José Vicente, presidente da Afrobras, acha que valorização do negro depende da visibilidade e de um maior poder aquisitivo

Em outros tempos, os negros brasileiros não tinham o que comemorar no Dia Internacional da Luta Contra a Discriminação Racial, em 21 de março. Mas, sob uma perspectiva mais otimista, este ano já deu muitas alegrias ao movimento negro do País. Quem diz isso é José Vicente, presidente da ONG Afrobras, feliz com os quatro ministros negros do governo Lula e com a possível nomeação de um negro para o Supremo Tribunal Federal. “A visibilidade é importante. Estas pessoas servem de exemplo para os que estão no tráfico”, diz ele, cuja própria história poderia servir de estímulo e inspiração para outros negros. Ainda criança, o caçula de uma empregada doméstica trabalhou como bóia-fria em Marília (SP), onde nasceu, mas a dedicação aos estudos fez dele soldado, advogado e, mais tarde, sociólogo. Hoje delegado de polícia, atuando no Capão Redondo, uma das regiões mais pobres da capital paulista, José Vicente está à frente da Afrobras, sem verbas do governo, lutando para aumentar o número de negros nas universidades brasileiras. Fundada em 1995, a Afrobras bate na porta das particulares atrás de bolsas de estudo. “Elas fazem isso por ene motivos, para ficar bem na mídia, não interessa. Mas tem lá nossos bolsistas. É uma troca justa”, diz o pragmático José Vicente. Com sede em São Paulo e escritórios no Rio de Janeiro, Salvador, Piracicaba e Barretos, a ONG mantém 300 alunos, que em troca do benefício dão aulas em suas comunidades. Mas a verdadeira obsessão da Afrobras é inaugurar uma faculdade de negros para negros. A Universidade Zumbi dos Palmares, que abrirá as portas no próximo ano, deve contar com o valioso apoio da Fundação Coca-Cola, sediada nos EUA, onde o reverendo Jesse Jackson representa a ONG brasileira. “A Coca-Cola quer investir por uma questão mercadológica: nós, negros, podemos passar a tomar Pepsi. É negócio”, diz. Segundo ele, o racismo não tem solução, mas a inclusão do negro no mercado consumidor faz com que, pelo menos, ele seja respeitado.

ISTOÉ – Como a Afrobras vê as perspectivas para o negro com Lula?
José Vicente

O fato mais extraordinário é a disposição para encarar o problema. Há dez anos vivíamos a ilusão de que no Brasil não tem preconceito, que temos uma democracia racial. Baseados nisso, passávamos por cima de todos os problemas que dizem respeito ao negro, partindo do pressuposto de que ele se resumia à questão social: “Pobre é assim mesmo e não tem jeito.” De dez anos para cá, finalmente, a sociedade admitiu que é racista, sim. Descobrimos que é impossível
um país ser uma nação democrata se estiver capenga. Uma perna do Brasil, os brancos, anda bem. A outra, os negros, manca, está excluída. A partir da descoberta de que somos racistas, precisamos agir. A
solução não virá a curto nem a médio prazo. Afinal, estamos falando
de 400 anos de escravidão.

ISTOÉ – Como está a situação do negro no Brasil hoje?
José Vicente

Nos últimos dez anos, de maneira paulatina, estão se criando alicerces que permitem a discussão mais ampliada do tema
e a produção dessas primeiras medidas, que podem fazer a inclusão social do negro. Isso eu atribuo ao governo de Fernando Henrique Cardoso, que desnudou a situação. Em 13 de maio de 2002, FHC
instituiu o Programa Nacional de Ações Afirmativas. Aí é que se vê a demagogia, foi no último ano de governo dele. Parece que chegou o
13 de Maio, não tinha o que apresentar e decidiram fazer um decreto. Mas, guardadas as proporções, não existe diferença nenhuma entre isso e o que fez o governo americano em 1962. É uma legislação federal determinando ações. Depois disso, vieram as quatro portarias dos ministérios da Reforma Agrária, Justiça, Cultura e Saúde, determinando 20% de negros nos cargos comissionados.

ISTOÉ – Mas foi a iniciativa do ministro Marco Aurélio de Mello, de adotar as cotas nas contratações do STF, que fez o antigo governo acordar…
José Vicente

Sem dúvida. A postura dele foi um divisor de águas. Depois que o presidente da Suprema Corte disse “somos racistas e medidas para a inclusão do negro são justas e legais”, o que mais se vai questionar? Toda a discussão sobre cotas sempre foi ilegal, imoral ou engordava. Para os negros, nada, porque a “Constituição não permite”. Aí vem o presidente do STF e diz: “Permite, sim, e temos que fazer.”

