No país do Carnaval e do futebol, quem não sabe rebolar e driblar dança. Dizem seus amigos que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva até que bate uma bola. Mas não foi desta vez que o povo pôde ver se seu presidente tem o axé music ou o samba no pé: ele dispensou os convites para exibir sua popularidade no Rio de Janeiro e na Bahia e preferiu o retiro em Brasília durante os dias de folia. Mas Lula esteve lá na Marquês de Sapucaí. Encarnado em um boneco de 9,5 metros de altura, acabou desfilando seu estandarte contra a fome nas entrelinhas do samba-enredo da vitoriosa Beija-Flor: O povo canta a sua história: saco vazio não pára em pé – a mão que faz a guerra faz a paz. Mas a festa acabou, e se Lula não sambou, terá de caprichar no rebolado para fazer o saco ficar em pé.

Com o início da Quaresma, a privação não será apenas de carne, como reza a antiga tradição cristã. Começa agora o terceiro mês de governo, historicamente um momento crítico em que os governantes perdem pontos no quesito popularidade quando não conseguem acompanhar o ritmo exigido pela platéia. Janeiro e fevereiro foram consumidos pela difícil tarefa de ocupar e entender os intrincados labirintos do poder. O desembarque do bloco petista no Planalto mexeu fun do na estrutura da máquina do Estado, com a renovação em todos os seus escalões.
Lula elegeu-se vendendo a idéia de que representava a esperança.
Mas, ao detectar o doce cheirinho da vitória, outra mensagem começou
a ser semeada: a da paciência. No dia de sua posse, ao discursar no Congresso Nacional, voltou a pedir tolerância. O povo brasileiro tem,
de fato, essa característica.

“…Brava gente sofrida, da Baixada/ soltando a voz no planeta Carnaval/ eu quero: liberdade, dignidade, união/ fui lata, hoje sou pirata/ lixo ouro da região/ chega de ganhar tão pouco/ tô no sufoco: vou desabafar/ pare com essa ganância, pois a tolerância pode se acabar…” (trecho do samba da Beija-Flor)

O presidente Lula ainda poderá desfrutar durante um bom tempo da histórica boa vontade dos brasileiros. Pesquisa do Instituto Sensus, divulgada no dia 26 de fevereiro, mostrou que o povo dá um prazo de um ano e dez meses para começar a exigir os resultados concretos das promessas de melhoria de vida. Já dizia o filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau (1712- 1778) que “a paciência é amarga, mas seu fruto é doce”. Metáfora semelhante foi utilizada por Lula, no dia 25 de fevereiro, ao afirmar que seu governo não será um mero continuísmo dos oito anos de FHC. “As mudanças estruturais vão acontecer. Mas isso é como colher uma fruta. Não adianta, com pressa, colhê-la verde, porque a gente vai comer, não vai gostar e vai jogar fora. E estamos num processo de amadurecimento”, argumentou o presidente. O PT utilizou os comerciais de tevê e rádio a que tem direito para afirmar que o País está na rota da mudança, mas “com calma e cuidado”. Porém, Lula corre contra o relógio. O mesmo Rousseau que ressaltou as virtudes da tolerância também advertiu que a “esperança deixa de ser felicidade quando a impaciência a acompanha”.

O presidente Lula também tem cobrado de seus colaboradores criatividade na apresentação de medidas de impacto na área social
para compensar a dureza do aperto econômico. Um mês e 17 dias depois de ter proferido seu emocionado discurso de posse, Lula voltou ao Congresso Nacional, mas parecia outro. Na cerimônia de abertura dos trabalhos parlamentares, estava sério, com ar cansado e até com uma aparência mais envelhecida. Pede paciência ao povo, mas ele próprio sente a agonia com a lentidão dos passos do paquiderme estatal. “O presidente Lula está muito preocupado. Não há margem de manobra na economia. Ele tem a sensação de que tudo anda muito devagar”, comentou um de seus colaboradores. “Notei angústia, até um pouco demais. Ele nem parava quieto na cadeira, se mexia, se agitava, contando casos concretos e criticando até lideranças muito próximas a ele”, observou o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Jayme Chemello, recebido por Lula em seu gabinete, no terceiro andar do Palácio do Planalto.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

