Ao contrário do que reza a lenda, em Roraima a história se repete. A prova disso é a nova onda de invasão de garimpeiros na área indígena ianomâmi. Cerca de mil homens já entraram na região das aldeias Paapicu, Ericó, Parafuri, Yawarata, Waikás e Alto Catrimani, e estão abrindo campos de mineração. O curioso é que eles chegam de avião, sobrevoando dois quartéis do Exército e instalações do Sivam, o Serviço de Vigilância da Amazônia, teoricamente encarregado de vigiar os céus da região. E os crimes não se restringem ao meio ambiente. Segundo os líderes tuxauas ianomâmis, seis indígenas foram assassinados por garimpeiros nos últimos seis meses. Os crimes ocorrem também em outras áreas. Em janeiro, o corpo de Aldo da Silva Mota, índio macuxi de 52 anos, foi encontrado sepultado em cova rasa em Uiramutã, município da terra indígena Raposa-Serra do Sol. Aldo desapareceu no dia 2 de janeiro, após receber um recado do capataz da Fazenda Retiro, propriedade do vereador Francisco das Chagas de Oliveira, para que fosse buscar um bezerro de sua aldeia. Foi e não voltou. O corpo foi encontrado sete dias depois, sob sete palmos de terra, na sede da fazenda. Elizeu, o capataz, apelidado de Bofete, desapareceu. O atestado de óbito fornecido pelo IML de Roraima deu como causa “morte natural e indefinida”. Diante disso, a Fundação Nacional do Índio (Funai) decidiu trazer os restos mortais para uma nova autópsia no IML de Brasília. O novo laudo mostra que Aldo foi assassinado a tiros, quando estava com os braços erguidos. O assassinato está praticamente esclarecido, mas os crimes ambientais em Roraima, no entanto, não têm a menor perspectiva de solução.

A destruição é maior nas reservas Raposa-Serra do Sol e São Marcos. Na Raposa, cerca de dez fazendeiros destruíram mais de 25 mil hectares de mata nativa para plantar arroz e soterraram lagoas e igarapés para facilitar a mecanização da lavoura. Apesar do desastre, vários têm licença do Departamento Estadual do Meio Ambiente. O uso intensivo de agrotóxicos mata animais e causa problemas de saúde nos habitantes das aldeias. “Antes de chegar o branco, aqui tinha um lago com peixe, jacaré, marreco e capivara e nós vivíamos dele”, afirma Severino, índio macuxi de 85 anos que nasceu no lugar onde hoje está a Fazenda Depósito, de Paulo César Quartiero. Mesmo diante de carcaças de animais, o fazendeiro nega a contaminação. Ao encontrar uma capivara morta, afirma com um sorriso no rosto: “Isso mostra que aqui há vida. Só existe morte onde há vida.”

Fora da lei – Na terra indígena São Marcos, os invasores são ainda mais organizados. Apesar do impedimento constitucional, em 1995 eles fundaram o município de Pacaraima dentro da reserva, homologada desde 1991 para usufruto dos índios das etnias macuxi, tawrepang e wapixana. A legalização do município ainda depende de decisão judicial, mas, para consolidar o crime, a prefeitura apóia a rápida destruição do que resta de mata. Nos últimos seis meses, mais de 200 hectares foram derrubados. Enquanto as motosserras trabalham, funcionários públicos instalam redes de luz e água e abrem ruas, soterrando as nascentes de alguns dos mais importantes rios da região. Sem poder para impedir a invasão, a Funai se limita a denunciar. A punição deveria ser feita pelo Ibama e pela Polícia Federal, mas tem sido inexpressiva. Em novembro passado, a Funai tentou executar uma operação de fiscalização da área com agentes dos dois órgãos. Na última hora, alegando falta de pessoal, o Ibama mandou apenas dois fiscais e a PF simplesmente não apareceu. Em dezembro, nova frustração. Dessa vez a Polícia Federal compareceu, mas os dois técnicos do Ibama se recusaram a multar os infratores: “Não sou eu e mais um que, vindo aqui, vamos mudar a situação, o problema é político”, argumentou Luciano Martinez, consultor de apoio técnico à fiscalização. A proposta da Funai era cercar o que resta da floresta, multar os invasores e, principalmente, os que dão apoio político e financeiro aos crimes. O prefeito, Hipérion Oliveira (PSL), encabeçava a lista. Até hoje, nada foi feito. Na primeira visita de reconhecimento da área, uma moradora deu pistas sobre os reais invasores: “A gente está aqui só guardando lugar para os poderosos.” Na segunda visita, os ocupantes deixaram ainda mais claro por que não temem a fiscalização: “O Ibama daqui não vem porque eles têm terra aqui”, afirmou Aldir Pereira da Silva.

O procurador da República em Roraima, Ageu Florêncio da Cunha, assegura que as invasões também são incentivadas por empresas de mineração. Os arquivos do Departamento Nacional de Produção Mineral mostram que a suspeita tem fortes bases. Na autarquia existem dezenas de pedidos para prospecção de minérios em áreas indígenas. Entre os interessados está o próprio gerente executivo do Ibama em Roraima, Ademir Junes dos Santos, conhecido como Ademir Passarinho. Segundo a ONG Instituto Socioambiental, Passarinho apresentou dois pedidos de prospecção de jazidas de granito dentro da São Marcos. À frente do Ibama desde 1995, ele gosta de alardear sua amizade com o senador Romero Jucá (PSDB), autor de um dos projetos que liberam a mineração nas terras da União destinadas aos índios, e com o atual vice-governador do Estado, Salomão Cruz (PSL). A família do vice-governador também é bastante citada em casos de violência contra os índios. Segundo relatório do Conselho Indígena
de Roraima, o pai dele, Jacir de Souza Cruz, ocupa ilegalmente dois
mil hectares na terra indígena Aracá. O sobrinho de Salomão, Roger Afonso de Souza Cruz e Silva, foi indiciado pelo assassinato do adolescente indígena Ovelário Tames. O garoto foi morto dentro da delegacia do município de Normandia em 1988, e, apesar de ter sido indiciado, Roger nunca foi julgado. Por causa desse crime, o Brasil foi condenado na Comissão de Direitos Humanos da OEA, pelo descaso
com que trata a questão indígena. “No caso de Ovelário não há mais
o que fazer. Só nos resta reconhecer a incompetência do Estado
e tentar mudar a situação daqui para a frente”, afirma o secretário Especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda.