Onze dias antes do segundo turno das eleições, chegou à Procuradoria da República na Paraíba uma denúncia capaz de influenciar o resultado eleitoral em vários Estados. O pernambucano Alexandre Magero de Araújo revelou aos procuradores Antônio Edílio Magalhães Teixeira, Werton Magalhães Costa e Antônio Carlos Pessoa Lins a existência de um milionário esquema de evasão de divisas e lavagem de dinheiro protagonizado pela nata da política nordestina, entre eles o governador eleito da Paraíba, Cássio Cunha Lima (PSDB); a governadora eleita do Rio Grande do Norte, Vilma Faria (PSB); o líder pefelista na Câmara, deputado Inocêncio Oliveira (PFL-PE); e o ex-secretário nacional de políticas regionais Fernando Catão. O depoimento é carregado de detalhes e, para não correr o risco de serem usados para fins eleitoreiros, os procuradores trabalharam em silêncio. Mantiveram as declarações de Araújo sob sigilo absoluto e começaram a checar as informações com o apoio de procuradores de diversos
Estados. Na quarta-feira 6, com boa parte das informações já
conferida, os procuradores da Paraíba encaminharam o caso para
a Procuradoria Geral da República, em Brasília, uma vez que entre
os envolvidos estão parlamentares, prefeitos e governadores.

Durante oito anos Araújo prestou serviços para a Anacor Câmbio e Turismo, empresa que, segundo ele, era usada para as remessas irregulares de dinheiro para o Exterior. A reportagem de ISTOÉ
constatou que a Anacor é uma antiga frequentadora das listas
negras do Banco Central (leia reportagem à pág. 31). E foi trabalhando para a Anacor que Araújo teria tomado conhecimento da Conexão Nordeste de lavagem de dinheiro. Na mesa do procurador-geral,
Geraldo Brindeiro, a papelada da Paraíba caiu como uma luva. Nos
últimos meses a procuradoria vem trabalhando em um inquérito que investiga, com o apoio de procuradores da Suíça, contas irregulares
de brasileiros em paraísos fiscais, entre eles políticos e altos funcionários do Executivo. “Parte das denúncias coincide com o que já vinha
sendo investigado”, disse um procurador sediado em São Paulo.

Precatórios – Araújo afirmou que começou a saber das contas e das remessas de dinheiro para o Exterior em 1996. Ele diz que na época exercia a função de segurança e cicerone de técnicos da Prefeitura de São Paulo que iam ao Recife (PE) para ensinar aos pernambucanos como elevar os valores dos títulos emitidos pelo governo para o pagamento de precatórios. “A participação da Anacor se dava
na lavagem do dinheiro desviado
do Estado em favor do deputado federal Eduardo Campos (PSB-PE), que era o secretário de Finanças de Pernambuco”, contou Araújo
aos procuradores. Ele explicou que, após o pagamento dos títulos,
os reais eram convertidos em dólares, e o superfaturamento era
entregue ao deputado, através de cheques emitidos por laranjas.
Disse também que parte do dinheiro era depositada no Exterior.

Procuradores de Pernambuco avaliam que a denúncia é consistente,
mas precisam quebrar o sigilo bancário para que ela possa ser provada. No entanto, as descobertas feitas pela CPI dos Precatórios indicam
que as revelações de Araújo têm fundamento. A investigação feita
no Senado comprovou que técnicos da Prefeitura paulistana
instruíram colegas de Pernambuco e de Santa Catarina sobre
a fórmula elaborada em São Paulo para tirar dinheiro dos cofres
públicos via superfaturamento de precatórios. Também ficou mostrado
na CPI que a Anacor era uma das empresas beneficiadas pelo
esquema irregular. Por causa de suas implicações nas falcatruas
com os precatórios, em 1998 a Anacor entrou na lista negra do Banco Central e hoje opera na mesma sede no Recife e com os mesmos funcionários, só que com um outro nome: Norte Câmbio e Turismo.

