ao PT por conta da mudança rápida de posição”, opinou Marques, que defende projetos de parceria do Estado com a iniciativa privada no seu setor. “É justamente o que os governos municipais e estaduais do PT já têm feito. Estamos mostrando com a nossa prática que defendemos realmente a idéia de fazer parcerias e concessões de serviços públicos à iniciativa privada”, comentou Graziano.

Anos JK – Lula já vinha prometendo em seus discursos pactos com o empresariado em um eventual governo petista. O fato inédito é que ele começou a colocar em prática desde já, em plena campanha, a idéia de sentar à mesa de negociações com os empresários. Cada vez mais ousado, Lula diz que é o único candidato com condições de fazer um pacto social. Inspirações é que não faltam à nova campanha petista. Na seara política, a referência é o Pacto de Moncloa, realizado pelo rei Juan Carlos, na Espanha, em 1978, unindo vários setores da sociedade após a morte do ditador Francisco Franco. Representante da classe trabalhadora, Lula vem prometendo fazer uma aliança com o capital, simbolizada pela escolha de seu vice, o empresário e senador José Alencar (PL-MG). Para onde vai, carrega não só o seu programa de governo como uma pilha de cadernos temáticos de políticas públicas que o Instituto Cidadania elaborou nos últimos anos, sob sua coordenação. Extremamente cuidadoso com a imagem, Lula procura mostrar ao eleitorado que está afiado para assumir o papel de estadista, o líder que irá comandar o grande acordo nacional. Na sua mesa de trabalho, dentro do comitê de campanha, na Vila Mariana, está o livro que lê no momento: O governo Kubitschek. Desenvolvimento econômico e estabilidade política, da cientista política Maria Vitória Benevides, uma das colaboradoras de seu programa de governo. Um sinal de que pelo menos uma coisa ele tem em comum com o presidente Fernando Henrique Cardoso: a admiração por Juscelino, que se elegeu com o slogan “Cinquenta anos em cinco”.

Trabalho e consumo

ISTOÉ – Qual é o capitalismo de Lula?
Lula –
O capitalismo brasileiro hoje está inoperante. O atual governo impede que o Brasil seja capitalista porque dificulta o crédito a quem produz e a quem consome, por causa das altas taxas de juros. Em alguns países o crédito à disposição da sociedade é praticamente o PIB todo. No Brasil, representa 28% do PIB. Quero dinamizar a economia. O primeiro passo é fazer o Brasil crescer no mercado interno e externo. O segundo passo é acreditar no minicrédito. Quero incentivar milhares de cooperativas.

ISTOÉ – É a volta do famoso choque de capitalismo, defendido pelo ex-governador Mário Covas em 1989 (quando ele disputou a Presidência pelo PSDB)?
Lula –
O Covas tinha toda a razão quando propôs o choque de capitalismo! Uma sociedade na qual o povo não trabalha, não consome é a negação do capitalismo.

ISTOÉ – Por que um empresário votaria num político que representa os trabalhadores, de um partido de esquerda?
Lula –
Por uma questão de inteligência. O que interessa a um empresário é ver sua empresa funcionando, poder pagar a seus trabalhadores salários decentes e ter a quem vender seus produtos. Os empresários deveriam votar em mim porque somente eu sou capaz de fazer a economia voltar a crescer neste momento.

O primeiro patrão

 

Rejeitado pela classe empresarial nas três eleições que disputou, Lula apenas agora conseguiu despir-se da imagem de sapo barbudo dos patrões. Mas há uns poucos, entre eles, que nunca sentiram o petista entalado na garganta. Desde 1989, Miguel Serrano ignora a luta de classes e vota em Lula. Talvez seja um dos votos mais simbólicos deste ex-metalúrgico que há 13 anos tenta ser presidente da República. Serrano foi o primeiro patrão de Lula. Há 42 anos, o empresário presidia a Fábrica de Parafusos Marte, no bairro paulistano de Vila Independência, fundada por seu pai, quando apareceu por lá um menino pernambucano de 15 anos. “O Luiz (como Lula era chamado na época) era um garoto tranquilo, nunca brigou com ninguém. Muito responsável. Esforçava-se ao máximo para aprender tudo o que podia do trabalho”, lembra o aposentado, hoje com 84 anos. O registro da Fábrica de Parafusos Marte inaugurou a carteira profissional número 51.799, de Lula. Foi através da fábrica de Serrano que Lula teve a grande oportunidade de formar-se torneiro mecânico pelo Senai. “Agora chegou o momento de o povo brasileiro dar a oportunidade a Lula”, diz.

