21/11/2002 - 10:00
Casaco surrado, calça jeans e sandália, um homem dorme em uma calçada no Largo do São Francisco, no centro do Rio de Janeiro, entre a sarjeta fétida e a porta lacrada de uma loja. Só acorda de madrugada quando ouve algum barulho estranho – pode ser a Guarda Municipal, pode ser algum “playboy tirando sarro de mendigo”, pode ser um “rato” da noite – ou para chorar baixinho de saudade da família. Ora acomodado em um canto da calçada, ora sob marquises, ora em um depósito de carga na Central do Brasil, dorme abraçado a uma muda de roupa e a uma garrafa de cachaça, companheira contra o frio da noite. O carioca Ricardo de Oliveira Reis, 26 anos, acha que tem sorte. Está melhor que a maioria dos amigos, desesperados por não terem como garantir o sustento ou alimentar os filhos. Como vendedor de cachorro-quente e pipoca na avenida Presidente Vargas, uma das principais ruas do centro, não consegue faturar mais que R$ 10 por dia, dinheiro insuficiente para comer e pagar passagem de ônibus todo dia – uma despesa de quase R$ 6. Já teve carteira assinada duas vezes, como entregador de farmácia e carpinteiro. “A única coisa que não faço é roubar e matar”, esclarece. Em casa, um barraco em Ponto Chic, bairro pobre, sem saneamento e sem calçamento, em Nova Iguaçu, mora com as seis irmãs – Rita, Valéria, Vilma, Fabiana, Micheli e Tatiana. “Vou pra lá no sábado, quando durmo numa cama quentinha. Tenho duas casas”, explica Antônio, com bom humor inesperado, recebendo ISTOÉ de madrugada na segunda casa, aquela sem portas, janelas ou paredes. De noite, ele guarda sua carrocinha e dorme na rua. Isto de segunda a sexta. Só volta para casa no fim de semana. “É uma vida maldita, mas a gente acostuma”, diz resignado.
Há um mês, o carioca Edilton Teteo da Silva, 30 anos, realizou o primeiro de três sonhos: ter um emprego. Trabalha como técnico em eletrônica em um loja na avenida Rio Branco, onde fica das 7h às 20h e ganha R$ 350. Lá ele diz que mora em Jacarepaguá. Na verdade, dorme na rua – o endereço atual é a marquise do prédio onde fica a sede da Confederação Nacional do Comércio (CNC), no centro. “É para evitar o preconceito. Se falar que durmo na rua, vão me olhar diferente”, explica. Edilton, segundo grau quase completo, era casado, tinha casa em Duque de Caxias e uma moto. Trabalhava em um lava-jato. Perdeu mulher, casa, emprego e moto – nessa ordem. “Foi tudo de repente. Numa hora, eu tinha tudo. Na outra, nada.” Seu segundo sonho é ter onde morar, algo ainda distante. O terceiro, espera realizar em breve: juntar R$ 35 para colocar dentes postiços para “tapar o buraco no sorriso”. Tem almoçado pão com mortadela para economizar. O que lhe restou na vida cabe dentro de uma mochila: gel de cabelo, loção, pasta e escova de dentes, três camisas, uma calça, um par de sapatos, um par de meias e – com muito orgulho – a carteira de trabalho assinada e o jaleco azul que usa para trabalhar.
Camisa do Flamengo, no Rio desde os 18 anos, Joanir Braga Medeiros, paulista de Aparecida, hoje com 28, é casado e tem três filhos – de três mulheres diferentes. O mais novo, Jonathan, de um ano e um mês, dorme com ele e a companheira Patricia, no Largo da Carioca, dentro de uma carroça de madeira de três metros quadrados – a mesma usada por ele para recolher papelão e fazer carretos. Há alguns dias o filho não resistiu às baixas temperaturas da madrugada e foi internado com pneumonia. “Me sinto culpado”, diz. Ganha R$ 20
por dia e consegue comprar comida e fralda para a criança. Sobra
muito pouco para voltar para casa, por isso dormem os três na rua
até sexta-feira. No sábado, vai para Cabuçu, onde vive sua irmã.
Joanir já teve carteira assinada – como faxineiro de um supermercado e segurança em uma loja de sapatos. “Meu sonho? Tirar meu filho da rua”, diz, sem pensar, o homem que foi abandonado quando tinha um ano e passou a infância em colégios internos.
O fosso social do Brasil parece não ter fundo, mesmo em um país que convive a cada palmo de asfalto com mendigos trôpegos e meninos cheirando cola. Mas, nesse condomínio a céu aberto formado por moradores de rua, cresce um personagem recente na galeria da miséria brasileira: o desabrigado com teto. Se voltassem todos os dias para casa de ônibus ou de trem, homens como Ricardo, Edilton e Joanir teriam que usar o dinheiro guardado para comprar comida. Por isso, dormem na rua. Estima-se que, de cada quatro moradores que passam a noite nas ruas e praças do Rio, um tem casa ou lugar onde dormir. Moram na periferia, em lugares como Santa Cruz e Paciência, ou em conjuntos habitacionais, como o Nova Sepetiba, na zona oeste, criado pelo governo do Estado para atender justamente o trabalhador que mora longe. Não adiantou. Como fica a quase duas horas do centro, moradores do Nova Sepetiba voltam a morar nas ruas. “São trabalhadores sem o direito de ir-e-vir por falta de dinheiro”, define Maria Juraci, diretora da Fundação Leão XIII, ligada ao Estado do Rio, que administra abrigos e albergues no Rio, insuficientes para atender a essa nova demanda.
“É uma nova manifestação do caso de exclusão extrema que vem se expressando nas grandes metrópoles brasileiras”, aponta o economista Chico Menezes, diretor de programas do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). Já houve um tempo em que trabalhadores como Antônio, o vendedor de cachorro-quente, eram minoria em meio a um exército de esfarrapados formado em sua maioria por alcoólatras e doentes mentais. A miséria urbana mudou o perfil dos moradores de rua. Hoje, camelôs, catadores de papel, encartadores de jornais, entregadores, flanelinhas e outros “profissionais” da crise dormem nas ruas durante a semana. Transformam em casas trechos das avenidas Presidente Vargas e Rio Branco, dos largos do São Francisco e da Carioca, das praças Onze, da República e da Cruz Vermelha, entre outros lugares. O fenômeno é tão sério que entidades que lidam com essas populações carentes já fazem diferenciação entre “morador de rua” e “morador na rua”.
Nova imagem – Os números variam, mas, segundo o professor Dário de Souza e Silva Filho, chefe do Departamento de Sociologia Urbana da Uerj, é uma população que “não supera dez mil pessoas”, sendo que a capital concentra 70% dos moradores de rua do Rio de Janeiro. Perto de três mil perambulam entre abrigos e albergues. Numa cidade com 457 favelas, território já ocupado por trabalhadores de baixa renda, a rua abriga os excluídos dos excluídos. Isso que os estudiosos chamam de “estratificação da pobreza”. “É uma população que muitos gostariam que fosse invisível, mas que aumenta a olhos vistos como reflexo da pobreza do País”, diz o psicólogo belga Xavier Tislair, 29 anos, que deixou família e namorada na Bélgica para coordenar, no Rio de Janeiro, o Projeto Meio-Fio,
criado pela ONG multinacional Médicos Sem Fronteiras para
atender à população de rua na cidade. “Estamos desconstruindo
a imagem que a sociedade tem dessa população”, completa a
psicóloga Lurdilena Ester dos Santos, 35 anos.
A grande maioria é de adultos em idade produtiva, com algum tipo
de emprego, formal ou informal. Ao identificar mais de 500 pessoas vivendo apenas em ruas do centro, a Médicos Sem Fronteira descobriu que 60% têm alguma referência familiar (parentes conhecidos), um
terço vive há menos de seis meses nas ruas e apenas uma pequena
parte mendiga ou vive de atividades criminosas. Nove em cada dez
são trabalhadores: 42% recolhendo material reciclável, 13% como biscateiros, 9% como vendedores ambulantes e até funcionários
públicos, garis, diaristas e operários da construção civil e indústria
naval. Só 17% não têm ocupação definida.
