Seria uma cena corriqueira, não fosse o terno, a gravata e o cargo novo. Mais uma vez, Luiz Inácio Lula da Silva subiu em um palanque para falar a uma multidão de metalúrgicos na fábrica de caminhões da DaimlerChrysler, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. Mas foi a primeira como presidente da República. Lula era um garoto de 11 anos quando, em 1956, o presidente Juscelino Kubitschek inaugurou a fábrica da então Mercedes-Benz. Cheio de simbolismo, o reencontro com sua base, na segunda-feira 10, serviu para Lula reviver o início de sua trajetória como o maior líder do movimento sindical brasileiro. “Olhando aquela massa, me emocionei e lembrei dos tempos em que eu e o Lula lutávamos contra as demissões”, contou Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, ex-funcionário da Mercedes e hoje deputado federal pelo PT.

Cercado de gentilezas, Lula começou sua visita tomando café da manhã com o presidente da empresa, o holandês Bem van Schaik. Acompanhado da mulher, Marisa, e dos ministros Jacques Wagner (Trabalho), Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento, Indústria e Comércio), José Graziano (Segurança Alimentar e Combate à Fome) e do presidente nacional do PT, José Genoino, Lula estava à vontade, parava a todo instante para apertar as mãos dos trabalhadores e ainda recebeu um quadro de presente. Ganhou também das mãos de Schaik as chaves de um
caminhão de R$ 200 mil para o Programa Fome Zero. José Moisés Selerges, coordenador da comissão de fábrica e representante dos trabalhadores, entregou ao presidente um cheque de R$ 1 mil para
“pôr gasolina no caminhão” e disse que os trabalhadores estão se “sentindo governo”. Selerges chegou a dar dicas sobre como
conduzir as reformas: propôs a redução de impostos na produção
de veículos “para gerar mais emprego”.

Andanças – Durante 23 minutos, Lula falou para uma atenta platéia de seis mil operários. “Estamos colhendo o que plantamos no passado.” Avisou que será uma espécie de andarilho, quer ir aonde o povo está. “Vou visitar a indústria automobilística, mas também as pequenas e médias empresas, as grandes fazendas produtivas, os assentamentos, as boas casas, mas também as palafitas e as encostas dos morros, onde as pessoas estão morrendo a cada garoa que cai nas grandes cidades.” Assim como Juscelino Kubitschek, Lula gosta de ter contato com o povo. Não é à toa que, entre todos os governantes brasileiros, o que ele mais admira é justamente o carismático JK. O petista gostou tanto de voltar às origens que já marcou seu segundo encontro com os ex-colegas: no dia 24, vai à fábrica da Volkswagen,
em São Bernardo, para comemorar os 50 anos da montadora no País.

Depois de falar aos metalúrgicos, seguiu para o Parque de Exposições do Anhembi, em São Paulo, onde discursou para um público oposto: empresários que participavam da Feira da Indústria de Plásticos. O presidente garantiu que o projeto de reforma previdenciária será enviado ao Congresso antes de maio e a tributária, antes de junho. “Eu ainda não tinha barba e cabelos brancos quando comecei a ouvir sobre as reformas”, disse. E deu um recado às vozes críticas que reclamam pressa nas mudanças: “Vamos jogar o pessimismo na lata do lixo. No nosso imenso país não há espaço para choradeira e para ave de mau agouro.” Em seguida, voltou ao ABC, na cidade de Mauá, onde visitou a Refinaria de Capuava (Recap). No bandejão, com os funcionários, almoçou filé de frango e capelete com molho vermelho. Fechou o dia inaugurando, ao lado do presidente da Petrobras, José Eduardo Dutra, uma unidade industrial da Polibrasil, construída para processar gás propeno.

