Os argentinos estão abrindo mão de mais um de seus símbolos. Forçada por uma dívida de US$ 368 milhões, a holding Quinsa, proprietária da Quilmes, maior fabricante de cerveja do país, vendeu para a AmBev, dona de sua maior rival, a Brahma, 36,09% de suas ações com direito a voto, em troca de US$ 346,4 milhões, menos da metade do que recebeu pela venda da Kaiser, a quarta marca brasileira, à canadense Monson, em março passado.

Foi um grande negócio para a AmBev, que controla 70% do mercado de cerveja no Brasil e é a quarta maior empresa de bebidas do mundo. Uma pechincha proporcionada pela mais dramática crise que a Argentina enfrenta em sua história, primeiro passo da absorção total pela AmBev da Quilmes, que tem 70% do mercado argentino e é líder no Uruguai, Paraguai e Bolívia, surgindo, então, a terceira cervejaria do mundo em faturamento e produção.

A AmBev agora passa a disputar com a belga Interbrew a terceira posição no ranking mundial. “Em uma Argentina que está caindo aos pedaços, poder anunciar uma transação como esta tem seu mérito”, consolou-se o diretor executivo da Quilmes, Garcia Mansilla, que também admitiu que a profundidade da crise obrigou a empresa a aceitar uma proposta pior do que a que recusou dois anos atrás. A direção da cervejaria argentina temia perder mercado por causa de sua debilidade financeira provocada pela desvalorização do peso.

A mesma falta de dinheiro que levou a Quilmes a baratear seu preço e ceder suas ações à AmBev fez com que a Sadia, a 38ª empresa brasileira, anunciasse, na quinta-feira 2, o encerramento de seus negócios na Argentina, decisão já oficializada pelo grupo espanhol de alimentos Campofrio. O faturamento da Sadia no país, que atingiu US$ 50 milhões em 1999, baixou para US$ 33 milhões em 2001 e neste ano deverá somar apenas US$ 3 milhões. Junto, o número de empregados caiu de 157 para 107, e agora para 10.

A crise que paralisou os investimentos locais da Telefonica e reduziu seu quadro de funcionários é a justificativa para a venda de uma relíquia histórica do país: o apartamento onde o herói revolucionário Che Guevara nasceu, em 1928. Fica em Rosário, noroeste de Buenos Aires, e tem cinco dormitórios. “Estou vendendo o apartamento por causa da crise. A manutenção é muito cara”, disse a proprietária, Alicia Maria Repetto, que comprou o imóvel há 25 anos sem saber de sua história. O preço ainda não está definido, mas não escapará da desvalorização provocada pela letargia do mercado imobiliário do país (em janeiro de 2002, apenas um imóvel foi vendido em Buenos Aires, a capital). A esperança da vendedora é que a embaixada cubana se interesse pela oferta que ela fez do imóvel.

É mais uma pancada no orgulho da Argentina, onde somente as Mães da Praça de Maio, que comemoraram 25 anos de luta neste 1º de Maio, ainda conseguem segurar a tradição do argentino altivo e lutador. Mudou o ministro da Economia, mudou a equipe econômica, houve um rápido suspiro de alívio em relação ao dólar, que caiu de 3,25 pesos para 3,05 na estréia de Roberto Lavagna, o substituto de Jorge Lemes Lenicov, mas o povo argentino continua sendo bombardeado por más notícias. A penúltima – porque a última parece distante, ainda que o ministro Lavagna, diplomata e economista, tenha bom trânsito no circuito internacional – é a de que, em abril, mais de 15 mil estabelecimentos comerciais fecharam suas portas, o que soma 102.500 encerramentos de negócios do setor em um ano, cortando a fonte de trabalho de 280 mil pessoas, entre empregados e proprietários. O comércio é responsável por quase 10% do PIB do país.

A taxa de inflação é outro desalento: oficialmente, deve chegar a 20% no primeiro quadrimestre de 2002. Mas essa é uma taxa para inglês ver, ou melhor, para a nova missão do Fundo Monetário Internacional, que logo logo desembarcará em Buenos Aires outra vez para checar o comportamento do país no cumprimento de sua ditatorial cartilha. O presidente da Federación de Centros Comerciales de la República Argentina, Rúbens Manusovich, diz que na vida real a cesta básica familiar tem produtos que aumentaram entre 40% e 80% somente no mês de abril, o que, junto com o desemprego, vem fazendo crescer uma nova classe social no país, a dos “novos pobres”, cerca de 1,5 milhão de pessoas, segundo o IBGE de lá. A lua-de-mel de Lavagna com o dólar durou pouco: a moeda americana voltou a subir, encerrando a semana com a cotação de 3,20 pesos.

O argentino está desesperado: na quinta-feira 2, uma correntista de 54 anos ateou fogo com álcool ao próprio corpo em frente a uma filial do banco espanhol Santander Central Hispano, depois que os funcionários se negaram a devolver seu dinheiro depositado na conta. Ela foi levada ao hospital com 60% do corpo atingido pelo fogo.

Ameaça dos bancos – Roberto Lavagna, o ministro que trocou a embaixada do país na União Européia e na Organização Mundial de Comércio por um dos postos mais indesejáveis do mundo neste momento, nem teve tempo para comemorar sua estréia, com a queda do dólar a um patamar inferior ao que antecedeu ao longo feriado bancário. Começou sua gestão com a notícia vinda de Madri de que o Banco Rio, o estrangeiro mais importante da Argentina, controlado pelo espanhol Santander, só tem dinheiro (ou liquidez) para mais três meses e a matriz não dará nenhum tipo de socorro. Junto com a informação veio a ameaça: não entra nem sai nada do caixa da filial, e a presença da instituição no país está condicionada à rentabilidade do sistema financeiro. Sobram chicotadas também do FMI, que não libera um dólar enquanto o país não entrar na “sua” linha.

O ministro Lavagna assumiu com a missão de cumprir um plano econômico de austeridade fiscal, acertado entre o presidente Eduardo Duhalde e os governos das províncias. O plano impressionou os americanos do FMI por seus 14 pontos, e Lavagna, coitado, terá de transformar o tal plano – que na verdade é um conjunto de enunciados gerais e até contraditórios – numa política econômica capaz de interromper uma crise que cresce desde 1998. Já descartou a dolarização e o controle de preços. Ele é a última cartada de Duhalde. Por um capricho do destino, Duhalde, peronista, está nas mãos de Lavagna, ligado à União Cívica Radical, partido de oposição que quer vê-lo pelas costas.