“Derrubamos dois mitos. Primeiro, o de que a população de rua é de migrantes rurais. São pessoas nascidas ou criadas no Estado. Segundo, o de que é uma turba de bêbados, loucos e drogados. São trabalhadores em idade produtiva, com instrução primária, sem emprego, sem casa ou sem condições de voltar para casa”, aponta o professor Dário de Souza, autor de Feios, sujos e malvados, o mais completo estudo sobre moradores de rua na cidade. O trabalho mostra que 58% dos moradores de rua do Rio já tiveram carteira de trabalho assinada. Desabaram do mercado formal direto para as ruas. Outros ainda têm e a exibem quando são abordados pela polícia. “Eles não admitem ser confundidos com mendigos”, diz Souza. O perfil dos “adultos de rua” é bem definido: homem, negro ou pardo, já frequentou a escola (quatro anos e meio de estudo, mesma média do País), está no auge de sua
idade produtiva (média de 38 anos) e vive de atividades informais.
Muitos foram expulsos pelo desemprego. Outros pelo preço dos
imóveis, inclusive nas favelas, que não têm mais para onde crescer
e acabam loteando seus barracos a preços cada vez mais altos. Ou
pela violência do tráfico. E um número cada vez maior pela impossibilidade de pagar o transporte de volta para casa.
Não há vagas nos albergues e abrigos mantidos pelo Estado. Os quatro albergues e um abrigo do município estão lotados, enquanto o Centro de Triagem, no Alto da Boa Vista, montado para selecionar os moradores que podem pernoitar, tem até lista de espera. Um morador de rua conta que já esteve dez vezes no centro e não conseguiu um lugar para dormir. Cerca de 500 pessoas dormem nesses cinco locais, onde ficam em média de três a seis meses. Outro ponto é o Hotel Popular, na Central do Brasil, mantido pelo governo do Estado, que cobra R$ 1 por noite. O problema é que para passar a noite ali o trabalhador tem que exibir comprovante de residência e carteira assinada, moeda difícil nestes dias de crise. “Ninguém é produto do asfalto. Essas pessoas vivem nas ruas porque foram expulsas pelo sistema”, reconhece a assistente social Bernadette Jeolás, coordenadora do sistema de assistência social da Prefeitura do Rio, onde trabalha há 20 anos.
O recifense Moacir José de Andrade, 42 anos, há 24 morando no Rio, já mudou de “cama” três vezes nas últimas semanas. Para evitar que a frente de suas lojas vire dormitório, comerciantes têm usado um método desinfetante: lavar as calçadas com creolina. Quando não é a creolina, é a Guarda Municipal. Com a alegação de limpar o lixo das ruas, a Subprefeitura do centro tem usado a “Operação Cata-Tralha” para recolher objetos pessoais e até medicamentos de quem dorme nas calçadas. “Eles batem na gente, levam nossas coisas, nos expulsam”, conta Andrade, que hoje vive como catador de papelão, mas já teve carteira assinada. O último emprego foi como faxineiro da sede do Fluminense, em Laranjeiras. “Dormir na rua leva-os não apenas a ser tratados como lixo largado na calçada, mas a perder as próprias referências. A auto-estima se esfacela. Com o tempo, ou a família os esquece ou eles se escondem dela, envergonhados de dormir na sarjeta”, define a enfermeira Eriedna Santos Barroso, 29 anos, integrante da Médicos Sem Fronteira, que passa parte de suas noites limpando feridas e fazendo curativos em moradores nas ruas do centro. “Quem é mendigo hoje? Olhando o passado dessa gente, enxergamos nossas próprias vidas e constatamos que qualquer um de nós podia estar ali agora”, questiona. Quem abrir bem os olhos vai perceber que as ruas do Rio não estão infestadas de feios, sujos e malvados. É só querer enxergar.