No dia seguinte, já de volta a Brasília, o presidente Lula voltou a pedir paciência para cerca de dois mil prefeitos. “Nós precisamos definir corretamente o que fazer com o pouco que a gente tem”, afirmou. Mas nem o governo federal consegue seguir à risca a recomendação. O Fome Zero, que era para ser a menina dos olhos do governo e serviria como contraponto às amargas medidas econômicas, ainda não passa de um sonho. Seus coordenadores, encabeçados pelo ministro José Graziano, vêm tropeçando em declarações desastrosas que evidenciam a desorganização e o atraso do programa. A confusão é tanta que setores importantes do governo e do PT já discutem a substituição de Graziano, um amigo do presidente de longa data, mas considerado pouco afeito às questões administrativas de uma pasta que deveria ter importância estratégica nesses primeiros meses. “As especulações correm soltas em Brasília. Até nomes para substituir o fragilizado Graziano começam a aparecer. No meio da semana um boato citava o empresário Abílio Diniz, do Grupo Pão de Açúcar, como um nome ideal por seu perfil de executivo bem-sucedido. No Palácio, o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, sinalizou que a situação do ministro não é boa. “Só presidente nomeia e demite ministro.” As agruras de Graziano vêm de antes de sua posse. Primeiro brigou com duas das mais conceituadas vozes do combate à fome: dom Mauro Morelli, bispo de Duque de Caxias, e Zilda Arns, coordenadora nacional da Pastoral da Criança. O ministro passou muito tempo defendendo a idéia do uso dos
R$ 50 apenas na compra de alimentos, além da exigência de nota fiscal. Pior ainda foi a frase infeliz em que o ministro, dentro da Fiesp, atribuía à migração de nordestinos a violência em São Paulo. Depois foi folclorizado quando a imprensa descobriu que um cheque da modelo Gisele Bündchen continua na gaveta semanas depois de doado. Na terça-feira 11, Frei Betto, assessor especial de Lula, deu sua contribuição para aprofundar mais ainda a crise, ao afirmar que a burocracia impedia a abertura das contas bancárias para receber os recursos para o Fome Zero. No meio da polêmica, o ministro da Educação, Cristovam Buarque, tentou levar as verbas do Fome Zero para o seu Programa Bolsa Escola, que atende cinco milhões de famílias carentes e já está estruturado. No meio de um furacão de críticas, o Planalto reagiu divulgando os números das contas no Banco do Brasil e na Caixa Econômica Federal e anunciando a aceleração do programa.

Embate – Os atropelos no combate à fome são um dos temas discutidos na primeira reunião do Diretório Nacional do PT desde que Lula foi eleito. No sábado 15 e no domingo 16, moderados e radicais realizam em São Paulo uma das mais importantes reuniões do PT. Afinal, resoluções que defendem as reformas previdenciária e tributária, que o PT tanto condenou no passado, serão colocadas na mesa de votação. Da mesma forma, as amargas medidas econômicas adotadas pelo ministro Antônio Palocci serão apreciadas oficialmente pelo partido.

Como os moderados são maioria no Diretório Nacional e mesmo dentro das correntes radicais muitos não estão dispostos a comprar briga com o governo, a tendência é que o PT aprove o rumo adotado pelo presidente Lula na seara econômica, que inclui a elevação do superávit primário de 3,75% do PIB para 4,25% e o aumento da taxa de juros. Esta última medida será justificada pelos moderados como instrumento temporário para controlar o dragão da inflação, e não para compensar o capital especulativo, como criticava o próprio PT quando era oposição. Mesmo que não tenham bala para derrotar a maioria moderada, alguns petistas das chamadas alas xiitas prometem fazer muito barulho e vão resistir ao enquadramento partidário. “Quem tem que ser enquadrado é quem escreveu a Carta ao Povo Brasileiro (documento apresentado por Lula na campanha, no qual ele se comprometia com a manutenção das metas de inflação e do superávit fiscal)”, atacou o deputado federal João Batista Araújo, o Babá (PA), em mais uma alfinetada no ministro Antônio Palocci.

Sinal amarelo

O craque corre atrás da bola incansavelmente, dribla o adversário, mostra disposição. Mas a torcida pagou para ver seu time ganhar. No futebol há um determinado momento em que os torcedores começam a pressionar seus ídolos para que, jogando bem ou mal, façam gols. Foi no 13º dia de seu terceiro mês de governo que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu seu primeiro cartão amarelo. Pesquisa encomendada pela Confederação Nacional dos Transportes (CNT) ao Instituto Sensus, divulgada na quinta-feira 13, mostrou a primeira queda na aprovação do desempenho pessoal de Lula e de sua administração. No início de janeiro, o mesmo instituto verificou que a aprovação ao governo petista era de 56,6%. Caiu para 45%, segundo levantamento feito entre os dias 8 e 10 deste mês, com duas mil pessoas em todo o País. Se em janeiro 17,7% das pessoas julgavam o governo regular, este índice hoje passou para 32,7%. A avaliação negativa pulou de 2,3% para 7,9%.

O desempenho pessoal de Lula continua mais bem avaliado do que seu governo, mas caiu de 83,6% para 78,9%. O descontentamento aumentou de 6,8% para 12,3%. A população está menos esperançosa. Segundo a pesquisa, a crença na capacidade de o governo Lula diminuir os índices de desemprego caiu de 78,2% para 63,2%. Outro fantasma também assusta: cresceu de 16,1% para 34,4% o índice dos que acreditam no aumento da inflação. Para consolo da seleção petista, a pesquisa revela que a paciência do brasileiro vai até 2004: o tempo médio que os entrevistados dão para que o governo Lula comece a melhorar suas vidas é de dois anos e dois meses.

Florência Costa