Especialista no estudo das máfias, o escritor siciliano Leonardo Sciacia costuma afirmar que “o crime organizado quando reage às leis do Estado oficial faz vítimas anônimas e cadáveres excelentes”. O Brasil, recentemente, contabilizou dois desses cadáveres excelentes, vítimas de um Estado paralelo incrustado nos morros cariocas e nos presídios de São Paulo e do Rio de Janeiro. O primeiro foi o jornalista Tim Lopes, barbaramente torturado e assassinado pelo bando do traficante Elias Maluco, em 2 de junho do ano passado. No final da tarde da sexta-feira 14, o juiz-corregedor da Vara de Execuções Penais de Presidente Prudente (SP), Antônio José Machado Dias, 47 anos, foi morto com três tiros em uma emboscada. Há cinco anos, ele era o responsável pela transferência e concessão de benefícios a presos de sete penitenciárias da região. Entre elas a de Presidente Bernardes, um presídio de segurança máxima onde estão encarcerados líderes do PCC – a maior organização criminosa paulista – e o traficante Fernandinho Beira-Mar. O atentado contra um juiz com fama de ser intransigente com os presos é representativo. Enquanto o crime organizado se mostra cada dia mais ousado, o Estado oficial deixa evidente a falta de uma política nacional de segurança capaz de fazer frente aos desafios impostos pelo Estado paralelo. “No Brasil, segurança pública sempre foi vista como coisa de polícia, assunto de mundo podre”, reclama o sociólogo Rubem Cezar Fernandes, do Viva-Rio, uma ONG que estuda e busca soluções para a questão da violência. “Ao tratar a segurança pública como tema exclusivamente policial, o Estado parte do princípio de que o problema se resolve com a prisão dos bandidos, mas é preciso muito mais que isso”, completa o juiz aposentado Walter Fanganiello Maierovitch, ex-secretário nacional Antidrogas e presidente do Instituto Brasileiro Giovanne Falconi.

A história recente confirma que para vencer o crime organizado não basta a prisão de alguns criminosos. Nos últimos dois anos, mesmo com a prisão da cúpula do Estado paralelo, o Brasil assistiu a inúmeras rebeliões organizadas em presídios e até atentados à bomba na porta de fóruns e de outros edifícios públicos. Os assassinos do jornalista Tim Lopes estão encarcerados, mas nem por isso o tráfico perdeu seu poder no Rio Janeiro. Chegou até a decretar o fechamento do comércio em toda a cidade. Em novembro do ano passado, depois de uma megaoperação policial que culminou com a prisão de 19 pessoas, entre elas lideranças do PCC, o governo paulista comemorou o que seria o fim da organização criminosa. “O PCC é uma organização falida e desmantelada”, garantia o delegado Godofredo Bittencourt. “O PCC não morde mais ninguém.” A garantia dada pela autoridade durou pouco. Quatro meses depois, o governo paulista tenta encontrar os assassinos do juiz Machado. Até a quinta-feira 20, toda a investigação, apesar de não estar concluída, apontava na direção do PCC.

Morte anunciada – Por ser inflexível na remoção dos presos e duro na vigilância dos contatos dos mesmos com as visitas, o juiz Machado era um homem marcado para morrer. Em janeiro de 2001, recebeu uma carta em seu gabinete avisando que sua atuação atrapalhava as organizações criminosas, pois estava retardando a transferência de alguns presos. Em dezembro do mesmo ano, durante uma vistoria nas celas do presídio de Presidente Prudente, a polícia encontrou uma lista com os nomes de dez pessoas que estariam com os dias contados. Entre elas estava o juiz Machado, que até dezembro do ano passado andava acompanhado de seguranças. Na sexta-feira 14, Machado foi morto por volta das 18h30, logo depois de sair do fórum. Ele trafegava com seu Vectra por uma rua residencial a três quarteirões do Palácio da Justiça, quando foi fechado por um Fiat Uno branco ocupado por dois homens. O que estava no banco do carona disparou e atingiu a cabeça do juiz. O Vectra, desgovernado, subiu na calçada e bateu em uma árvore. O atirador desceu do Uno e fez outros dois disparos contra o juiz. O Uno foi roubado em fevereiro, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. “Tudo indica que o assassinato foi planejado há muito tempo e que o PCC pode estar mesmo por trás disso”, avalia o promotor Roberto Porto.

