Família é destino: ninguém escolhe sua herança genética. Mas é possível esconder a linhagem. Trancar uma tia maluca no porão, negar parentesco a um primo bêbado e vigarista ou mudar o sobrenome vergonhoso. É por isso que ninguém encontrará, por exemplo, a alcunha “Hitler” na lista telefônica da cidadezinha de Patchogue, em Long Island, no Estado de Nova York. No entanto, três descendentes diretos do ditador nazista Adolf Hitler vivem no local. Compõem o que sobrou da prole de William Patrick Hitler, meio-sobrinho do führer. Alexander, Louis e Brian – três respeitáveis comerciantes de meia-idade – fazem de conta que a história não é com eles. Ao contrário de Sergei Kruchióv, que, aos 71 anos, vive no Estado de Rhode Island, dá aula na Universidade de Brown e nunca negou ser filho do ex-líder soviético Nikita Kruchióv (1955-1964). A mesma linha de conduta é seguida por Alina Fernández, 50 anos, filha do ditador Fidel Castro e que fugiu para a Espanha em 1993, mas atualmente vive em Miami, onde é apresentadora de um programa da rádio WQBA. Casos como esses demonstram que, nos Estados Unidos, a ancestralidade dos inimigos pode ser o melhor passaporte para a nacionalidade.

Na Câmara de Comércio de Patchogue, a empresa de jardinagem Fantastic Gardens, no número 67 da avenida Avery, está registrada em nome dos irmãos Stuart-Houston. Louis, o segundo filho de William Patrick, cuida mais da burocracia do negócio. Mas ainda é possível ver Brian mexendo na terra dos jardins das mansões de Long Island – a maioria, diga-se, residências de famílias de sobrenomes como Rothemberg, Goldman, Cohen e outros galhos da árvore genealógica judaica. Hoje em dia, quase todo mundo sabe que o patriarca “Willy”, morto em 1987 e que morava num bangalô modesto na rua Silver, era filho de Alois Hitler Jr., o meio-irmão de Adolf, por parte do pai. Willy nascera em Liverpool, em 1911, e depois de uma fracassada tentativa de morar na Alemanha nazista e pegar carona na fama do tio ditador, acabou se mudando às pressas para Nova York. “O que se diz é que Willy, sem ter conseguido obter vantagens com o nepotismo, ameaçou divulgar o suposto parentesco de Hitler com um judeu austríaco chamado Frankenberger, o que tornaria público o vínculo semita do führer”, diz o historiador Michael Unger, autor do livro The memories of Bridget Hitler, sobre a segunda esposa do patriarca Alois.

Willy adotou o american way of life, inclusive escrevendo ao então presidente Franklin Delano Roosevelt (1933-1945) e pedindo para ser aceito na Marinha dos Estados Unidos. Diz-se que, quando em 1944 o voluntário compareceu ao escritório de alistamento e disse seu sobrenome, o oficial presente respondeu: “Muito prazer, senhor Hitler. Meu nome é Rudolf Hess” (numa referência ao ex-número 2 da hierarquia nazista). O resultado desta incursão militar contra a pátria do tio Adolf foi um ferimento leve que lhe rendeu a medalha Purple Heart. Casado com uma discreta senhora alemã, seus filhos começaram a nascer a partir de 1949. Alexander, hoje com 57 anos, foi o primeiro. Apesar do proclamado ódio de Willy ao tio, seu primogênito recebeu no batismo o nome de Alexandre Adolf. Depois dele vieram Louis, 55, Howard – que morreu num acidente de carro em 1989 – e o caçula Brian, 41. ISTOÉ procurou os sobreviventes em Long Island, mas, assim como outras publicações, não conseguiu entrevistar nenhum Hitler. Alexander, um assistente social que cuida de veteranos de guerra, nem sequer abriu a boca, fechando a porta na cara do repórter. Já Louis, na loja de jardinagem, disse que os irmãos estavam prestes a publicar um livro biográfico e que não iriam antecipar seu conteúdo para a imprensa. “Você não contaria primeiro para outra revista o que recolheu para este artigo, não é?”, disse.

De todo modo, o segredo familiar já se espalhou. A peça de teatro Little Willy, de Mark Kassen, e que fala de William Patrick, está em cartaz. Reportagens apareceram nos jornais de quase todo o mundo. E o que é pior, os sites neonazistas na internet fervilham com a descoberta de que o sangue do führer corre em veias de Long Island. “Até agora ninguém divulgou endereços e o sobrenome adotado pela família. Mas isso não impede de que neonazistas e skinheads façam peregrinação a Patchogue tentando encontrar os parentes de Hitler”, diz o sargento Carl Hoffman, da polícia da cidade. “O que faço é mandar esta gente de volta para casa. Aqui as pessoas ainda têm o direito à privacidade”, completa.

Privacidade não é o problema de parentes de inimigos notórios de Tio Sam. Alina Fernández, a filha de Fidel, está diariamente vociferando contra o pai e o regime cubano numa rádio de Miami, cujas ondas podem ser captadas em Havana. Não
há amor enrustido nesta ex-modelo fotográfica que, dizem, era a preferida da prole
de Castro. “Falo a verdade: o governo instalado por meu pai é monstruoso e
deve cair, como ele. Não tenho nada a ver com Fidel, a não ser minha oposição
e asco à sua vida. A gente não escolhe os pais: sou inocente deste, digamos, pecado original. Aqui, em Miami, estou em casa. Minha família é o povo cubano no exílio, que em breve irá se juntar aos compatriotas sofredores que ainda estão no país”, esbraveja Alina.

Para o professor Sergei Kruchióv, a ignorância americana tratou de enterrar seu passado familiar. Foi mais ou menos o que aconteceu com Svetlana Illiluyeva,
81 anos, filha do ditador soviético Josef Stálin, e que se asilou nos Estados Unidos em 1967. Esta, aliás, ninguém sabe dizer ao certo se está viva ou morta e onde
mora. Sergei, porém, está firme no campus da Universidade Brown. Perguntado
por ISTOÉ se o sobrenome Kruchióv não era herança muito pesada, este matemático e cientista espacial tornado cidadão americano em 1999 disse: “Aqui as pessoas nem sequer sabem quem foi Richard Nixon. Pouquíssima gente sabe quem foi Kruchióv. Se você for a Moscou e disser que é americano e se chama Kennedy,
vão lhe perguntar se o ex-presidente John Kennedy era seu parente. Aqui, Kruchióv
é apenas um nome difícil de se pronunciar, e impossível de soletrar.” O professor Sergei garante que nunca sofreu nenhum preconceito em terras americanas, mas encontrou certa animosidade nas primeiras vezes que visitou a Rússia. “Nunca
dei importância a isso. Minha cabeça está no espaço: a genética não é matéria
que me tire o sono”, diz.