Os Estados Unidos são o principal importador de petróleo do mundo. Com a invasão do Iraque, eles se apoderam da segunda maior reserva do planeta. O segundo troféu da conquista não é menos importante: o Iraque possui a maior reserva de água do Oriente Médio, motivo de cobiça dos aliados dos americanos. Entre eles o Kuwait, país com a menor disponibilidade de água do globo. Cada kuwaitiano dispõe de dez metros cúbicos ao ano, valor inferior aos 1.000 metros cúbicos considerados pela Organização das Nações Unidas como mínimos para o desenvolvimento humano.

Relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) a propósito do Fórum Mundial
da Água, que aconteceu em Kyoto, no Japão, entre os dias 16 e 23, mostra que outros países enfrentam a mesma dificuldade. A Arábia Saudita e a Jordânia estão entre as nações com a pior qualidade de recursos hídricos do planeta. Há décadas, o governo dos dois países
e o de Israel planejam construir um aqueduto para desviar até seus territórios parte das águas dos rios Tigre e Eufrates, que banham
o Iraque. Em Israel, 40% da água subterrânea está em territórios ocupados pelos palestinos e a escassez já motivou disputas anteriores entre árabes e israelenses. Em 1965, a Síria tentou desviar o rio Jordão de Israel, o que desencadeou ataques aéreos como represália. Mais tarde, foram os próprios israelenses que desviaram a água do mesmo
rio Jordão para irrigar seus plantios, deixando a Jordânia a seco. O relatório da Unesco não faz rodeios e aponta a água como motivo
da próxima crise mundial. “Os suprimentos diminuem enquanto a
demanda cresce em ritmo dramático e insustentável. Em 20 anos,
a média de água por habitante deve diminuir em um terço”, afirma Koïchiro Matsuura, diretor-geral da Unesco.

No Brasil, a situação é outra. Ocupamos a confortável posição de
país com o maior potencial hídrico do mundo, com 17% da água doce. Segundo a Agência Nacional de Águas, cada brasileiro dispõe, em
média, de 40 mil metros cúbicos de água por ano. Na prática, o valor
é menor, já que o problema está na má distribuição. A maior parte
da população vive onde há pouca água: 85,5% dos brasileiros moram
nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul, com apenas 11% do potencial hídrico. Enquanto isso, 14,5% dos habitantes vivem no Norte e no Centro-Oeste, que têm 89% das reservas. Nem os locais ricos em
água estão livres da escassez. Em Roraima, o prefeito da cidade
de Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, anunciou que negocia
a compra de água no país vizinho. Motivo: há cinco anos a prefeitura instalou um depósito de lixo nas nascentes do igarapé Samã,
o que poluiu a água que abastecia a cidade.

Legislação – A falta de leis, ou a confusão entre elas, agrava o uso irresponsável dos estoques hídricos. Em muitos lugares ainda vigora o costume herdado do Brasil colônia, de considerar a água como propriedade privada. Embora a Constituição de 1988 declare os recursos hídricos como bens públicos, o cipoal legislativo complica o gerenciamento racional. Os rios podem ser de domínio da União ou dos Estados, que controlam também as águas subterrâneas, aquíferos e lençóis freáticos. O problema é que, em grande parte, são as águas subterrâneas que abastecem esses rios. Para aumentar a confusão, se a água tiver qualidades minerais que possam ser exploradas comercialmente, ela fica sob o controle do Ministério de Minas e Energia. Com tantos órgãos responsáveis, ninguém controla nada. Exemplos não faltam. Em Brasília, a dois quilômetros da praça dos Três Poderes, o desmando quase fez secar, em 1999, a lagoa do Jaburu, onde fica a residência do vice-presidente da República. Há mais de uma década o empresário José Farani instalou nas redondezas o complexo esportivo-hoteleiro da Academia de Tênis. Para economizar na conta, Farani furou três poços tubulares que forneciam 26 mil litros de água por hora e ficavam ligados 24 horas por dia. Sugou tanto o lençol freático que o volume da lagoa baixou em 25%. Só no início deste mês a Secretaria de Meio Ambiente do Distrito Federal lacrou os poços.

