A paz está na ordem do dia. Das mais toscas conversas do cotidiano aos mais opulentos discursos políticos. Multiplica-se nas ruas em placas, outdoors, fachadas de lojas ou prédios de hotel; movimentos culturais e de igrejas; ONGs ou grupos ecumênicos; na moda, decoração, publicidade; e até em slogans de facções criminosas. As motivações são duas: externa e interna. A primeira, devido à insegurança após os atentados nos Estados Unidos, no ano passado, e à incessante guerra no Oriente Médio. A segunda, mais forte, se deve ao alto índice de violência no Brasil. São assaltos, sequestros, balas perdidas. Ninguém suporta mais a guerra surda no Brasil. Esse clamor, sem distinção, ganha maior visibilidade em ações de grande porte, como a da Unesco, que está lançando a Década da cultura de paz. Ou o movimento Paz é +, que terá início dia 12, Dia das Mães, no Rio de Janeiro, organizado por mulheres da alta sociedade em parceria com a empresária Marlene Mattos e a adesão de artistas como Xuxa Meneghel. As várias vertentes religiosas também promovem muitos movimentos populares contra a violência. Difícil de ser conseguida na prática, na fantasia coletiva, a paz se tornou um etecétera sem fim.

Contra tudo e todos, no entanto, as estatísticas: uma das mais macabras atesta que o Brasil é o segundo país em assassinatos de jovens, de acordo com a ONU. Só perde para a Colômbia. Os índices da violência crescente não são os únicos a desafiar o sentimento pacifista. Igualmente desanimadores são os gráficos da desigualdade social: 447 pessoas mais ricas do mundo têm a mesma renda de 50% da população mais pobre, ou três bilhões de pessoas. Não por acaso o Brasil também ocupa o segundo lugar no ranking da má distribuição, atrás apenas de Serra Leoa, na África, de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano de 2001. A grande pergunta é: como falar de paz em um país com violência e desigualdade endêmicas?

O filósofo e matemático Bertrand Russell cunhou a expressão “sensibilidade abstrata”, que se encaixa na proposta central da cultura de paz – a capacidade de sensibilizar-se com o sofrimento e a tragédia, independentemente de onde aconteçam. Nesse ponto, a população brasileira se destaca. É o país que mais colheu assinaturas ao Manifesto da Paz, elaborado por ganhadores de prêmios Nobel: das 13 milhões, cinco milhões são daqui.

O representante da Unesco no Brasil, Jorge Werthein, diz que isso demonstra que o brasileiro tem consciência da “situação de perigo em que vive” e deseja fortemente ajudar a combater os problemas. O trabalho da Cultura de paz aqui se concentra na população mais vulnerável à violência: os 33 milhões de jovens entre 15 e 24 anos. A pesquisa da Unesco, do Ministério da Justiça e do Instituto Ayrton Senna para o Mapa da violência III, divulgada na quinta-feira 2, mostra um aumento de 77% no número de vítimas jovens no País, entre 1991 e 2000. Um alto porcentual, se comparado ao já assustador crescimento da violência da população em geral, de 50,2%. Enquanto no início da década o Brasil tinha um índice de 20,9 homicídios por 100 mil habitantes, em 2000, essa marca saltou para 27 mortes. O Estado onde mais se mata é Pernambuco, com 52,3 homicídios, numa amostra de 100 mil pessoas. Depois vem o Rio (50,9), seguido por São Paulo (42,2). Entre os 49 países pesquisados pela Unesco, o maior registro do uso de armas de fogo é aqui: em 78% das mortes. Em Pernambuco, a taxa chega a 84,5% e, no Rio, a 83,5%.

Fim de semana – A crueldade dos números já não surpreende, mas o alcance de áreas consideradas redutos de segurança, sim. A violência chegou às escolas. “É um fato novo. Crianças e adolescentes estão matando e morrendo nos colégios públicos ou particulares”, diz Werthein. O trabalho da Unesco se apóia em três ações: combater a ociosidade de jovens, garantir sua permanência no sistema educacional e abrir espaço para os mais pobres no mercado de trabalho. A maioria dos crimes é cometida por jovens nos fins de semana e à noite, quando eles não têm nenhuma ocupação. O programa Escola da paz, da Unesco em parceria com governos estaduais, começou abrindo escolas, quadras e até quartéis para atividades esportivas aos sábados e domingos. “Não temos resultados em números ainda, mas sabemos que foi um impacto importante”, diz Werthein. O secretário estadual de Educação do Rio de Janeiro, William Campos, diz que o projeto abrange 160 escolas e deve ser ampliado. “Ocupar o adolescente é decisivo no combate à criminalidade”, diz.