O ritmo que o presidente se impõe, e a todos no Planalto, é para metalúrgico nenhum botar defeito: uma média de 14 horas diárias de trabalho. Na sexta-feira 28, véspera de Carnaval, o presidente foi um dos poucos que bateram cartão no Planalto. Os fios brancos cada vez mais abundantes em sua barba já preocupavam Lula antes da eleição. Ele sempre recusou conselhos para tingi-los. Chegou a pensar em raspar a barba, que já fez bodas de prata, mas decidiu manter o símbolo, passando apenas a apará-la com mais frequência. “Que os cabelos e a barba estão embranquecendo de vez, é uma realidade”, admite um assessor palaciano. “Uma das reclamações mais frequentes tem sido a dificuldade de manter o regime”, conta o ministro do Trabalho, Jaques Wagner, amigo de longa data do presidente. Lula ainda não conseguiu encaixar na rotina presidencial as caminhadas recomendadas pelos médicos para manter a forma e perder peso. Os poucos momentos de lazer são as sessões de cinema, principalmente os filmes nacionais, no Palácio da Alvorada. Na campanha, Lula garantia que não ficaria encastelado em Brasília. A dura realidade mostrou que nem essa singela promessa é fácil de ser cumprida. Na primeira semana de governo, conseguiu levar seus ministros para conhecer alguns exemplos de miséria do País. Mas, de lá para cá, tem-se consumido em reuniões e audiências em Brasília, se desdobrando em mil para tentar descascar os intermináveis abacaxis, e resistir às massacrantes pressões vindas de todos os segmentos da sociedade. Para atenuar o ambiente, Lula mudou a posição da mesa presidencial, que antes ficava de costas para as amplas janelas do gabinete. “Ele decidiu que ia ficar trabalhando de frente para as janelas, para desfrutar da amplidão dos espaços e da vista”, conta Wagner. Lula sente-se angustiado também por ficar enclausurado em um palácio de concreto, sem saber se faz sol ou se chove do lado de fora.

Se os problemas e as críticas o sufocam, pelo menos o presidente Lula tem como consolo o fato de continuar desfilando na passarela da popularidade. Segundo pesquisa do Instituto Datafolha, feita entre 9 e 11 de dezembro de 2002, nada menos do que 76% dos brasileiros achavam que seu governo seria ótimo ou bom, patamar superior ao alcançado por seus antecessores no mesmo período. Fernando Collor assumiu com 71% de popularidade; Itamar Franco, com 18%; FHC teve 70% no primeiro mandato e 41% no segundo. Mas, segundo dados do mesmo instituto, todos os presidentes chegaram no terceiro mês a um índice de aprovação que variava entre 21% e 39%. No entanto, a popularidade do petista está tão vitaminada que ultrapassou as fronteiras e globalizou-se. Lula seria eleito presidente da Argentina, nas eleições marcadas para  o dia 27 de abril, com metade dos votos dos eleitores, especialmente
os de classe média e alta (56%), segundo pesquisa feita pela Consultoria Graciela Romer e Associados entre os dias 15 e 16 de fevereiro. Porém,
o amor de um povo por seu governante não se sustenta apenas com
o carisma ou palavras de paz e amor. “Nenhum líder, por maior que
seja, pode prosseguir por muito tempo, a não ser que conquiste
vitórias. A batalha decide tudo”, ensinava um dos mais prestigiosos comandantes da Segunda Guerra Mundial, o marechal britânico Bernard Montgomery, que comandou as forças aliadas durante o histórico desembarque na Normandia.

