Um padre e um fiel conversam em frente ao altar de uma igreja vazia. “Deus não enxerga diferença entre homens e mulheres, pretos e brancos”, diz o padre, respondendo ao interlocutor. “Ora, padre, este não é Deus, é Michael Jackson”, afirma o irritado fiel, aliás, nem tão religioso assim, vivido por Ricardo Darín na comédia dramática O filho da noiva (El hijo de la novia, Argentina/Espanha, 2001), do argentino Juan José Campanella, em cartaz nacional. A mesma irreverência pontua a comédia romântica Viver mata (Vivir mata, México, 2002), do mexicano Nicolás Echevarria, com estréia no Rio de Janeiro e em São Paulo na sexta-feira 29, sobre a paixão de um artista plástico e uma radialista no caos da Cidade do México. Além do humor, ambos exibem temas atuais e urbanos, muitas vezes violentos, num estilo de fácil comunicação. Não se trata de uma simples coincidência o fato de dois bons filmes de língua espanhola ocupar várias salas de cinema, por anos dominada pela produção hollywoodiana. O cinema latino-americano está na moda. É sucesso nos festivais mais importantes, provoca filas nos países hispânicos e consegue atrair público até nos Estados Unidos, cujos espectadores, como se sabe, detestam ler legendas.

A melhor prova vem do Oscar, o grande termômetro do gosto médio americano. Há dois anos seguidos um longa-metragem latino-americano aparece entre os cinco candidatos ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira. No ano passado foi Amores brutos, de Alejandro González Iñárritu, visto por mais de um milhão de pessoas nos Estados Unidos. Neste ano foi O filho da noiva. E, para desespero de Fernando Meirelles e seu perturbador Cidade de Deus, que também tem chances à indicação, um dos títulos mais cotados ao prêmio de 2003 é o mexicano O crime do padre Amaro, polêmica adaptação para os dias de hoje do livro de Eça de Queirós, que estréia no Brasil em janeiro. Além de ter provocado a ira da igreja mexicana ao mostrar um padre (Gael García Bernal) que rompe o celibato e obriga a amante (Ana Claudia Talancón) a cometer aborto, a fita de Carlos Carrera toca em assuntos espinhosos, como o tráfico de drogas. Mesmo assim, bateu recorde de bilheteria em seu país, atingindo a cifra de mais de cinco milhões de espectadores.

Não é, então, por acaso que Walter Salles, o mais antenado diretor brasileiro, esteja no momento filmando no Chile e na Argentina Diários de motocicleta, sobre as viagens de juventude do guerrilheiro Ernesto Che Guevara.
O filme será falado em espanhol e
traz no papel principal o onipresente
ator mexicano Gael García Bernal, também estrela de Amores brutos
(2000) e de E sua mãe também (2001), de Alfonso Cuarón, outro grande sucesso recente do cinema mexicano, que custou US$ 5 milhões e faturou US$ 13 milhões no mercado americano. Cuarón, radicado nos Estados Unidos desde 1993, onde assinou A princesinha e Grandes esperanças, foi quem percebeu o
vigor do cinema latino e a sua boa receptividade no estrangeiro. Bastou assistir ao violento Amores brutos para fazer as malas e filmar em
seu país natal E sua mãe também, um road movie sobre a iniciação amorosa de dois amigos adolescentes, qualificado de “o Jules e Jim
da era do ecstasy” pelo jornal The New York Times. “O cinema latino-americano só será interessante economicamente quando se tornar
um bloco, como aconteceu com o asiático”, analisa o cineasta.

Mesma perspicácia teve o diretor argentino Juan José Campanella. Há três anos, quando os filmes argentinos começaram a repercutir – entre eles o elogiadíssimo Mundo grúa (1999), de Pablo Trapero, e Plata quemada (2000), de Marcelo Piñeyro –, ele decidiu voltar a filmar em Buenos Aires. Primeiro, realizou El mismo amor, la misma lluvia. Depois, baseado em sua própria relação com a mãe, filmou O filho da noiva. A história fala de um estressado dono de um restaurante italiano, Rafael Belvedere (Ricardo Darín), que resolve revirar sua vida do avesso depois de sofrer um infarto. Divorciado, pai de uma garota que ele pouco vê e amante de uma estudante a quem não consegue retribuir o afeto, Rafael passa a dar mais atenção aos que o cercam, especialmente à mãe desmemoriada, Norma Belvedere (Norma Aleandro), que seu pai quer levar ao altar após quatro décadas de união.

Trata-se de uma história sem grandes pretensões, mas conduzida com extrema delicadeza. O mesmo acontece com Viver mata, só que num registro mais debochado. De um lado está o artista plástico  Diego (Daniel Gimenez Cacho),  preso com os amigos num engarrafamento na caótica periferia da Cidade do México. Do outro, Silvia (Suzana Zabaleta), que  cuida dos informes sobre o trânsito na Rádio Enlace. Os dois se apaixonam. É um enredo convencional,  mas com uma imagem extremamente nova do México. O melhor é que estes filmes são apenas a ponta do iceberg de uma produção de excelente qualidade, ainda longe do grande público, caso dos aclamados La ciénaga (2001), da argentina Lucrecia Martel, e Japón (2002),  do mexicano Carlos Reygadas. Que eles cheguem logo às telas.