Tem gente que recebe herança em dinheiro, outros na forma de doenças genéticas, mas há também aqueles que herdam o intangível. Pegue-se o exemplo do americano Erik, 38 anos, que ganhou legenda e mito como espólio. Seu sobrenome é Lindbergh, o mesmo daquele Charles Augustus Lindbergh que, entre os dias 20 e 21 de maio de 1927, teve a audácia pioneira de atravessar, num avião monomotor, o Atlântico em vôo solitário e sem escalas. Eis aí um legado difícil de ser manipulado por descendentes. Erik, porém, fez bom proveito do que lhe coube. Na quarta-feira 1º, às 12h15 (horário de Nova York) ele alçou vôo do Republic Airport de Long Island. Sua meta era ir dali a Paris em cerca de 17 horas, repetindo o trajeto do vovô. Note-se: não tentou repetir o feito do antepassado heróico e sua aeronave – chamada Spirit of St. Louis –, que cumpriram a mesma jornada em 33h30. Segundo o novo Lindbergh, a intenção era prestar uma homenagem a seu avô, como parte das celebrações do 75º aniversário de sua façanha. Para cumprir a tarefa, porém, ele contou com um aparelho Lancair Columbia 300, batizado New Spirit of St. Louis, que atinge velocidade de até 184 milhas por hora (340 km/h), custou US$ 289 mil e aterrissou suave no aeroporto de Le Bourget, na capital francesa, dentro do prazo estabelecido. Erik contou também com modernidades como um Global Position System (GPS), que possibilita a navegação por satélite, enquanto vovô Charles tinha apenas um compasso, o vento e as estrelas a guiá-lo.

Aventura facilitada – Charles, o avô, recebeu da empresa Orteig a soma de US$ 25 mil por seu feito, o que em 1927 era mais ou menos o equivalente a US$ 2 milhões hoje. O neto – um piloto comercial que não recebeu fortunas de herança – abocanhou US$ 100 mil, numa viagem que custaria menos de US$ 500 (ida e volta) em tarifas de promoção nas atuais companhias aéreas. Quem pagou pela ousadia de Erik foi uma empresa sem fins lucrativos, da cidade de St. Louis, chamada X Prize. Fora o cachê do novo Lindbergh, a empresa ainda financiou o equipamento e toda a logística da aventura. Assim, em termos práticos foi muito mais fácil para Erik trilhar os rumos do vovô do que seria, digamos, no sentido metafórico.

A vida de Charles Lindbergh foi, até sua morte aos 72 anos, em 1974, um balaio de prodígios, nem todos gloriosos. Quando ele chegou a Paris, naquela tarde de 1927, uma multidão o esperava para aclamar o feito. Os franceses foram tão entusiastas em sua acolhida que quase mataram o herói. “Todos queriam tocar em mim. Aos poucos fui sendo engolido pela massa e quase morri esmagado”, relatou mais tarde o piloto. Em Nova York, na volta, ele não repetiria a mesma temeridade de cair nos braços do povo: trafegou em meio à massa a bordo de um conversível, transformando a Quinta Avenida numa passarela de triunfo. Desde então, seu nome está gravado no mesmo patamar dos maiores heróis da aviação americana, no qual constam os nomes dos irmãos Wright (tidos nos EUA como inventores do avião) e de Neil Armstrong (o primeiro homem a pisar na Lua).

Foi sob este manto de celebridade que Charles conheceu sua esposa, Anne Morrow, que acabaria com sua solidão. Casaram em maio de 1929. Anne era filha do embaixador americano no México, mas não era nenhuma dondoca. Ela aprendeu com o marido a pilotar e se tornou a primeira mulher a receber uma licença de piloto privado nos EUA. Juntos, eles também quebrariam, em 1930, o recorde de vôo transcontinental americano, indo de Los Angeles a Nova York em 14h30. Mas o céu de brancas nuvens acabou na vida do casal em 1932, quando seu filho Charles Augustus Jr., de 20 meses, foi sequestrado. Um episódio que recebeu a manchete perene de “O sequestro do século”. “Tanto é verdade e apropriado o título que a palavra kidnap (sequestro, em inglês, e que faz menção a kid, garoto) teve sua origem neste episódio”, diz o professor Phillip Austin, do City College de Nova York. O casal pagou o resgate de US$ 50 mil – uma fortuna durante a época da Grande Depressão –, mas o bebê não foi devolvido. O mundo acompanhou o drama como se fosse uma novela, em que passaram personagens dos mais inusitados. O gangster Al Capone, já preso naquele ano, se ofereceu para achar o menino, em troca da liberdade. O corpo só seria recuperado muitos meses depois: estava escondido na mata, perto da casa dos Lindberghs. Alguns detetives de poltrona chegaram, com o passar dos anos, a suspeitar que o próprio pai matara o filho acidentalmente e depois inventara a história do sequestro. Mas ninguém jamais apresentou provas concretas destas especulações. Fato é que o imigrante alemão Bruno Richard Hauptmann, carpinteiro do Bronx, foi acusado, julgado, condenado e executado na cadeira elétrica. Até sua morte, em abril de 1936, o alemão jurou inocência.

A família Lindbergh mudou-se em seguida para a Europa, sob a alegação de proteção aos outros filhos (eles tiveram mais cinco, além do sequestrado). No continente, Charles serviu como embaixador sem pasta dos EUA. E foi justamente seu giro diplomático que o levou à Alemanha: coração de uma polêmica que manchou seu nome, e se tornaria o calcanhar de Aquiles deste herói. Charles é acusado de ter tido simpatia pelo nazismo, tanto que recebeu uma condecoração de Hermann Göring, ministro da Aeronáutica do III Reich, e liderou o movimento “América primeiro”, que pregava a neutralidade dos EUA na guerra da Europa. Seu esforço foi em vão e os críticos quase não o perdoaram. A redenção viria somente em 1954 com o prêmio Pulitzer de literatura, por suas memórias. O neto Erik, portanto, pode voar até a lua e voltar, e ainda assim não terá cumprido metade da saga de seu avô.