No sábado pela manhã, agentes penitenciários interceptaram, na penitenciária de Avaré, um bilhete destinado a Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, principal líder da organização. No pequeno pedaço de papel, um outro preso ligado ao PCC, Rogério Simoni, o Gege do Mangue, informava: A caminhada é o seguinte: o Machado foi nessa. Foi a Fia que passou. Acredito eu que é a caminhada do câncer, pois a operação que faltava foi marcada e o paciente operado. Ela pediu para dizer que tinham matado o Machado”. Entre os policiais que investigam a morte do juiz não há dúvida: o bilhete é uma satisfação, comunicando que uma ação, anteriormente planejada, fora executada. Na noite de domingo, policiais militares de Campo Grande (MS) prenderam por porte ilegal de arma João Carlos Cariaga, 25 anos, e Edmar dos Santos, 23. Com eles, a polícia encontrou um revólver calibre 38 e uma pistola 9 mm. Apontados como suspeitos pela morte do juiz, os dois passaram por Presidente Prudente dias antes do crime e a fisionomia de um deles é bastante semelhante ao retrato falado feito por uma testemunha. A testemunha, porém, nega que seja a mesma pessoa. Mesmo assim, a polícia aguarda o resultado da balística para definir se os presos são ou não os assassinos do juiz. Somente a perícia irá determinar se foi da pistola 9 mm apreendida em Campo Grande que partiram os disparos contra Machado.

Mudanças – “O primeiro passo para vencer o crime organizado está
na humildade de reconhecer a existência de um Estado paralelo”, receita o juiz Maierovitch. “Precisamos admitir que grandes cidades como São Paulo e Rio correm o risco de virar uma Palermo (reduto da máfia italiana) e que temos de criar uma legislação específica para enfrentar esse tipo de crime.” Em dezembro de 2000, o Brasil assinou em Palermo a convenção da ONU sobre o crime organizado. Além de definir o que é crime organizado (aquele que apresenta controle de território por parte dos bandidos, poder de corromper e extrapola as fronteiras), o documento prevê a formulação de uma legislação diferenciada que assegure um sistema prisional mais restritivo, medidas de emergência
que permitam ao Estado uma maior ação repressiva (incomunicabilidade dos presos e fim de benefícios carcerários) e garantam o anonimato daqueles que têm a função de mandar para a cadeia os criminosos.
No Congresso, porém, até hoje não há um único projeto que transforme em lei os compromissos assumidos em Palermo. “Agora é a hora de
mudar, nem que seja por Medida Provisória”, diz o deputado paulista Afanásio Jazadji (PFL), um veterano defensor da pena de morte. “Nossas leis estão tão equivocadas, que se alguém atirar em uma pessoa que esteja andando com um papagaio no ombro, acertar o sujeito e fugir, depois de 20 anos poderá reaparecer que o homicídio estará prescrito. Mas, se errar o alvo e matar o papagaio, terá cometido um crime ecológico, que não prescreve e é inafiançável.”

