"Podemos reconstruí-lo. Temos a tecnologia. Temos a capacidade de fazer o primeiro homem biônico do mundo. Steve Austin será esse homem.” Essas frases, antológicas, eram ouvidas na abertura de cada episódio de Cyborg – o homem de seis milhões de dólares, seriado de tevê exibido entre 1973 e 1978. Steve Austin era um ex-astronauta do Projeto Apollo que virou piloto de teste da Força Aérea americana e, num acidente aéreo, perde as duas pernas, um braço e o olho. Para salvar sua vida, o governo lhe implanta próteses biônicas de US$ 6 milhões. O personagem, interpretado por Lee Majors, torna-se um agente secreto com força sobre-humana que corre a incríveis 110 km/h, três vezes mais rápido que um recordista mundial como Carl Lewis, cujo limite é 36 km/h. Não bastasse os pés-de-vento, Steve Austin erguia automóveis com seu braço biônico. E seu olho enxergava 20 vezes mais longe que o dos pobres mortais. Passadas quase três décadas, e apesar dos avanços da medicina e da informática, a ciência ainda não superou a ficção. Não existem ciborgues nas ruas, mas o sonho do olho biônico virou realidade, fornecendo uma esperança para milhões.

Trabalhando em Los Angeles, uma equipe de oftalmologistas composta pelo paranaense Gildo Fujii e pelos americanos Mark Humayun e Eugene de Juan implantou em fevereiro uma prótese biônica na retina do americano Harold Churchey, 75 anos. “Há dois outros grupos nos EUA, um no Japão e outro na Alemanha que pesquisam prótese de retina, mas nenhum conseguiu um implante funcional”, gaba-se o doutor Fujii. A equipe começou em 1989 a desenvolver o olho biônico no hospital Johns Hopkins, em Baltimore. Gildo Fujii juntou-se ao grupo em 1999, a tempo de participar do implante de uma prótese canina. O olho biônico do cachorro era conectado a um computador, de onde saíam os impulsos elétricos que iam ao chip colado na parte de trás da retina, dentro do olho. O desafio era saber se a estimulação elétrica das células da retina seria capaz de fazê-las converter os sinais em imagens no cérebro. “Soubemos que o cachorro enxergava porque implantamos eletrodos em seu córtex cerebral e o estímulo chegava ali quando ele via a luz”, explica Fujii.

A pesquisa foi financiada pela Second Sight, empresa da Fundação Alfred Mann, erguida por um bilionário californiano que incentivou a criação do ouvido biônico em 1986. A empresa não revela o volume de recursos investido. Em 2001, a equipe recebeu o sinal verde do FDA, órgão do governo americano que regula os setores médico e de alimentos, para testar a técnica em seres humanos. O escolhido foi Harold Churchey, que perdeu totalmente a visão aos 30 anos por causa da retinose pigmentar, doença genética que destrói as células da retina e afeta 1,5 milhão de pessoas no planeta. Foram seis horas e meia de cirurgia para implantar o olho biônico, composto por uma câmera de vídeo, um estimulador elétrico preso sob a pele atrás da orelha e um chip de estimulação da retina. As imagens são registradas pela câmera, que pode ser adaptada num óculos. De lá são transmitidas ao estimulador, que as processa e transforma em impulsos elétricos, conduzidos ao implante eletrônico por um fio de 15 cm. O chip tem 16 eletrodos, permitindo ao paciente ver 16 pontos de luz.

Uma semana após a operação, deu-se início à fase de estímulo da retina, com o chip primeiramente ligado a um computador, como aconteceu com o cachorro, e não a uma câmera de vídeo. Logo de cara o paciente Churchey exclamou: “Sim, sim, estou vendo”, lembra o médico formado pela Universidade Estadual de Londrina. “Faz pelo menos 20 anos desde que vi pela última vez uma luz assim brilhante”, completou o paciente.

No mês passado, a câmera de vídeo foi conectada pela primeira vez. “Já no primeiro dia, o paciente foi capaz de seguir uma luz projetada na parede, a três metros de distância. Também identificou direções e formas geométricas simples como quadrados e círculos”, conta Fujii. Por enquanto, Churchey só enxerga quatro cores: principalmente o amarelo, o alaranjado, o vermelho e o azul. “Esperamos que ele consiga realizar atividades simples como andar e reconhecer obstáculos à sua frente”, diz o médico. O implante de 16 eletrodos será realizado em mais dois pacientes. A partir daí, segundo Fujii, a equipe partirá para uma nova geração de chips, com 50 e 1000 eletrodos, que fornecerão aos eleitos uma visão pelo menos dez vezes superior à de Churchey. “Estudamos a hipótese de usar um chip com dez mil eletrodos”, diz o brasileiro.

Se tudo continuar bem, é possível que o FDA autorize a venda da prótese em 18 a 30 meses para os portadores de cegueira causada por retinose pigmentar e degeneração relacionada à idade. Com a miniaturização da informática, é possível sonhar com os chips de milhares, milhões ou mesmo centenas de milhões de eletrodos. Quando isso acontecer, a visão biônica pode muito bem se equipar à humana, para logo em seguida deixá-la para trás.