A dona Armide tem um senso de humor rabugento. O ceticismo sempre foi o maior manancial de suas brincadeiras, que nem todos têm inteligência para decifrar. Para achar suas observações engraçadas, é preciso o dom de rir de si próprio. Sem isso, o humor da dona Armide fere, em vez de divertir.

Tem gente que chega a pensar – sem verbalizar – que ela seja má pessoa. Que os seus chistes são betoneiras que despejam o concreto imobilizante da piada venenosa, do torpedo dirigido contra honras, reputações e orgulhos. Não pode haver avaliação mais equivocada.

Sentar e ouvir os comentários rabugentos da dona Armide é uma delícia. Especialista em trazer os pés dos lunáticos de volta à terra, ela não é de se entusiasmar por paixões que, seus 85 anos lhe ensinaram, perdem parte da incandescência. Só uma nunca diminuiu: o Palmeiras, único motivador da saída de palavrões daquela santa boca. Melhor do que adjetivar o humor da dona Armide é mostrar a sua substância.

Nas férias de 2004, viajamos eu, dona Armide, Tânia (sua filha mais velha) e Wagner (o filho mais novo e meu melhor amigo). Fazíamos de carro um trajeto entre Roma e Perúgia. Ela e a filha iam no banco de trás, eu e o Wagnão, na frente.

Como estava ao volante, tive o privilégio de decidir que CD iríamos ouvir. Coloquei um da banda inglesa de acid jazz Brand New Heavies. Quando estávamos numa estrada tranquila, entrou a faixa “Never Stop”. Ao ouvir os primeiros acordes, deixei escapar em voz alta o que eu pensava: “Um dia, quero beijar uma mulher ao som dessa música”. Ao ouvir aquilo, a dona Armide tocou no meu ombro e disse: “Quero ver se ela tiver a minha tosse”.

Reunimos as famílias para passar o réveillon de 2007 no Guarujá. Juntou-se a nós a Fabiana, neta da dona Armide, filha da Tânia e sobrinha do Wagnão. Na época, ela tinha uns 24 anos e tava toda gatinha. Deu meia-noite na praia, e teve início aquele mar de xavecos, aquela busca desesperada dos jovens por ter a quem beijar. Ah, antes de prosseguir, informo que a tia Lídia, cunhada da dona Armide e de idade similar, estava entre nós. Ela se recuperava de uma operação no fêmur e se locomovia com amparada por um daqueles andadores de alumínio.

De repente, um garoto se aproximou da Fabiana e começou a cortejá-la. O Wagnão é um tio ciumento. Bolamos uma estratégia para mandar pra longe o galã. A ideia foi prontamente aceita pela dona Armide, peça fundamental da nossa estratégia. Coube a ela chegar até o garoto, com a tia Lídia do lado, e dizer: “Ai, que bom que a minha neta está arrumando um namorado. Assim, ela tem alguém pra ajudar a dar banho na gente”. O xavequeiro sumiu junto com os barquinhos cheios de sabonete Phebo endereçados a Iemanjá.

A esta altura, é digno você perguntar o que tudo isso tem a ver com a Olimpíada, razão pela qual eu fui enviado a Londres. Pois eu explico.

A dona Armide morreu ontem e foi enterrada hoje. Um AVC levou a mulher, suas ideias e seu humor embora. Assim, além de demonstrar toda a admiração que eu tenho por ela, a função deste texto é abraçar meu melhor amigo. Ele estava do meu lado quando o último punhadinho de terra foi despejado na cova da dona Ruth, minha mãe, em 1987. Os deveres de ofício e a distância me impediram de retribuir esse ato de camaradagem, generosidade e carinho. Por isso, força, Wagnão, e me perdoe por não estar aí.