Fazer poços profundos é uma das soluções mais recomendadas pelos especialistas para resolver o problema da falta de água no semi-árido nordestino. Nessa região, a quantidade de água disponível é inferior a 1.500 metros cúbicos por habitante ao ano. A perfuração sem a construção de estruturas para distribuir a água gera problemas piores do que a seca. No vale do rio Gurguéia, no sertão do Piauí, mais de 400 poços profundos foram perfurados nas décadas de 1960 e 1970, mas não foram feitas canalizações para levar a água à população. Em quase 150 poços, a água jorra no nada e evapora com o calor. “O problema do Nordeste não é de pouca chuva, é de muita evaporação”, ensina Aldo Rebouças, o maior especialista em água doce do Brasil.

Segundo Rebouças, o nível médio de precipitação no polígono da
seca é de 600 milímetros a 800 milímetros por ano, índice considerado bom. Acontece que as chuvas se concentram em poucos dias do ano.
E o solo cristalino não permite a absorção da água. Agora, a Agência Nacional de Águas (ANA) e o governo do Piauí tentam lacrar alguns poços. “Estamos resolvendo um problema de décadas”, avisa o presidente da ANA, Jerson Kelman. O trabalho de Kelman para reduzir a dificuldade de acesso no semi-árido e conscientizar para o uso racional lhe rendeu o prêmio Rei Hassan II, uma espécie de Nobel da água, instituído pelo governo do Marrocos.

Em todo o Brasil, e no Nordeste em especial, é preciso planejar o uso dos recursos hídricos. “Não é aceitável que num Estado como o Ceará, onde a água é um bem escasso, os agricultores plantem arroz, cultura que exige enorme quantidade de água”, afirma Kelman. O presidente da ANA foi um dos articuladores de um projeto estadual que levou os rizicultores a trocarem suas lavouras para o plantio de frutas. Em apenas três anos, cerca de dois terços dos produtores de arroz do vale do Jaguaribe viraram fruticultores e aumentaram o PIB do Estado em R$ 35 milhões.

A agricultura é um capítulo à parte. As técnicas de irrigação esbanjadoras e arcaicas consomem 63% da água nacional. E a
poluição por agrotóxicos, utilizados nas lavouras de cana-de-açúcar
e soja, já atingiu reservas importantes. Desde 1995, um grupo de pesquisadores avalia o nível de contaminação química das águas
do Guarani, o maior reservatório subterrâneo do mundo. No Brasil,
a bacia do Guarani se estende pelos Estados de Goiás, Minas Gerais,
São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina. Esse verdadeiro mar sob a terra se espalha ainda pelo Uruguai, parte da Argentina
e uma estreita faixa no Paraguai.

Ainda assim, os problemas do campo não são os mais graves. A poluição dos rios é pior nas cidades, onde há menos água e a demanda é maior. Segundo Aldo Rebouças, nos aglomerados urbanos os esgotos e as fossas já contaminaram praticamente todas as águas à profundidade de até 50 metros. Quem utiliza água de poço urbano tem grande chance de consumir elementos como amônia, nitrito e nitrato, resultantes da decomposição do esgoto. Em números redondos, apenas um quarto da população urbana brasileira tem esgoto tratado. Outros 25% dispõem de rede de esgoto, mas os efluentes são jogados nos rios sem tratamento. No final, mais da metade dos esgotos termina no leito dos rios. Resíduos de combustíveis também são frequentes nas águas subterrâneas em razão dos vazamentos em postos de venda.

Desperdício – O alto nível de poluição das águas urbanas tornou dramático o quadro brasileiro. Ainda mais quando somado ao desperdício, outro vilão nacional. O exemplo mais gritante é o vaso sanitário. A maioria dos aparelhos tem válvulas para despejar até 20 litros de água por descarga, quando a legislação brasileira prevê, desde 1997, que os fabricantes não vendam aparelhos com vazão superior a seis litros. “No Japão, as casas têm o ralo da pia ligado ao depósito do sanitário e usam a água com que lavam as mãos, o rosto e escovam os dentes para limpar seus dejetos”, explica Rebouças. O esbanjamento é herança da idéia de abundância com a qual a população brasileira é educada há séculos. Se a mentalidade não mudar rapidamente, pode ser tarde demais.