Serrano lembra bem do ex-empregado, com quem conversava todos os dias e até jogava futebol. Lula também não esqueceu o primeiro emprego. “Eles me tratavam como se eu fosse o caçulinha da
fábrica. Só tinha eu de menor lá”, conta o petista no livro
biográfico O filho do Brasil, de Denise Paraná. Além de dar os primeiro passos na profissão, como aprendiz de torneiro mecânico, ele era uma espécie de office-boy e atendia o telefone. Foi no dia 23 de agosto de 1960 que ele começou o trabalho, pelo qual recebia um salário mensal de Cr$ 2.950 por uma jornada que começava às 7h30 e acabava às 16h30. Saiu de lá quatro anos depois ganhando Cr$ 6.850. O que mais marcou o ex-chefe era o destino que aquele adolescente dava a seu salário. “Ele entregava o dinheiro todinho para a mãe. Ficava tão orgulhoso de estar trabalhando que às vezes sujava a roupa de graxa para mostrar em casa”, conta. A mesma lembrança é registrada por Lula no livro: “Quando eu cheguei em casa para entregar meu primeiro salário para a minha mãe, eu cheguei com um orgulho! Era como seu eu fosse o rei da cocada preta. Eu me sentia o dono do mundo.” É desta atitude que Serrano tira a conclusão de que Lula vai cumprir suas promessas de campanha. “Quem era responsável com 15 anos continua a vida toda. É uma questão de formação. Não voto nele por ter sido seu patrão, mas porque o acho um líder, um político que briga pelo Brasil”, afirma Serrano.

Longe de ser esquerdista, Serrano, cujo pai, espanhol, era partidário do general Francisco Franco, antes de Lula, votou em Getúlio Vargas, Eurico Gaspar Dutra e Jânio Quadros para presidente. “Eu era empresário. Nunca fui comunista.” Serrano assegura que Lula não é inimigo: “Tem gente que ainda acha que se ele for presidente só vai favorecer os trabalhadores. Vai, mas também vai defender os empresários brasileiros.”

(F.C.)

Não era só Henfil que tinha a sombra de um grande irmão, Herbert José de Souza, o Betinho, eternizado no hino dos exilados de João Bosco e Aldir Blanc e por sua campanha contra a fome. Lula teve seu primeiro contato com o movimento sindical por intermédio de José Ferreira da Silva, o Frei Chico, que o indicou para uma das suplências da diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Era 1969. Militante do clandestino “partidão” – o Partido Comunista Brasileiro –, Frei Chico insistia com Lula para que lesse os jornais e boletins produzidos pela esquerda sindical contra a ditadura militar. Cinco anos depois, Frei Chico foi preso e torturado. O fato ajudou a moldar a personalidade de Lula, que passou a liderar os operários de toda a região do ABC. Na segunda-feira 5, o pernambucano Frei Chico, 60 anos, ganhou o direito de receber R$ 18 mil por ter sido cassado, em 1975, quando era vice-presidente do sindicato. Ele, que sobrevive “fazendo biquinhos”, como vender caixas-d’água, não gostou do valor e vai recorrer.

Ele fez a cabeça de Lula

ISTOÉ – Satisfeito com a anistia?
Frei Chico –
Esse valor é injusto. Quero indenização pelo que eu ganhava na época como vice-presidente do sindicato. E as dores da tortura? E o prejuízo de saúde que carrego para o resto da vida? Fiquei 78 dias preso no Doi-Codi. Depois tive ponte de safena, o cacete. Na empresa onde eu trabalhava (Confab Industrial) os caras ficavam me seguindo. Vou recorrer.

ISTOÉ – O que o Lula tem dito?
Frei Chico –
Ele acha que essa frente que governa o Brasil há mil anos pela primeira vez está dividida. E isso beneficia meu irmão.

ISTOÉ – Acha que dessa vez ele ganha?
Frei Chico –
Acho que agora vai!

