Usando uma expressão de usuários de drogas, “o barato é muito louco”. Explica-se: o barato é louco porque muita gente da classe média, em todos os seus segmentos, e também muitos narizes da classe abastada consomem drogas em suas casas, apartamentos e coberturas, consomem drogas nos motéis e nas baladas, consomem drogas às vezes até no emprego – e nessas ocasiões o traficante é apenas o fornecedor do prazer. Mas quando o tráfico mostra a sua cara de violência e morte, quando a sociedade corre o risco da anomia, o traficante que era o brother se transforma na personificação do crime – é o traficante. Nessas horas, a cobertura quer que a favela pegue fogo. O brother virou ameaça ao status quo, ameaça ao establishment, dane-se, mate-se o brother. Na linguagem do tráfico, gente da classe média e gente rica é chamada de cocota. Nas horas de pico das crises de violência, o cocota e a cocota então dizem com a hipócrita assepsia de quem se sente ofendido: “Eu uso, mas não tenho nada a ver com o crime! Quero que traficante morra!”

“As classes privilegiadas têm responsabilidade sim, e essa responsabilidade é muito grande”, diz o sociólogo José Luiz Ratton, professor da Universidade Federal de Pernambuco. É de fato a mais pura e cristalina hipocrisia achar que cada cocotinha que consuma drogas não esteja ajudando financeiramente a armar os Marcolas da vida. “A cada crise, a cada explosão da violência do tráfico discute-se como se deu o final da crise”, diz o secretário estadual da Administração Penitenciária de São Paulo, Nagashi Furukawa. “Por que temos tanto medo de discutir as causas dessa explosão e dessa crise?” Algumas vezes esse tema vem à tona, e é claro que não emerge quando o usuário do porão é preso. Só vem quando branco vai para a delegacia, como ocorreu com a prisão em 2004 do ator Marcello Antony. Foi o seu colega, o ator Felipe Camargo, quem pôs o dedo na ferida: “Temos de acabar com a hipocrisia e tirar a máscara. Os usuários eventuais, que usam drogas nas festas, nas baladas e nas viagens, ajudam a sustentar o tráfico.” Na quinta-feira 18, o governador de São Paulo, Cláudio Lembo, também botou o dedo na ferida em entrevista à Folha de S.Paulo. “Nós temos uma burguesia muito má, uma minoria branca muito perversa”, disse ele.

Foram a classe média e a classe abastada, aliás, que sofisticaram o tráfico – criando até serviço delivery. Subir o morro, no caso do Rio de Janeiro, ou ir à planície da periferia, no caso de São Paulo, dá trabalho e é arriscado. “O prazer é melhor dentro do nosso próprio habitat”, disse a ISTOÉ a paulista F.B.C., 23 anos, estudante de medicina. “Eu uso drogas como recreação, utilizo um serviço que me entrega onde eu quiser. Sinceramente, não tenho nada a ver com criminosos e PCC”, disse ela a ISTOÉ. Valem as perguntas: “Mas você não paga pela droga? Esse dinheiro não vai para o traficante?” A resposta da moça, se não fosse desprovida de lógica, seria para rir: “Vocês repórteres são louquinhos. É claro que pago pela droga, mas não ajudo o crime não. Imagina eu ajudar traficante, eu vou ser médica!” A loucura, de F.B.C., lá tem seu método. “Esse tipo de usuário tem evitado subir o morro”, diz Rodrigo Oliveira, delegado do elegante bairro carioca da Barra da Tijuca. “Ele se vale do disque-drogas. Ou alguém do tráfico entrega a mercadoria ou alguém do grupo de usuários concorda em ir à boca-de-fumo. Algumas vezes, descobre que também pode ganhar dinheiro e trafica entre os amigos.” O delegado alerta: “Aqui na Barra da Tijuca já chega a 8% o índice de jovens da classe média alta presos por tráfico.” Em São Paulo e no Rio de Janeiro, uma porção de drogas que custe R$ 20 in loco acaba saindo por até R$ 70 através do serviço delivery.

As únicas culpadas pelo tráfico são as pessoas de melhor poder aquisitivo? Não.
E também não se trata, aqui, de dizer se elas devem ou não usar drogas. Desde
os primórdios da medicina sabe-se que “o que faz de uma substância um veneno não é a substância em si, mas sim a sua dose”. “A criminalização das drogas atende mais a uma questão moral, e manter essa situação interessa a muita gente pela natureza econômica”, diz o sociólogo Cláudio Beato, da Universidade Federal de Minas Gerais. “Há muita hipocrisia em toda essa questão.” Uma das franjas
da hipocrisia é a corrupção, contra a qual as classes média e rica só se levantam quando são apanhadas e extorquidas por alguns policiais: pagando cerca de
US$ 60 mil, um pai pode evitar que para cima de seu filho usuário (artigo 16 do Código Penal) alguma autoridade empurre a acusação de traficante (artigo 12,
que é crime hediondo e dá cadeia). É preciso discriminalizar a droga e dar às pessoas o direito de optar se querem ou não usá-las? Isso é assunto para uma outra reportagem. Mas vale registrar como são calmos e pacíficos os versos de Chico Buarque (que não faz apologia delas) em seu último CD: “Maconha comprada só na tabacaria, drogas na drogaria.”