A nova guerra no Iraque começou na quarta-feira 19, à moda dos franco-atiradores: com disparos calculados e esporádicos. Não aconteceu a chuva maciça de bombas prometida pelo alto comando americano. A mudança de estilo na “hora H” nada teve a ver com dissimulação, mas sim com aquilo que se chamou “uma janela de oportunidade”. Traduzindo: houve uma tentativa de acertar o ditador Saddam Hussein com três dúzias de mísseis do tipo cruise (de cruzeiro) e mais um punhado de petardos do tipo GBU-28, pesando uma tonelada cada um e conhecidos como “aniquiladores de bunkers”. Esperava-se com isso “decapitar a liderança” iraquiana e ganhar uma guerra que, ao pé da letra, nem havia começado. Queria se dar à “raposa de Bagdá” o seu “Dia do Chacal”.

Foi um esforço válido, mas que no início pareceu frustrado. A figura robusta e desafiante de Saddam Hussein apareceria ao vivo e em cores na televisão cinco horas depois. O fôlego de gato do homem, porém, começava a enfraquecer. ISTOÉ recebeu na quinta-feira 20, um dia depois do ataque, informações de fontes do Pentágono de que Sad-dam estava na mansão de subúrbio demolida pelas GBU-28. Teria sido seriamente ferido, recebido tratamento médico de emergência e seu quadro clínico seria grave. Seus dois filhos teriam tido outro destino: Uday Hussein estaria morto e seu irmão Qsay Hussein assumido a liderança na defesa do regime. O locutor bigodudo e de boina que apareceu na tevê iraquiana seria desmascarado por uma ex-amante do ditador iraquiano: aquele não era Saddam Hussein. A mulher, diga-se, já havia anteriormente impressionado agentes de inteligência de vários países por sua capacidade em distinguir, sem errar nunca, o verdadeiro Saddam entre uma plêiade de sósias. Para todos os efeitos, a cúpula do governo Bush e o Pentágono apostavam que seu inimigo de Bagdá estava com um pé na cova. Sua coroa teria ido para a cabeça de Qsay.

A campanha planejada contra o regime iraquiano, porém, só mostraria seu escopo real três dias depois destas manobras de tiro ao alvo. Na sexta-feira 21, quando os relógios entre os rios Tigre e Eufrates batiam as 21 horas, o céu caiu sobre Bagdá. Cumpria-se a promessa americana de levar “choque e pavor” aos inimigos, através do maior bombardeio jamais visto pela humanidade. Logo nos primeiros movimentos, a capital iraquiana recebeu impactos de 300 mísseis cruises e de milhares de outros petardos vindos de uma enorme seleção de bombardeiros B-2 e B-52 e também de submarinos e navios estacionados no Mar Vermelho e nas águas do Golfo Pérsico. O veterano correspondente Peter Arnett – que como em 1991 resolveu ficar na cidade atacada – declarou que este foi um bombardeio dez vezes maior do que o primeiro ataque de 1991. No entanto, segundo o Pentágono, apenas 46 alvos estratégicos, locais ligados às lideranças do Iraque, estavam na mira durante esta primeira grande onda.

“Estamos procurando ferir o regime naquilo que ele considera mais importante. Estes bombardeios foram exaustivamente planejados para salvaguardar alvos civis”, garantiu o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, na entrevista concedida logo após o início das ações. “A tática nos primeiros momentos foi mostrar nossa flexibilidade ao comando inimigo. Ou seja: estávamos dizendo que podíamos atacar quando e onde desejássemos e que eles não poderiam fazer nada. Uma estratégia que visava obliterar seus recursos militares, demolindo alvos escolhidos e que são preciosos para os membros do regime de Bagdá. A idéia é poupar ao máximo a infra-estrutura civil da cidade”, disse a ISTOÉ o general William Nash, ex-comandante da 1ª Brigada, da 3ª Divisão de Blindados dos EUA. “Os motivos para isso são: evitar a todo custo baixas na população, preservar os recursos necessários para que o próximo governo consiga se instalar rapidamente e levar a liderança militar iraquiana a refletir se vale a pena perder tudo aquilo por causa de Saddam. Temos certeza de que muitos vão achar melhor jogar o tirano fora e preservar sua própria casa do que ser soterrado em nome da lealdade a um condenado”, disse o general. Mas, em se considerando que mesmo as bombas mais inteligentes costumam falhar na pontaria, pelo menos 10% das vezes, é dado como praticamente certo por especialistas que a população inocente também receberá boa dose de “choque e pavor”. De qualquer modo, as luzes de Bagdá continuavam acesas durante todo o ataque, numa prova de que ainda não se haviam demolido as usinas de fornecimento elétrico. Era o pavor às claras.

Ao mesmo tempo que a capital era castigada, por todo o território iraquiano as forças terrestres da coalizão anglo-americana tomavam pontos estratégicos e as colunas blindadas e de infantaria corriam quase sem oposição rumo a Bagdá. Na quinta-feira 20, a invasão por terra deu seus primeiros e apressados passos. “De certa forma, a guerra começou para valer em terra e não pelo ar. A movimentação das tropas de solo foi muito maior do que os bombardeios selecionados dos dois primeiros dias”, explica o general Nash. Através de oito passagens montadas pela companhia de engenharia, a 3ª Divisão de Infantaria do Exército americano cruzou a fronteira entre o Kuait e o Iraque. “Cada companhia tem 15 tanques e algo em torno de 100 soldados – ao todo, são quatro companhias por batalhão. A 3ª Divisão de Infantaria do Exército tem quatro batalhões, juntando cerca de 20 mil homens, 350 tanques, 100 veículos blindados e mais os veículos-pontes, que mantêm nas carrocerias pontes mecânicas que permitem as passagens por valas criadas pelo inimigo e são montadas e desmontadas em meros 15 minutos”, explica o general Wash.