Propostas – Até a morte do juiz Machado, as vítimas anônimas e o cadáver excelente do jornalista Tim Lopes mobilizaram a sociedade civil e provocaram alguns discursos acalorados no Legislativo. Com o assassinato de um juiz, o Judiciário parece finalmente ter entrado na luta por mudanças rápidas e já faz pressões tanto no Executivo como no Congresso. Na última semana, o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Sérgio Nigro Conceição, saiu em defesa de maior proteção aos juízes e adiantou que estão em estudo medidas de curto prazo para endurecer a disciplina com relação aos presos. “Cadeia não é hotel”, disse. O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, recebeu do governador paulista, Geraldo Alckmin, sugestões para algumas mudanças rápidas. O governador sustenta que deve ser ampliada de 180 dias para um sexto da pena o regime diferenciado para os presos ligados ao crime organizado. Esse regime determina que o preso fique isolado, sem direito a visita íntima; as conversas com os advogados devem ser agendadas com antecedência; o banho de sol é limitado e não há acesso a televisão, rádio ou jornal. A lei prevê o regime diferenciado por até 30 dias. Apenas em São Paulo é que o regime se estende por até seis meses, mas isso é frequentemente questionado juridicamente e recebe críticas da OAB e de entidades ligadas à defesa dos direitos humanos. “Endurecimento de pena não resolve o problema penitenciário. A legislação dos crimes hediondos não acabou com os sequestros”,
diz Hélio Bicudo, vice-prefeito de São Paulo e um dos principais responsáveis pelo desmantelamento do esquadrão da morte na década
de 70. “Estamos acelerando a implantação de um plano nacional de segurança pública”, promete o ministro Thomaz Bastos. “Esse plano deverá dar ferramentas para que possamos enfrentar o crime organizado sem, contudo, criar um regime de exceção.”

Também na última semana, o Congresso parecia estar caminhando para ações concretas. Na quarta-feira 19, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou um projeto do senador Amir Lando (PMDB-RO) que amplia em até dois terços a pena para assassinos de funcionários públicos no exercício de suas funções. Agora o projeto será levado ao plenário e, se aprovado, seguirá para a Câmara. A deputada Denise Frossard (PSDB-RJ) também se engajou na luta. Juíza, há dez anos ela vem atuando contra o crime organizado e está convencida de que no Brasil ele só se prolifera em razão da corrupção. “Nos projetos que vou apresentar na Câmara, o principal ponto será o combate à corrupção. Não pela vertente moral, mas sim de dotar o Estado de instrumentos de transparência para que se possa alcançar, por exemplo, os juízes que em troca de propinas julgam a favor de criminosos, que são os menos alcançáveis”, diz. A tese é compartilhada por Bicudo. Mais radical, ele acha precipitado atribuir a morte do juiz Machado ao PCC. “A investigação precisa ser profunda. Afinal, ao agir com rigor, ele pode ter contrariado também interesses de agentes corruptos do Estado”, diz. Segundo Bicudo, se a corrupção acabar, acabará também a organização dos presos e o poder paralelo da bandidagem.

Justa causa – Com o Judiciário paulista de luto, o desembargador Nigro Conceição assegurou que não medirá esforços para garantir a vida dos responsáveis pela Justiça, mas adiantou que nenhum juiz irá se acovardar diante dos criminosos, mesmo enquanto as medidas necessárias para dotar o Estado de melhores ferramentas de repressão não forem aprovadas. “Sofro com a morte de uma pessoa que amava, mas não irei me intimidar de maneira nenhuma. Não podemos baixar a cabeça, e se eu tiver que morrer como meu amor morreu, também morrerei”, disse a juíza Cristina Escher, mulher de Machado. “Que não seja em vão a morte dele.”

“Tudo pode acontecer ”

Exército nas fronteiras, polícia nas favelas e traficantes isolados em presídios de segurança máxima. Essa é a receita do general Carlos Eduardo Jansen para deter o avanço do crime organizado. Foi ele quem coordenou todo o esquema de segurança da maior operação militar já realizada nas ruas do Rio de Janeiro, durante a conferência Rio-92. Hoje na reserva, esse especialista em inteligência militar conversou com ISTOÉ:

ISTOÉ – Se lhe fosse dada a possibilidade de cuidar da segurança pública no País, qual seria sua primeira medida?
Carlos Eduardo Jansen
– Eliminaria a capacidade corruptora
do crime sobre o organismo policial. Melhores salários e mais treinamento. Também tiraria todos os policiais de áreas de risco
para que não morem ao lado do inimigo. Falta um pacto de
lealdade dentro das polícias.

ISTOÉ – A polícia deve ser violenta?
Jansen
– Aumentar a violência é abrir mão dos nossos princípios.
Ação policial não é vingança.

ISTOÉ – É preciso mudar as leis?
Jansen
– O que é preciso é que as penas sejam
cumpridas de forma integral.

ISTOÉ – Como combater o tráfico no Rio, onde um milhão de pessoas vivem em 700 favelas controladas por traficantes?
Jansen
– Morro não se sobe. Se desce. Temos que fazer os criminosos descerem. É preciso colocar batalhões no alto dos morros para dividir o comando das comunidades com o tráfico. Depois de promover a paz, faríamos uma invasão social, com a volta do Estado a esses territórios ocupados.

ISTOÉ – Onde deve ficar Fernandinho Beira-Mar?
Jansen
– Ele deveria ser afastado de suas bases. Com três meses confinado, sem nenhum contato com sua base, Beira-Mar poderia ser solto na entrada de sua favela, porque seria assassinado. Ele perderia o valor na organização. É uma sentença de morte para um grande traficante mantê-lo isolado de seu bando.

ISTOÉ – O que representou a morte do juiz Antônio José Machado Dias?
Jansen –
Representou um insulto à Nação brasileira e uma janela aberta ao infinito. A partir daí tudo pode acontecer.

 

O senador sobe o morro

Todo homem público tem de ir aonde o povo está. Essa versão da lógica de Nos bailes da vida, de Milton Nascimento, levou o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) a ignorar os conselhos de sua assessoria e iniciar uma série de visitas a favelas violentas do Rio de Janeiro para falar de paz e distribuição de renda. Na sexta-feira 14, Suplicy subiu o morro na Cidade Alta, em Cordovil, zona norte, que serviu de cenário para o filme Cidade de Deus. Na favela, onde ficou das 18h às 22h – horário perigoso até para os moradores –, o senador fez palestra, dançou em roda de samba e declamou um rap do grupo Racionais MC’s. Ciceroneado por ativistas da ONG Ação Comunitária do Brasil, conversou com jovens que já foram “soldados” do tráfico e hoje fogem dessa sina em oficinas de teatro e capoeira. Depois de passar quatro horas em um território do Comando Vermelho, Suplicy pretende visitar o Complexo da Maré, controlada pelo Terceiro Comando.

“O Estado não pode ficar mais fora dessas comunidades. Só teremos condições de transformar essa realidade se entrarmos e resgatarmos seus moradores”, justifica Suplicy. Em meio ao dilema do governo federal para deter a violência, Suplicy quer dar o exemplo. “Se vou na Fiesp e na Sociedade Rural Brasileira, não posso deixar de ir nas favelas”, compara. O senador observou atentamente as leis paralelas das áreas de risco do Rio. Só entrou com relativa segurança por causa da intervenção da ONG. Não havia polícia nem seguranças. Ficou quase todo o tempo na sede da entidade, na rua Brejo Novo. Ao sair, a van que o transportava teve de apagar os faróis e acender a luz interna, sempre em baixa velocidade. Tinha de estar visível para os traficantes. “As ruas estavam cheias de pessoas. Elas podiam me ver, mas eu não as via direito”, lembra Suplicy, procurando demonstrar que não teve medo. “Fui muito bem recebido”, insiste. “O Brasil precisa de mais políticos assim”, elogia a socióloga Marília Pastuk, superintendente da ONG carioca, que dançou com o senador.

Suplicy discutiu com os jovens seu projeto Renda de Cidadania, aprovado no Senado e em tramitação na Câmara. Pelo projeto, a partir de 2005 todo brasileiro teria direito a uma renda para suprir as necessidades vitais. “É a utopia possível”, defendeu Suplicy. “Se tivessem o direito inalienável de uma renda digna, de serem sócios de sua nação, não teriam de aceitar o narcotráfico como única opção de sobrevivência.” Suplicy encerrou a visita declamando o texto “Eu tenho um sonho”, de Martin Luther King.

Ricardo Miranda