Entre os implicados nas falcatruas da Anacor, o BC aponta
para diversas empresas do deputado Luciano Bivar (PFL-PE).
O deputado é ligado ao senador Carlos Wilson (PMDB-PE) e foi
seu colega de chapa na candidatura do senador por Pernambuco,
como suplente, nas eleições de outubro.

Imóveis e laranjas – “Também participam do esquema de remessa de dinheiro para o Exterior e de troca de reais para dólares, além de imóveis comprados em nome de terceiros, via Anacor, os deputados Eduardo Campos, Ricardo Fiuza (PFL-PE), Luciano Bivar, Márcio Fortes (PSDB-RJ), Inocêncio Oliveira, Armando Monteiro Neto (PMDB-PE – que assumiu a presidência da Confederação Nacional da Indústria em outubro do ano passado), e o senador Carlos Wilson.” No depoimento de sete páginas, Araújo diz que boa parte dos políticos citados investe os recursos desviados dos cofres públicos na compra de imóveis, sempre colocados em nome de laranjas. “Ainda esse ano trouxe dinheiro para João Pessoa (PB) com a finalidade de pagar três apartamentos que Inocêncio Oliveira comprou nesta cidade. A última compra foi feita há cerca de 40 dias. Peguei o dinheiro na concessionária Fiat de Serra Talhada (PE) e trouxe para a capital paraibana, entregando para um dos sócios da construtora do edifício Mirante Cabo Branco. O sócio se chama Marcelo, o valor entregue foi R$ 227 mil e o apartamento é o do sétimo andar.”

O edifício Mirante do Cabo Branco está em um lugar nobre de João Pessoa e suas obras estão em fase de acabamento. O prédio tem 15 andares, um apartamento por andar, com quase 300 metros quadrados de área útil. Corretores de plantão no edifício confirmaram a ISTOÉ que o apartamento do sétimo andar é um dos nove já vendidos. Os procuradores da Paraíba checaram a história de Araújo e se surpreenderam. O imóvel foi comprado à vista por Altevi Leal Martin, dono de um pequeno comércio ambulante em João Pessoa, com faturamento anual de aproximadamente R$ 17 mil. Também ocupa lugar de destaque nas denúncias de Araújo a governadora eleita do Rio Grande do Norte e ex-prefeita de Natal, Vilma Faria (PSB).

“Entre outubro de 1998 e novembro de 1999, por quatro ou cinco vezes peguei dinheiro da prefeita Vilma Faria e levei para a Anacor para ser trocado por dólares. Voltava com os dólares para Natal e entregava
para pessoas ligadas a Vilma. Os contatos eram sempre feitos com
o ex-marido dela, Herbert Spencer Batista, ou com o irmão dele,
Hericson Spencer Batista.” No esquema potiguar, Araújo revela
detalhes que só poderiam ser fornecidos por quem está mesmo no
interior da mutreta. Ele diz, por exemplo, que fez vários investimentos para a governadora eleita, sempre em nome de terceiros. “Vilma comprou um flat na praia de Piedade, em Jaboatão dos Guararapes (PE), e eu
levei o dinheiro, R$ 117 mil, para o pagamento feito a uma pessoa
de nome Marco Antônio, funcionário da Parthenon. O flat foi comprado
em nome de uma cunhada de Vilma, de nome Carina, que é da cidade
de Açu.” Colocar imóveis em nome de terceiros é um método recorrente na história da governadora eleita. Na campanha, foi demonstrado que Vilma possui quatro luxuosos apartamentos no Recife (PE), todos registrados em nome de assessores, amigos e parentes próximos.
Durante a disputa eleitoral, ela não se manifestou a respeito da sonegação. Também nada disse sobre uma suposta conta no Exterior. Pode ser que o progresso nas investigações sobre o depoimento de Araújo explique por que a governadora eleita preferiu o silêncio.

Malas de dinheiro – O esquema da Anacor, segundo Araújo, funcionou ativamente também no Ceará. “Morei um ano e meio em Fortaleza (CE), onde era encarregado de levar o dinheiro de políticos daquele Estado para a Anacor no Recife. Levava o dinheiro dentro de malas e viajava sempre de avião. Levei dinheiro de Fortaleza para o deputado estadual Wellington Landim (reeleito em outubro pelo PSB e presidente da Assembléia Legislativa). Também peguei dinheiro com um assessor do deputado estadual Sérgio Benevides (reeleito pelo PMDB) e do prefeito de Fortaleza, Juracy Magalhães (PMDB). Para ele cheguei a levar R$ 700 mil para o Recife e retornar com o correspondente em dólar. Certa vez Juracy me pediu como brinde uma caneta identificadora de dólar”, afirma. Benevides é também genro do prefeito Juracy Magalhães, manda-chuva do PMDB no Estado. Entre os beneficiários da ramificação cearense, Araújo cita outro peso pesado: o grupo J. Macedo, um dos maiores conglomerados empresariais locais, comandado pelo tucano Amarildo Macedo, ex-coordenador da campanha do PSDB à Presidência no Estado. Para checar as informações, a Procuradoria da República deverá pedir a quebra do sigilo bancário dos envolvidos, mas parte da história contada por Araújo já está constatada.

“Certa vez recebi uma ordem de Josebias (Vitorino da Silva, apontado como um dos donos da Anacor) para intimidar o deputado Wellington Landim. Na semana seguinte, eu e um parceiro de nome Marcão, policial civil, demos três tiros na caminhonete Hilux do deputado, que transitava próximo à Assembléia. Os tiros eram só para assustar e ocorreram no início da noite”, disse. O atentado não se tornou público, mas os procuradores já descobriram que na Polícia Federal do Ceará existe um inquérito sob segredo que investiga os tiros disparados contra o carro do deputado Landim. Segundo as informações contidas nesse inquérito, o carro teria sido baleado no início da noite quando transitava perto da Assembléia Legislativa, exatamente como foi relatado por Araújo.

Contas no Exterior – O depoimento prestado pelo ex-funcionário da Anacor expõe uma série de falcatruas praticadas pelo grupo do governador eleito da Paraíba e ex-prefeito de Campina Grande Cássio Cunha Lima. “Desde 1994, Fernando Catão (ex-secretário nacional de políticas regionais no primeiro mandato de FHC), Ronaldo Cunha Lima, Bertrand Cunha Lima, Ramalho Leite e Cássio Cunha Lima trabalham com a Anacor, mandando dinheiro para a Suíça e para as Bahamas. Ouvi dizer que o grupo já mandou em torno de R$ 23 milhões para contas no Exterior. Eu mesmo buscava o dinheiro para levar até a Anacor. Cheguei a levar R$ 8 milhões em duas viagens há cerca de três anos. A Anacor tem um lucro que varia de 2% a 7% pelo trabalho e providencia a abertura e movimentação das contas no Exterior. Os citados têm duas contas na Suíça, no Banco Credit Suisse, de números 45728 e 47733, sem referência dos titulares. Têm também uma conta nas Bahamas, no Banco Alpha Bank, de número 78784, em nome de uma ex-secretária de Ronaldo Cunha Lima. Além das remessas para o Exterior, o grupo costuma trocar reais por dólares e investe na compra de imóveis sempre usando nome de terceiros, através da Anacor”, relatou Araújo.

Fernando Catão foi indicado para o cargo de secretário nacional de políticas regionais pelo deputado tucano Ronaldo Cunha Lima. Na época, a secretaria tinha status de ministério e sob ela estavam a Sudene e a Sudam, que acabaram sendo extintas por causa de corrupção e desvio do dinheiro que deveria ser usado em projetos de desenvolvimento regional. As investigações sobre esses desvios encontram-se ainda na gaveta do procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro. Na avaliação de procuradores que conhecem o caso, as informações prestadas por Araújo poderão ser os elos que faltam para a descoberta total do esquema montado pelo grupo paraibano para saquear os cofres públicos.