No mesmo formato, em Brasília, o Esporte à meia-noite, programa da Secretaria de Segurança Pública com a Petrobras, comemora dois anos com um resultado excelente. A criminalidade na periferia foi reduzida em 40%. A idéia é tão simples como eficiente: entre 24h e 3h, ônibus circulam pelos bairros para levar jovens às quadras esportivas de colégios. Quem assistiu ao filme Traffic, de Steven Soderbergh, se lembrará que o maior sonho do “traficante bonzinho” era iluminar quadras para tirar os meninos pobres do mau caminho. “O trabalho em Brasília está dentro do projeto Geração da paz, destinado a jovens e adolescentes em situação de risco”, explica Lia Hermont Blower, da área de comunicação social da Petrobras. A empresa vai gastar R$ 8 milhões com 38 ações em vários Estados. Para uma empresa do porte da Petrobras, a quantia parece irrisória, mas Lia discorda: “Não é pouco. E em projeto social a qualidade da aplicação é mais importante do que a quantidade de verba. Tem de analisar o resultado.”

Em Salvador, o shopping center Nacional Iguatemi alia-se à tendência e investe na paz de forma pioneira: para trabalhar como segurança no shopping é necessário fazer um curso de direitos humanos. “O objetivo é substituir o olhar de repressor pelo de educador e colaborador”, explica Renato Rique, presidente do Grupo Nacional Iguatemi, que trabalha em parceria com a elogiada ONG Projeto Axé. O empresário discursa como estudante politizado: “Dizem que aqui não temos guerra. Como não? Travamos uma dura guerra contra a miséria.” Dia 12 próximo entra em campo mais uma grande força de combate. O movimento Paz é +, que começa com uma caminhada na orla carioca, é definido por Glória Severiano Ribeiro, uma das idealizadoras, como “um clamor de mães”. “Vivemos com medo pelos nossos filhos. Esse não é um movimento de elite, mas de união de classes e religiões. Conheço uma mãe que mora na Rocinha e teve o filho morto por uma bala perdida. A minha filha de dez anos ficou com medo de sair às ruas depois de ver um assalto à mão armada. Não podemos viver assim”, desabafa.

Filantropia – A angústia fez com que Glória, veterana em ações de assistência social, ligasse para Marlene Mattos, mesmo sem conhecer a empresária. “Disse que só ela poderia ajudar a organizar um evento amplo em torno da paz. Ela topou na hora.” As reuniões come çaram com um grupo de 20 senhoras do high society, todas vinculadas à filantropia, como Ângela Fragoso Pires, Clara Magalhães, Lea Klabin e Cristina Sá. O próximo passo é a criação da ONG Sinal de paz. Atolada em compromissos, a empresária e diretora de núcleo da Rede Globo brinca: “É como se eu não tivesse mais nada para fazer, né?” A ONG vai pedir doações de R$ 1 à população e prestará contas. “Sei que a burocracia é grande, mas vou ter paciência. Vou organizar essa ONG. A gente não pode viver com medo do medo”, afirma Marlene.

 

Xuxa também abriu espaço na agenda para se engajar no Paz é +. “Se cada um fizer sua parte, alcançamos grandes melhorias”, conclama. A apresentadora banca há dez anos a fundação que leva seu nome e está implantando, numa área de 20 mil metros quadrados, o Mural dos sonhos, com oficinas profissionalizantes e área de esporte. “Temos 18 jovens em universidades federais”, conta, orgulhosa. O ator Marcos Palmeira, que colabora com a ONG Viva Rio na luta pelo desarmamento, acha que a péssima distribuição de renda é a grande barreira contra a paz. Palmeira foi vítima de um assalto recente e teve um funcionário de sua fazenda, Rildo, assassinado. Em ambos os casos, impunidade. “Meu sentimento é de perplexidade”, define. O stress causado pela desesperança de quem vivencia situações de risco de vida, como o ator, está enchendo os consultórios. Especialista em administração de stress com formação na Califórnia, o carioca Eduardo Coimbra Tavares diz que a busca da paz é prioridade entre os pacientes. “No fundo é o que todos procuram, embora usem nomes como harmonia, vida melhor, etc.”, diz.

Ajuda divina – A crença religiosa também produz bons resultados no combate ao estado de imobilismo que a violência provoca. É bom não esquecer que 75% dos brasileiros acreditam que Deus é responsável pelo destino, segundo pesquisa do IBGE. O padre Marcos Belizário, da Paróquia dos Santos Anjos, no Leblon, zona sul carioca, pôs uma faixa na porta do templo conclamando os fiéis para rezar pela paz. “Assim, nos engajamos na campanha, como toda a sociedade”, diz. Do outro lado da cidade, na zona norte, o evento Diga sim à paz atraiu uma multidão no feriado do Dia do Trabalho. “Queremos despertar a possibilidade de cada um de nós ser instrumento da paz”, disse padre Serafim Fernandes, reitor do Santuário de Nossa Senhora da Penha.

