Entediado com a vida burguesa parisiense e mergulhado em dificuldades financeiras após a perda do pai, da mãe e de um dos irmãos, o fotógrafo, etnógrafo e babalaô Pierre Fatumbi Verger (1902-1996), numa decisão tipicamente cartesiana, resolveu marcar uma data para a sua morte: às 18h de 4 de novembro de 1942, dia do seu 40º aniversário. Para pôr em prática seus planos, quatro anos antes ele comprou uma fita métrica de 1,50 m, para, a cada noite, cortar um milímetro numa contagem regressiva de seu suicídio. Só que, já tomado pelo espírito de viajante que o acompanharia para sempre, Verger simplesmente se esqueceu de dar fim à vida na hora prometida. À época se encontrava em Cuzco, Peru, lendo com grande interesse A importância de viver, de Lin Yutang. “Espalhei aqueles milímetros em três continentes (a Europa, a África e as Américas),
nos oceanos Atlântico e Pacífico, nos rios afluentes do Amazonas,
no lago Titicaca, no Rio de la Plata e na baía da Guanabara”, lembraria mais tarde. A passagem reveladora é contada em Pierre Verger –
saída de Iaô, cinco ensaios sobre a religião dos orixás
(Axis Mundi Editora/Fundação Pierre Verger, 200 págs., R$ 65), devidamente
ilustrado com fotos do francês, cujo lançamento integra as comemorações do seu centenário de nascimento.

Trata-se de um daqueles livros com várias portas de entrada. Para o aficionado em fotografia, material não falta. As 105 fotos selecionadas revelam uma síntese equilibrada da produção do artista, mesmo quando se sabe que seu acervo chegou aos 62 mil negativos. Vão desde
os primeiros registros de viagens pelo México, Bolívia, Cuba, Haiti,
Argentina, Estados Unidos, Espanha e Itália até a descoberta da
África e do Brasil, especialmente a Bahia, quando passa a se interessar mais diretamente pelos cultos afro-brasileiros. Verger começou a fotografar aos 30 anos. Avesso ao esnobismo técnico, ensinava que
para se obter um bom registro era preciso antes viver com as pessoas
a serem retratadas, sem contudo procurar compreendê-las. “Quando fotografo, não sou eu quem está fotografando. É alguma
coisa dentro de mim que aperta o disparador”, afirmou.

Filme curto – Vista após os textos introdutórios Último encontro com Pierre Verger, entrevista dada ao jornalista Luís Pellegrini em novembro de 1995, três meses antes de sua morte; e Fatumbi, o destino de Pierre Verger , dos antropólogos Rita Amaral e Vagner Gonçalves da Silva, a sequência de fotos funciona como um filme curto, testemunho de um olhar sedento de vida que viu o mundo e a humanidade como poucos. Deixa claro, inclusive, quando troca o estilo artístico pelo antropológico. A mudança se dá por volta de 1949, ano em que Verger foi pressionado a escrever sobre o que documentara no Daomé como
bolsista do Instituto Francês da África Negra. “A partir deste momento eu estava perdido para a fotografia”, afirmou. Os cinco ensaios do livro – Uma saída de iaô em uma aldeia nagô no Daomé (1951); Papel exercido pelo estado de torpor durante a iniciação dos noviços ao culto dos Orixás e Vodun (1954); Noção de pessoa e linhagem familiar entre os iorubás (1961/71); Calmantes e estimulantes na farmacopéia iorubá (1966); e A sociedade egbé òrun dos àbíkú, crianças que nascem para morrer muitas vezes (1968) – são testemunhos desta transformação, coroada, em 1953, através do título de babalaô (pai do segredo) com
o nome de Fatumbi (renascido por meio de Ifá, orixá do destino).

Não são ensaios reservados a iniciados, já que Verger adotava a postura do “minerador paciente”, nas palavras do etnógrafo Théodore Monod, aquele
que simplesmente colhe, documenta e revela o rico material das tradições. Especialmente poético é o estudo
sobre os àbíkú, seres maléficos que incorporam crianças condenadas a morrer. Para evitar que seus filhos
sejam levados deste mundo, os pais
se dedicam a práticas encantatórias
com o uso de talismãs e vegetais.
Dentre as oito ítan (histórias) colhidas por Verger, a primeira delas,
É preciso cuidar dos àbíkú, caso contrário eles voltarão ao céu, conta
a recusa da criança em viver no plano terreno. “Quando as pessoas
são atraídas por eles (os amam), nesse momento eles quererão deixar
as pessoas”, diz a narrativa em toda sua beleza trágica.