Motivação – Araújo diz que só contou tudo o que sabe porque
está com medo de morrer. “Confirmo e reafirmo tudo o que disse
na procuradoria, mas não posso aparecer publicamente de maneira nenhuma, pois corro sério risco de vida. Preciso de proteção”, afirmou Araújo para os procuradores e se colocou à disposição, inclusive
para eventuais acareações. Araújo sentiu-se ameaçado ao tomar conhecimento de que parte do esquema da Anacor havia vazado
na disputa eleitoral na Paraíba. Temeroso de que o vazamento
pudesse ser atribuído a ele, resolveu abrir o jogo ao Ministério
Público e pedir proteção para si e sua família, embora relute
em aderir ao Programa de Proteção às Testemunhas.

Tiras e fiscais – Além de acusar políticos, Araújo confessou em seu depoimento ter participado de assaltos a bancos, mas garantiu que estava em liberdade por causa de propinas pagas a policiais. Ele também informou que tanto na Polícia Federal como na Receita Federal existe um grupo de funcionários espalhados em diversos Estados que facilitam o funcionamento da Conexão Nordeste. Policiais e fiscais da Receita dão cobertura ao esquema, facilitando o trânsito de veículos carregados de dólares escondidos em falsos cilindros de gás natural veicular pelas estradas da região e também fazendo vista grossa nos aeroportos. Araújo forneceu os nomes de delegados e agentes que atuam em vários Estados, bem como delatou a função de cada um deles dentro do esquema armado pela Anacor. Um dos policiais mencionados por Araújo é o agente da PF José Otávio Queiroga Wanderlei que por diversas vezes o teria acompanhado no transporte das malas de dinheiro e, inclusive, facilitava seu embarque e desembarque no aeroporto do Recife (PE). No final de setembro, Queiroga acabou sendo preso com um grupo de 16 policiais federais, acusado de liderar grupos que facilitavam o desvio de dinheiro público da Prefeitura de Jaboatão (PE) e promovia o tráfico de drogas e de armas. A prisão foi feita em uma parceria da PF com o Ministério Público Federal batizada de Operação Vassourinha.

As primeiras investigações sobre o depoimento de Araújo
revelam que muito do que ele disse é verdadeiro. É evidente
que muito mais precisa ser apurado, inclusive com quebra de
sigilos bancários e fiscais. Para isso, porém, é preciso a ação
do procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, a quem
cabe a exclusividade de investigar os políticos envolvidos.

 

A palavra dos citados

"Só comprei dólar uma vez, há muitos anos, e a compra foi feita no Banco do Brasil”, afirmou o governador eleito da Paraíba, Cássio Cunha Lima. Ele diz que todo o depoimento de Araújo não passa de armação. Cássio assegura que irá questionar o Ministério Público por não ter prendido Araújo, que confessou ser um criminoso. Os procuradores sustentam que tudo será investigado e que o caso foi mantido em sigilo para evitar o uso eleitoral às vésperas do segundo turno. O deputado Eduardo Campos (PSB-PE) disse a ISTOÉ que seus sigilos bancário, fiscal e telefônico estão à disposição da Procuradoria da República. “Votei contra o foro privilegiado para os políticos e mantenho essa postura”, disse. Ele garante que não conhece Alexandre Magero Araújo e nunca ouviu falar na Anacor. Inocêncio Oliveira também nega qualquer relação com a Anacor ou com Araújo. “Só tenho conta no Banco do Brasil, nunca comprei dólar e todo
o meu patrimônio está em meu nome no Estado de Pernambuco”, disse. “Quero que a PF investigue isso a fundo, quero justiça.”
O prefeito de Fortaleza (CE), Juracy Magalhães, não se manifestou sobre as denúncias. Às 16h30 da quinta-feira 21, a reportagem
fez contato com o assessor de comunicações, Hervelt César,
mas até o fechamento desta edição não havia recebido retorno.
No mesmo dia, a governadora eleita do Rio Grande do Norte,
Vilma Faria, não foi localizada pela reportagem.