ISTOÉ – Por falar em Supremo, diz-se nos bastidores que um dos próximos ministros deve ser negro…
José Vicente

Sim. E um negro no STF terá uma carga histórica e emotiva extraordinária. A significação disso para o País, para o negro, é algo fantástico. Estamos jogando uma pá de cal em cima da ilusão de que não existe racismo aqui. Quando se indica um negro para o STF, estamos dizendo que somos racistas, que compreendemos isso como um mal e que vamos mudar. Todos sabemos que o problema existe, suas razões, sua origem. Faltavam ações objetivas, pequenas ou grandes. Eu diria que estamos, com este gesto, refundando a República. Porque os negros não tiveram a oportunidade de gozar da República.

ISTOÉ – Do ponto de vista da visibilidade, do exemplo, principalmente para a juventude, que impacto tem a ascensão do negro em cargos públicos importantes, como em ministérios, no Senado ou no Supremo?
José Vicente

A mensagem é simples: é possível e nós podemos. O efeito disso na vida dessas pessoas é incomensurável. As grandes transformações sociais também se dão pelo impacto psicológico e a partir do momento que se mostra que o negro tem uma alternativa, que pode lutar pelo que acredita, que pode chegar aos lugares que eram de poucos, isso causa uma ação revolucionária interna. A visibilidade é importante para dar o exemplo. A televisão não ajuda. Eles colocam um negro para ser politicamente correto. Se você pegar o programa do Faustão, tem lá 20 bailarinas brancas e uma negra, lá atrás, bem no fundão. Todas as apresentadoras de programas infantis são loiras e nos palcos só tem brancos. Imagine uma criança negra vendo isso. Quando o jornalista Heraldo Pereira apresentou o Jornal Nacional, eu estava num bar com alguns amigos. Todos pararam, brindaram, tomaram mais uma, fizeram a maior festa.

ISTOÉ – A visibilidade tem um significado “psicológico” importante, mas o negro também é excluído economicamente…
José Vicente

Claro. Precisamos de muito mais que isso. Mas quero dizer que há 400 anos nada acontece e agora, pela primeira vez, surgiu uma pequena coisa. É uma pequena grande coisa. Hoje temos 12 deputados negros a mais. Devem ser 28. O vice-presidente do Senado é negro. Quatro ministros são negros. Nosso problema não é se teremos um ou dez ministros no STF, o que nos interessa é que abrimos a porteira. E quando se abre uma porteira, e atrás vem uma manada faminta, ela atropela tudo. Agora ninguém nos segura. Não é só isso. Tem a Secretaria de Promoção Racial, as cotas no Rio, as cotas na Bahia, a Faculdade Zumbi dos Palmares. Enfim, uma revolução subterrânea está rolando e ninguém está se dando conta disso.

ISTOÉ – Como a Afrobras está acompanhando o caso das cotas na Uerj?
José Vicente

Apesar da falta de uma estruturação mais definida, a cota no Rio cumpre um objeto relevante: inicia um debate. O problema lá é que aproveitaram a carona e enfiaram alunos de escola pública nas cotas. A legislação trata de negros e eles aproveitaram e jogaram os pobres. Truncou o processo: nem pobre nem negro. Temos 166 mandados de segurança na Justiça do Rio. Na verdade, uma cota
de 10% ou 20% de negros dentro do universo do ensino superior
é nada. O sistema público federal abriga um milhão de universitários
e 20% disso são 200 mil. Não é grande coisa. Mas a cota tem a capacidade de provocar polêmica.

ISTOÉ – Em São Paulo não se discute cotas nas universidades públicas, como a USP ou a Unicamp. Por quê?
José Vicente

De fato. As cotas são discutidas no Rio, em Brasília, na Bahia, mas não em Goiás, em São Paulo, em Minas Gerais. Isso
deixa claro que não existe uma disposição nacional para o tema. Garotinho assumiu o risco e vai colher os frutos até o fim da vida.
Mas São Paulo, como a locomotiva do País, deveria ter saído na frente. Quem poderia aperfeiçoar essas medidas é a universidade, e nessa
hora ela não tem posição. Esse tema na USP é tabu. Nem com a
polêmica da Uerj se falou sobre o assunto. Não dá para entender
por que o maior Estado e suas cabeças pensantes não discutem nem produzem nada. Assusta e preocupa saber que as universidades
públicas de São Paulo se mantêm em silêncio. Não gostam de cotas?
Nós, negros, também não gostamos, mas elas são o centro do saber
e têm instrumentos para pensar em uma alternativa.

ISTOÉ – Quantos negros vivem em São Paulo?
José Vicente

A proporção aqui é de 30%. Algo em torno de 3,5 milhões de paulistanos são negros, mas falta representatividade política. Quantos são os deputados negros do PSDB? Nenhum. Quantos são os secretários negros da prefeita Marta Suplicy? E do governador Geraldo Alckmin? É justamente este o nosso grande problema. Temos um núcleo duro de poder que se encontra muito mais em São Paulo que em qualquer outro lugar. Aqui, importam o nordestino até para fazer comida japonesa e nas churrascarias só tem catarinenses e gaúchos. Ou seja, nem no nosso espaço nós temos espaço.

