Museum Of Modern Art de Nova York (MoMa) exibe até 19 de maio a excelente mostra Matisse Picasso. Com 132 telas produzidas pelos dois artistas, o museu procura refutar um dos conceitos mais arraigados da crítica: o de que Henri Matisse e Pablo Picasso são opostos na colorida tabela das artes do século XX e diferem em gênero, número e grau. No armazém industrial que serve de acomodação temporária ao MoMa, na zona do Queen’s, enquanto uma grande reforma acontece no seu endereço original de Manhattan, está sob holofotes a tese de que Picasso e Matisse, na verdade, são uma espécie de yin e yang, o símbolo da integração de forças opostas. A idéia, diga-se, ocupa os círculos experts há anos, tendo experimentado uma primeira exposição pública nos Estados Unidos em 1999, sob a batuta do curador Ive-Alain Bois,
no Kinbell Art Museum, de Fort Worth, no Texas. Mas em Nova York, agora é possível visualizar este confronto conceitual como se fosse
uma luta de pesos pesados.

No ringue, encontram-se titãs rivais que se respeitam, se homenageiam e se copiam mutuamente. O envolvimento da dupla no trabalho de um e de outro foi se acentuando ao longo da carreira de ambos. É um diálogo-concordante ou antagônico entre mestres, que serve de lição e até agora ainda ressoa em ateliês do mundo inteiro. Matisse e Picasso fizeram de seus estúdios verdadeiros laboratórios de experimentação, onde o mundo passou a ser percebido sob prismas e modelos alternativos. Aplicaram em tela a máxima da física, que garante ser a realidade fruto da posição de seu observador. Com Matisse, as provas desta tese são obtidas em cores luxuriantes, exprimindo sensações. Picasso optou por desmantelar a representação visual, numa demonstração da arbitrariedade de sua natureza. Complicado? Nem tanto. Matisse usou cores para mudar o jeito do mundo, enquanto Picasso jogou com formas para atingir este objetivo. A diferença de opções seria – na visão da crítica – o antagonismo entre os dois artistas.

Homenagem – No MoMa, percebe-se que este propalado antagonismo, na verdade, não existe. Os trabalhos de Matisse e Picasso são complementares. Pegue-se o primeiro diálogo revelado na mostra. A tela Portrait of Marguerite (1906), de Matisse, e Pitcher, bowl and lemon (1907), de Picasso. Em cada trabalho o respectivo autor presta uma espécie de homenagem ao outro, tomando conhecimento da estética criada pelo rival, mas sem deixar de lado seu próprio estilo. Mais comparações pavimentam os caminhos dos dois. Assim, o visitante vai certamente notar as semelhanças cromáticas e formais nas voluptuosidades das modelos de Large reclining nude (the pink nude) (1935), de Matisse; e Nude in a black armchair (1932), de Picasso. A musa não é a mesma, mas sua sensualidade e postura são gêmeas, quase idênticas. Afinal, o exacerbado apetite sexual era outra característica compartilhada pelos dois faunos.

Até mesmo nos respectivos auto-retratos (ambos de 1906) há uma espécie de justaposição genética entre aqueles dois homens, que lhes confere parentesco, ainda que imaginário. “O único homem que tem condições de me compreender e criticar é Pablo Picasso”, disse Matisse, a propósito da crítica ao seu trabalho, num tempo em que sua genialidade já era quase unânime. “Matisse é inspirador e professor de minha arte”, retrucou em outra ocasião Picasso, que, como se sabe, só era pródigo no auto-elogio. A troca de homenagens vai para as telas, como, por exemplo, em Goldfish and palette (1914), na qual mestre Matisse acena para o cubismo de Picasso. Note-se a palheta branca do artista, colocada no lado direito da tela, em que um dedo protuberante apresenta inegáveis qualidades fálicas. O contraponto de mestre Picasso vem com a tela Harlequin (1915), um auto-retrato nos trajes de arlequim cujo arco cromático é típico de Matisse.

O perigo nesta briga comprada pelo MoMa é dar a vitória à tese do
museu antes de o gongo soar. Picasso, é claro, não era Matisse, e as diferenças entre os dois estão representadas em profusão maior do que a dos pontos de convergência. O espanhol Pablo Picasso, 12 anos mais novo, não sofreu a influência tão forte do fauvismo – o movimento artístico radical do fin-de-siècle – do qual o francês Henri Matisse era
um dos líderes. O primeiro foi buscar matéria-prima para seu começo
de jornada no simbolismo do final dos anos 1800. Enquanto o segundo mergulhou na sinfonia de cores que foi primeiro orquestrada pelos
mestres Van Gogh e Paul Gauguin. Ambos, porém, buscaram inspiração em Cézanne para explorações de espaço e distribuição da cor para
criar ilusões de profundidade.

Alavanca – Transparece na mostra do MoMa o uso mútuo que estes dois mestres fizeram dos respectivos trabalhos. Cada um usou o outro como alavanca para mudar o mundo. Não de uma única vez, mas com esforços seguidos que duraram até sua morte. Matisse, por exemplo, aproveitou o cubismo para sair do fauvismo, mas sempre com referências e reverências à sua velha escola. Picasso foi buscar nas tintas do colega novos meios para expressar seu mundo de distorções angulares. E o escancarar desta simbiose é o grande mérito da exposição Matisse Picasso, que estreou em 2001 na Tate Modern de Londres, ganhou o Grand Palais de Paris e agora desembarca em Nova York. Mas coube ao museu do Queen’s uma reorganização que dá melhores substâncias à mostra, além de um didatismo capaz de ilustrar as absurdas multidões que esperam horas na fila, sob a inclemência do pior inverno nova-iorquino em décadas. O ingresso de US$ 20 deve ser comprado com antecedência de pelo menos três horas. O sacrifício e o gasto, porém, compensam qualquer esforço.