Metade do poder desconcertante dos filmes do cineasta americano Woody Allen vem do fato de eles serem o próprio Woody Allen. O tom reflexivo e sedutor de Manhattan (1979), a fina ironia de Zelig (1983) e a delicadeza nonsense de A rosa púrpura do Cairo (1985), para reduzir o exemplo a três obras-primas, são produtos de uma versão peculiar de neo-existencialismo que, antes de tudo, enriquece a biografia do diretor. Todos os seus 35 filmes têm vida própria – e que vida –, mas brilham com maior força quando admirados à luz de suas neuroses e contradições. Em função desta riqueza de personalidade, muito se escreveu sobre Allen em
todo o mundo. No entanto, os brasileiros interessados sofrem com a falta de um bom material em português. O livro Woody Allen (Editora Papagaio, 214 págs., R$ 30), da jornalista e crítica de cinema Neusa Barbosa – o primeiro da série Gente de cinema –, chega para tapar uma boa parte desse buraco.

Com precisão, Neusa localiza cada filme no contexto do período de sua criação e de seu lançamento. Também aborda questões polêmicas, como o tumultuado final do casamento com Mia Farrow e o envolvimento com a filha de criação da atriz, Soon-Yi Prévin. A autora ainda reúne informações preciosas sobre o diretor, muitas inéditas e relacionadas a ícones da cultura brasileira, entre eles o escritor Machado de Assis, os compositores Noel Rosa e Tom Jobim e o cantor João Gilberto. No final, há uma entrevista com Allen feita pela autora no último mês de maio, durante o Festival Internacional do Filme de Cannes.

A eficiente reconstrução das situações e a ausência de afetação estão entre as qualidades do texto. Um exemplo é o comentário sobre a fita Desconstruindo Harry (1997), na qual Allen interpreta Harry Block – o nome ironiza o tradicional bloqueio criativo comum entre os escritores. “(O filme) pode ser considerado uma de suas obras-primas, pelo engenho com que comenta os dilemas profissionais e pessoais de um artista. (…) Woody (Block) introduz de verdade fragmentos da sua própria biografia na sequência em que é confrontado pela ex-mulher (Kirstie Alley) por tê-la traído com uma paciente. ‘Mas nós não saímos, não conheço ninguém’, justifica-se ele, candidamente, num diálogo que pode muito bem ser lido como uma referência (acidental?) ao fato de o romance com Soon-Yi ter surgido entre as quatro paredes da família Allen-Farrow”, explica a autora.

O bom trabalho de definição de ambientes prossegue na apresentação de Maridos e esposas (1992). No filme, mostra os dilemas de dois casais amigos – Gabe (Allen) e Judy (Mia); Jack (Sidney Pollack) e Sally (Judy Davis). O último casal se divorcia e Jack casa-se com uma daquelas jovens bombadas pela aeróbica. A história foi escrita anos antes da revelação do caso com Soon-Yi. “O diretor jura que é tudo coincidência. Freud explica”, brinca a autora, enquanto revela uma brilhante observação de um jornalista do The New York Times: “Esse foi provavelmente o primeiro filme já feito sobre um escândalo antes mesmo que ele tivesse acontecido.”

Outro capítulo curioso é o que revela a admiração do diretor por artistas brasileiros. A música do genial Noel Rosa chegou a seus ouvidos graças ao fotógrafo americano John Clifford. “Mesmo sem entender a letra em português, imediatamente reconheceu o estilo: ‘Mas essa é a música do meu tempo!’ E, como amante dos ritmos dos anos 30, com os quais foi embalado desde o berço, quis saber mais a respeito do sambista.” Woody ficou fascinado com a vida boêmia de Rosa e espantado pelo fato de o compositor ter feito mais de 200 músicas em apenas 27 anos de vida.

Machado de Assis foi descoberto pelo cineasta no final de 1990, quando um fã brasileiro lhe enviou um exemplar em inglês do clássico Memórias póstumas de Brás Cubas. Impressionado, confessou a Clifford que se identificou com o protagonista. “É meu espírito num personagem criado por um homem negro no Brasil há 150 anos. Ele fala exatamente igual a mim, é impressionante!”, contou Allen ao amigo. “Brás Cubas é ele. O tom e a atitude são os mesmos”, confirma Clifford, que também abasteceu Allen com discos de Paulo Moura, Raphael Rabello, Paulo Sérgio Santos, Teco Cardoso e Caetano Veloso.

No prefácio, o jornalista Ruy Castro conta que Allen, saxofonista nas horas vagas, foi um dos primeiros americanos a dividir um palco com um concerto de bossa nova. Em 1962, o diretor apresentava um show cômico no Village Vanguard, em Nova York. “Numa dessas, terminado o seu espetáculo, entraram Antônio Carlos Jobim, João Gilberto e outros, de violão nas costas, ainda fresquinhos do concerto no Carnegie Hall, dias antes”, conta Castro. “Claro que só alguns anos depois Tom o identificou como Woody Allen, aquele comediante tímido, narigudo e de óculos que o antecedera no palco.” Além de radiografar com competência a trajetória de um dos mais importantes diretores das telas, Gente de cinema – Woody Allen guarda o mérito de trazer informações novas e histórias saborosas.