Ricardo Miranda

Novos eventos externos  

depois de ter sido apontado como um candidato com “retórica populista” pelo jornal britânico The Times, em 22 de julho, e de ser visto com preocupação pela revista alemã Der Spiegel, que na edição de 5 de julho previu o desastre com sua eventual eleição, Lula passou a receber elogios no Exterior em artigos publicados desde a primeira semana de agosto. Elogios que partem até de publicações especializadas em negócios, como a revista americana Latin Trade, cujo público-alvo são executivos que investem na América Latina. “Leia meus lábios: Lula pode se tornar bom para os negócios”, opinou Jack Epstein, colunista econômico da revista. “Se ele conseguir garantir um prato de comida para cada brasileiro e fizer os ricos pagarem sua fatia de impostos, o mandato presidencial de Lula terá desencadeado uma revolução”, completou.
Em 4 de agosto, o The New York Times afirmou que “alguns dos principais executivos de negócios do Brasil dizem que um governo Lula pode até ser mais combativo em fóruns como a Organização Mundial do Comércio”. A última edição da revista americana Newsweek publicou a reportagem “Dizendo não à ilusão”, na qual afirma que o programa do candidato é “bastante razoável” e o eleitorado brasileiro parece estar na contramão do resto da América Latina, ao apostar numa opção não-populista: “Se Lula entender que o Brasil precisa, acima de tudo, de pragmatismo, pode romper com a série de derrotas.”

 

John M. Keynes, o papa da macroeconomia
O livro A teoria geral do emprego, juros e moeda (1936), do economista britânico, fundou a moderna macroeconomia. No século XX, Lord John Maynard Keynes (1883-1946) foi o pensador econômico que mais influenciou a humanidade, depois de Karl Marx. A principal idéia keynesiana hoje parece óbvia: o mercado não consegue sair sozinho das situações de crise. Por isso, é preciso a intervenção do Estado na economia para auxiliar na sua regulação. Para Keynes, a política governamental deve incluir tributação, taxa de juros, oferta de dinheiro (crédito), investimento em obras públicas, entre outros. A Europa do pós-Segunda Guerra se apropriou da teoria na tentativa de formar o “estado de bem-estar social”: garantia de emprego, bons salários e ampla cobertura social, tudo para fortalecer o mercado consumidor. Keynes também teve papel fundamental na conferência de Bretton Woods, em 1944, que levou à criação do FMI e do Banco Mundial.

Karl Marx, o ideólogo da revolução
O filósofo alemão foi o teórico que mais influenciou o pensamento ocidental no século XX – não só na economia como em quase todas as áreas. Em O capital, mais importante obra da história dedicada ao estudo do capitalismo, Marx (1818-1883) define a “mais-valia”: parte do valor da força de trabalho será sempre apropriada pelo dono dos meios de produção. É a exploração do homem pelo homem. Em 1848, com Friederich Engels, escreveu o Manifesto comunista, a obra que balizou os
movimentos revolucionários em todo o mundo. Lá está escrito: “Proletários de todo mundo, uni-vos.”

Henry Ford, o patrão amigo
O empresário americano revolucionou a indústria implementando em sua fábrica de automóveis a linha de montagem. Henry Ford (1863-1947) queria altos salários, produção em larga escala e baixo custo. Aumentando a renda de operários e vendedores, cresciam a produtividade e o poder de compra: “O sonho de todo trabalhador é ter um carro Ford.” Em 1914, passou a pagar aos seus funcionários o dobro da média salarial do mercado e o resultado, até então desconhecido, foi a otimização do tempo e do trabalho.

Franklin D. Roosevelt, o pai dos desempregados
Depois do crash da Bolsa de Nova York, em 1929, 13 milhões de americanos estavam desempregados – um quarto da força de trabalho do país. Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), que assumiu a Presidência dos EUA em 1932, disse em seu discurso de posse: “O único medo que devemos ter é o do próprio temor.” Em 1933, implantou o New Deal, um programa de reformas sociais e intervenção ativa do Estado na economia como
forma de conter a crise e reduzir o desemprego. O projeto deu atenção imediata à política agrícola, industrial, às questões trabalhistas e ao comércio exterior.