Essa gente toda levou 24 horas para atravessar a fronteira e pegar o rumo norte em direção a Bagdá. Muito mais ágil foi a Força Expedicionária dos Marines americanos, que, em conjunto com os Marines britânicos, em dez horas já havia saído do Kuait e tomado o principal porto iraquiano na cidade de Unm Qsar. E, em, 20 horas estava nas vizinhanças de Basra, espécie de capital do sul do país. Dois grupos de Seals, as forças especiais da Marinha dos EUA, tomaram nesse tempo os dois poços de petróleo mais importantes da região, evitando aquilo que aconteceu com outros sete poços menores, incendiados pelos iraquianos. Todas essas conquistas, segundo dados do Departamento de Defesa, custaram a vida de quatro britânicos e 17 marines americanos – apenas um foi morto pelo fogo inimigo; os outros 16 pereceram supostamente num acidente de um helicóptero CH-46 Knight Sea. Cerca de 200 soldados iranianos teriam se rendido aos anglo-americanos.

“Ali Químico” Poderia ter sido muito pior caso o general Ali Hassan al-Majid, convocado por Saddam para defender Basra, tivesse feito jus ao seu apelido. Ele é conhecido como o “Ali Químico” por ter bombardeado com armas químicas a população curda e soldados iranianos durante a guerra Irã-Iraque (1980-1988). Nem todos os analistas, porém, acreditam que Saddam usaria seu arsenal químico e biológico para defender Basra. Desconfia-se que a colocação de Ali Químico foi pura propaganda terrorista. Saddam, parece, não iria desperdiçar seu arsenal para defender uma cidade que ele sabe estar perdida. Além disso, detonando tão cedo armas de destruição de massa, o ditador comprovaria aquilo que os EUA vêm falando há tanto tempo: que ele as tem e as usaria. Deste modo, a invasão ianque estaria justificada. A aposta que o ditador teria feito foi a de que a opinião pública mundial, depois das primeiras levas de vítimas da guerra, sairia fortemente contra a campanha anglo-americana. Saddam espera, nesta teoria, que sua sobrevivência, mais uma vez, seja prolongada na arena internacional.

Um parafuso a menos  

Companheiro Bush, a mais recente música do vanguardista Tom Zé, insinua que o presidente americano vendeu bombas para o Iraque, tem um parafuso a menos e, de quebra, um chip que precisa ser desligado. Apresentada ao público na passeata pela paz realizada em São Paulo, na semana passada, a canção reflete, de forma irreverente, desconfianças que se vêm alastrando por todos os cantos do mundo. Muito antes de o primeiro míssil cair sobre Bagdá, um movimento pacifista com intensidade sem precedentes surpreendeu os mais experimentados analistas políticos. Descentralizado, o movimento contra o ataque ao Iraque registrou manifestações em 134 países, muitas delas espontâneas. Embora o pacifismo não tenha reunido força suficiente para evitar a guerra, a onda de protestos não arrefeceu depois que o ataque americano foi desfechado. Contaminou até a
mais badalada das festas americanas – a entrega do Oscar. De um lado, astros e estrelas passaram a anunciar seu desconforto com
a celebração, a começar pelo ator Will Smith, que já riscou o compromisso da agenda. Por outro lado, os organizadores começaram a mudar as regras da cerimônia, restringindo o campo de ação das celebridades. Na prática, querem evitar que se repitam episódios
como o protagonizado recentemente pela atriz Whoopi Goldberg,
que aproveitou uma participação no mais badalado programa de entrevistas da tevê americana para desancar o presidente Bush.
Até o papa João Paulo II advertiu o presidente americano
a “não falar em guerra em nome de Deus”.

Luiza Villaméa

A guerra é mais fácil que a paz

O aparente “passeio” que tem sido o deslocamento das tropas
anglo-americanas no Iraque não significa que os aliados já possam cantar vitória. “Quando chegarem a Bagdá, as coisas poderão mudar”, afirma o economista James Wygand, diretor do Setor Cone Sul da Control Risks Group. “Se as tropas aliadas encontrarem resistência,
ou a formação de guerrilhas, a situação poderá se complicar. E, quanto mais tempo demorar a guerra, mais difíceis serão as
condições de reconstrução do Iraque, e esta é a operação
crucial do pós-guerra”, salienta.

Wygand considera simplista dizer que os EUA e o Reino Unido estão conduzindo a operação militar no Iraque apenas para se apossarem das reservas de petróleo do país, que são as segundas maiores
do planeta. “Havia muitas maneiras mais simples de afetar esse mercado do que conduzindo uma guerra”, diz. Além disso, as grandes empresas petrolíferas não são mais expressões de Estados nacionais, como no passado. Para ele, a questão tem mais a ver com
a estabilidade da região, já que alguns países estão sendo contestados por seus cidadãos.

O economista acredita que, militarmente falando, seja muito
mais fácil para os EUA controlar o Iraque do que reconstruí-lo,
e que a estabilidade do país e da região requerem dispositivos
mais sofisticados do que a força bruta. “É uma coisa que ninguém pode impor unilateralmente. A paz é muito mais sutil: as condições econômicas exigem que as questões sejam conduzidas multilateralmente.” Para ele, nos últimos dez anos o mundo vem experimentando um grau de globalização somente encontrado
antes no distante ano de 1913, e isso marca um novo paradigma
nas relações internacionais. “Por isso”, diz ele, “os problemas
não podem ter uma abordagem unilateral. A atual unipolaridade
é instável”, conclui Wygand.

Cláudio Camargo