“Luz divina luz que me conduz/clareia meu caminhar clareia/ nas veredas da verdade: cadê a felicidade/ aportei num santuário de ambição…” (primeira estrofe do samba da Beija-Flor)

Lula deflagrou a guerra contra a fome, vem atirando com todas as armas de que dispõe para tentar matar o dragão da inflação e articula a estratégia para combater o crime organizado. Ao começar o governo, sinalizou que não seria pautado pela economia, mas pelo social, ao priorizar a guerra contra a miséria. No entanto, a polêmica em torno do Programa Fome Zero e as dificuldades para implementá-lo foram um balde de água fria. Em fevereiro, o choque de realidade: o governo anunciou uma série de medidas duras na área econômica, como a tesourada de R$ 14 bilhões no Orçamento e os dois aumentos na taxa de juros. O fantasma do desemprego também tira o sono de Lula. No dia 25 de fevereiro, a taxa de desemprego na região metropolitana de São Paulo atingira 18,6% da População Economicamente Ativa (1,75 milhão de pessoas). Trata-se do maior índice desde 1985, quando a pesquisa mensal da Fundação Seade e Dieese começou a ser feita. Acrescentam-se ainda ao baú de problemas presidenciais as escaramuças internas do PT, lideradas pelos radicais. O MST também está em seu calcanhar. Voltou a promover uma série de invasões em vários Estados durante o Carnaval, inclusive com depredações de prédios públicos. O antigo aliado do PT recebeu uma dura advertência. O ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, avisou que os limites da democracia devem ser respeitados.

“…Oh! Meu Brasil /overdose de amor nos traz/ se espelha
na família ‘beija-flor’/ lutando eternamente pela paz.”
(trecho
final do samba da Beija-Flor)

Não bastasse essa montanha de problemas, uma onda de violência, coordenada pelo narcotráfico, engolfou o Rio nas vésperas do Carnaval. Não foi à toa que o presidente dispensou os convites para desfilar sua popularidade na folia carnavalesca. Ele passou os dias de folga dividido entre duas guerras: a interna, contra o crime organizado, que o fez colocar três mil homens das Forças Armadas nas ruas do Rio; e a externa, com a ameaça dos Estados Unidos de invadir o Iraque. Persistente nas tentativas diplomáticas em favor da paz, Lula – que já havia conversado por telefone com o presidente francês Jacques Chirac na semana anterior ao Carnaval –voltou à ativa na segunda-feira 3, quando conversou com o chanceler alemão Gerhard Schöeder. Na Quarta-feira de Cinzas, o presidente falou com o primeiro-ministro britânico, Tony Blair.

Lula e seus gigantescos desafios mereceram a publicação de uma das mais extensas reportagens feitas pela revista conservadora britânica
The Economist, na sua última edição de fevereiro. A publicação, uma
das mais conceituadas do mundo, retrata a sinuca de bico na qual se encontra Lula: ou ele vai levar o País à prosperidade ou o fará retroceder ainda mais na direção da miséria. Adverte ainda que o fosso entre o sonho dos brasileiros e a realidade do País é imenso e que Lula terá muito pouco tempo para realizar as reformas que prometeu, como a da Previdência e a tributária. Tem que aproveitar a alta popularidade para aprová-las. Ambas são tidas como pré-requisitos para que o governo ganhe crédito diante do implacável mercado para, finalmente, poder cumprir a promessa de diminuir a sufocante taxa de juros. A revista inglesa afirma que, com sorte, o petista poderá ser incluído no clube dos presidentes lembrados mais por seus feitos positivos do que por seus erros e defeitos, citando Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e FHC. Pé-quente o presidente Lula já demonstrou ser. No seu primeiro Carnaval como presidente da República, ele pôde festejar a vitória de suas duas escolas de samba do coração: além da Beija-Flor, a Gaviões da Fiel foi a campeã do desfile em São Paulo.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias