Não morra em Londres. Se você me permite um único conselho, é este: ignore as inconsistências, o nonsense e a falta de profundidade desta coluna, mas jamais dê seu último suspiro do lado norte do Canal da Mancha. Dizem que o pior tipo de solidão é postar alguma coisa no Facebook e ninguém curtir. Nada disso, a pior solidão é morrer em território dominado pela Elizabeth.

Hoje vi um cortejo fúnebre na rua. Na esquina da Hugh Street com a St. George’s Drive, uma perua preta, com vidros transparentes em toda área traseira, fez lentamente a curva. Dirigindo pela esquerda, esse sentido que, dois dias depois, continua não fazendo o menor sentido. Dentro dele, suponho, havia um caixão. Havia tantas flores encobrindo a visão que não tive a menor chance de identificar qual madeira revestia a última embalagem daquele(a) desafortunado(a).

Logo atrás, acompanhando a lentidão do veículo a sua frente, vinha uma limusine. Daquelas em que motorista e passageiro transitam com uma hora de diferença de fuso entre eles. Paramentado com quepe e tudo, o condutor seguia serenamente. No banco de trás, um senhor calvo olhava pela janela e implorava ao mundo que compartilhasse um pouco daquele sofrimento. Eu, nelsoncavaquinhanamente (obrigado, brother Dafne), tirei o meu sorriso do caminho para que ele passasse com a sua dor. Segundos depois, montei um roteiro óbvio: o velhinho acabara de enviuvar e tanto ele quanto a mulher não eram seres dos mais sociáveis.

No momento seguinte, pensei nas diferenças culturais que afloram na hora do adeus. Esta foi a primeira vez que vi uma despedida anglo-saxã. Já assisti a funerais em vários países e digo, com conhecimento de causa, que franceses, espanhóis, americanos, mexicanos e até argentinos procuram ao menos demonstrar sofrimento com a morte de alguém querido. Não saem da minha memória os ombros sacolejantes, os desmaios operísticos, as lágrimas das carpideiras. Pensei também no tanto de teatralidade que perdemos ao confinar tudo isso ao campo neutro dos velórios nos cemitérios.

Como Nelson Rodrigues, tenho saudade do tempo em que as famílias velavam seus defuntos na sala de casa. Lembro-me que, aos 9 anos, encarei a primeira morte na família. Doente de diabetes, meu avô sucumbiu diante de uma letal dose de glicose recebida no hospital. Com a mesma cara do velhinho dócil que fazia estilingues para mim, erguia casas para a família toda e batia sem dó na minha avó, aquele corpo ficou jazendo por 24 horas na sala em que eu havia passado a infância me escondendo do meu primo e esperando o badalar mágico do relógio de parede confeccionado na Europa.

Lembro-me do choro agudo e úmido de um primo, da postura respeitosa e solidária das vizinhas e, mais que tudo, das tias na cozinha preparando um balaio de sanduíches de mortadela. De vez em quando, ia até a sala ver o meu avô esticado sobre duas estruturas metálicas em “x”. Mas sempre com a minha mãe por perto, pois não tenho medo de nada, exceto de alma penada. Hoje, tudo isso é saudade. Com o tempo, perdemos esse coquetel de emoções associadas à morte. Nos gélidos velórios municipais, só há espaço para a dor, para as rezadeiras profissionais e para a contabilidade dos parentes que vieram e dos que deixaram de comparecer.

Mas, por pior que possam parecer as cerimônias brasileiras de despedida, nada se assemelha ao cortejo fúnebre de hoje. Aquela infeliz (sim, abraço a minha tese de que aquela foi a mulher do senhor que vinha no carro de trás) foi embora sem gente para jogar um punhadinho de terra sobre o caixão, sem aquela oração evangélica que os jornalistas não conseguem decorar, sem aqueles respingos de água benta pulverizados sobre os pés. Pior de tudo, a pobre criatura vai atravessar a eternidade sem ter tido o derradeiro prazer do cheiro de um sanduíche de mortadela.