ISTOÉ – Nas favelas, que discurso funciona com os garotos tentados a pegar numa AR-15?
José Vicente

Ação e recompensa. Por que ele trafica? É porque adora correr risco de morte? Não, é porque lhe traz um prêmio qualquer. Se pudéssemos substituir esse prêmio, a gente faria a inclusão. Se não criarmos uma alternativa qualquer para essas pessoas, e 90% delas são negras, o Brasil será tomado. É preciso enfrentar o problema da exclusão. Enquanto a madame dá festas para seu cachorrinho de estimação, um exército armado do outro lado da rua está pronto para a guerra.

ISTOÉ – O racismo não tem solução?
José Vicente

Nem no Brasil, nem em Israel e na Palestina, em lugar nenhum no mundo. O que se pode fazer é minorá-lo a ponto de que seja razoavelmente suportável. Uma das formas de fazer isso é colocando dinheiro no bolso do negro. E, com dinheiro no bolso, podem não gostar de você, mas te aturam. Precisam te respeitar como cidadão. Há uma classe média negra se fortalecendo que está descobrindo isso. Ela tem uma capacidade de consumo de R$ 600 milhões e uma renda de R$ 50 bilhões. As empresas descobriram isso e aí o negro começa a aparecer minimamente na mídia dirigida, principalmente em produtos e serviços.
A globalização empurra para a pobreza, mas as empresas buscam lucro onde houver possibilidade. Não quer nem saber se o consumidor é
negro, chinês ou japonês. Você pode comprar? Ótimo. E como é que
eu faço para você comprar meu produto? E aí ele começa a fazer a inclusão do negro. Porque é bonzinho? Não. Porque o negro é mercado. Nos eventos da Afrobras, que são feitos no Hotel Maksoud Plaza,
nunca tantos negros foram vistos de carro importado, lindos, bem-vestidos. Que negros? Os da periferia? Não, o general, o empresário,
o advogado, o profissional liberal.

ISTOÉ – Que sinais o governo Lula já deu?
José Vicente

No discurso de posse, o Lula falou em “Mãe África” e a primeira medida foi reatar relações diplomáticas com seis países africanos. E onde a Afrobras entra? Bom, se eles vão fazer a exploração político-econômica, então o trato político-cultural é nosso. Para que outra vez não aconteça a mesma coisa. O BNDES financia bilhões para empresas de cosméticos, mas quem vai comandar essas empresas?
Os negros? Se há um nicho mercadológico, é preciso preparar nossos futuros empresários negros. Não queremos 100% desse nicho, mas
que pelo menos possamos abocanhar 40%, para ter essa possibilidade
de acesso para a classe média negra. Será essa classe média que vai
dar suporte para que os garotos do tráfico entendam que é preferível estar aqui do que lá.

ISTOÉ – E é aí que entra a Universidade Zumbi dos Palmares?
José Vicente

Exatamente. O grande pulo-do-gato dos dominadores em relação aos negros do Brasil foi que não nos ensinaram a contar dinheiro. Será impossível falar de classe média negra, de empresário negro, de jovens saindo do tráfico se não começarmos a preparar nossa futura classe média e empresarial. Precisamos de um espaço para isso porque a USP não vai fazer. Mesmo as universidades que vão trabalhar com cotas seguirão o status quo. O negro vai fazer um curso de história, mas vai ter que aprender aquela história e, se não gostar, passa amanhã. O que estamos propondo é diferente. Nós temos o comando. A Zumbi
dos Palmares, uma faculdade de administração, será a primeira da América Latina administrada por negros. Ela tem como fundamento
fazer a inclusão social, e não só de negros, e ensinar este pessoal
a gerir negócios, contar dinheiro, administrar bens. Se tivessem feito
isso conosco, só o Carnaval e o futebol teriam produzido milionários negros como nos EUA.

ISTOÉ – Mais uma vez, volta-se ao tema educação…
José Vicente

Porque a educação é o mais importante. Precisamos começar a analisar os fatos sociais com um olhar diferente. Quem faz a leitura do problema do negro é o branco e, por melhor que seja, ele nunca vai se apropriar da alma negra. O negro precisa estar lá para contribuir com seu olhar, trazer fatos novos. Nosso problema é mais um choque positivo de possibilidade. Eu diria: quer fazer uma revolução no nosso país? Pega R$ 3 bilhões e dá para a Afrobras. É quase nada do Orçamento do Ministério da Educação, ou 2% do orçamento do Estado de São Paulo. Conseguiríamos formar 200 mil jovens negros nas universidades privadas em cinco anos. Hoje há 2,3% de negros no ensino superior público. Sabe qual é o país que tem o maior número de negros no ensino superior brasileiro? Camarões. Estão todos na USP. Engraçado essa performance da USP… Cotista internacional pode porque é bonito.