Em São Paulo, o padre Jaime Crowe, da Igreja dos Santos Mártires, no Jardim Ângela, promove há seis anos a Caminhada pela vida e pela paz. “Em novembro, participaram mais de 200 mil pessoas”, disse. Ele cuida, com parcerias variadas, de 300 crianças na creche, 300 adolescentes no Centro da Juventude e 500 dependentes químicos no Centro de Atendimento da Escola Paulista de Medicina. O padre Crowe faz sua parte, mas sabe que a luta é cruel: “Enquanto houver desemprego, falta de moradia, tráfico de drogas, jovens sem ter o que fazer, faltará a paz.”

Alguns pensadores, como o sociólogo Luiz Carlos dos Santos, questionam o valor de movimentos de rua com o branco da paz. Coordenador do movimento Tome uma atitude pela não-violência, na Capela do Socorro, zona sul de São Paulo, ele sustenta que não adianta vestir as pessoas de branco, acender velas e rezar pedindo paz. “Isso não funciona. A paz depende de investimento social.” Santos conta com a ajuda de 80 empresários para um trabalho preventivo contra o uso de drogas e práticas de violência com 200 jovens. O antropólogo carioca Rubem César Fernandes, fundador da ONG Viva Rio e coordenador de movimentos de massa de grande repercussão, como o Basta, eu quero paz, que mobilizou o País em 2000, tem outra análise. “O primeiro resultado de trabalhos como esses é desfazer o clima fascista, estimular o pacifismo, em vez de sair às ruas pedindo ‘criminosos na cadeia’.

Além disso, multiplica movimentos menores em favelas, como o Mãe, desarme seu filho, e pressiona o poder público.”
Rubem César lamenta, no entanto, a frustração em relação aos órgãos de governo. Cita três grandes reivindicações assumidas pelas autoridades e “empurradas com a barriga”: controle de armas de fogo (responsáveis por mais de 80% dos assassinatos), reforma da polícia e investimento maciço em educação. Para incentivar o desarmamento, os estudantes de direito da USP lançaram a campanha Sou da paz, que cresceu e virou ONG. “Nossa missão é mobilizar a sociedade para ações coletivas que reduzam a violência”, diz a advogada e coordenadora, Luciana Guimarães. A presidente do Reage São Paulo, Albertina Café, desistiu de organizar passeatas por bairros nobres da capital paulista. Há um ano, a tia de uma estudante morta no assalto ao bar Bodega, em 1996, transferiu a sede da ONG de uma luxuosa sala no Jardim Europa para um galpão abandonado em Capão Redondo. “Eu estava com a idéia certa, mas no caminho errado”, admite a ex-madame. “Agora construímos a paz atraindo 3.500 crianças e jovens para nossos projetos.”

Grifes – Nessa linha, a cultura é eficiente. O grupo paulista Juventude de Diadema unida pela paz é um bom exemplo. Criado em 1999, o grupo conta com 25 jovens que escrevem e encenam em escolas, praças e ginásios. “Usamos o teatro para tornar o discurso mais profundo, menos enfadonho e mais produtivo”, afirma o líder Renato de Souza, 22 anos. Com o mesmo objetivo, a pianista e produtora carioca Ana Maria Araújo criou o Concertos da paz em 1981. As apresentações em teatros ou praças têm renda revertida para hospitais e instituições de caridade.

A cultura de paz chegou também à indústria da moda, seja em campanhas agressivas como as da italiana Bennetton (com condenados à morte estampados em outdoors), seja engajadas como as da Wollner, que investiu na palavra paz. A grife descobriu o que várias outras já sabem: a paz é um produto que vende muito bem. “A moda estampa o sentimento das pessoas”, diz Lauro Wollner, um dos donos da marca. Para Ricardo Gonzales, da Ellus, divulgar campanhas em roupas é trabalho de mão dupla: “Sem ser piegas, dá para comunicar e vender.” Ele está lançando uma linha de inverno inspirada nas lições do Profeta Gentileza, que escrevia mensagens de paz em muros do Rio. Fernanda Chies, estilista da grife teen que leva seu nome, chancela: “Os jovens usam a paz como um amuleto.” No centro espírita Lar de Frei Luís, já foram vendidas quase mil camisetas brancas com a palavra paz escrita em azul, por R$ 10.

Especialista em marketing social, Márcio Schiavo, dono da Comunicarte, identifica clara tendência em empresas de mídia, arte e moda em se associarem a essa bandeira universal. Ele dispensa justificativas sociológicas: “As pessoas estão fazendo isso pelo simples fato de que isso precisa ser feito.” Com a objetividade que lhe é característica, Schiavo arremata: “Querer soluções individuais para problemas públicos não se sustenta como projeto social.” Ou seja, o velho e bom “trabalho de formiguinha” é importante, mas não adianta cada um atuar apenas em seu núcleo, seja ele familiar, religioso, seja ele bairrista. “Não adianta eu ensinar meu filho a respeitar as leis de trânsito porque ele poderá morrer vítima de acidente provocado por quem não respeita”, exemplifica. A estratégia é simples: ação local e ambição global. E paz na Terra.