Ao fim e ao cabo da semana fatÍdica, registravam-se 293 atentados, 161 mortes e
80 rebeliões. São Paulo vivia dias de Bagdá

O retrato, às oito e meia da noite daquela segunda-feira fatídica, era desolador. São Paulo, quarta maior metrópole do mundo, 20 milhões de moradores, estava vazia. Traumatizada. Acuada sob um toque de recolher informal. Debaixo das ordens do chamado Primeiro Comando da Capital, o PCC que controla os presídios e estende seu poder sobre o tráfico de drogas, de armas e o contrabando, nada menos que 36 policiais foram assassinados nas ruas da cidade durante o final de semana. Trinta ônibus arderam em chamas. Sucederam-se cenas prontas e acabadas de regiões em plena guerra civil, que ganharam ainda mais corpo na madrugada da terça-feira 16, quando a polícia, depois de sumir das ruas, revidou. Entre as matanças, amplificando a sensação de insegurança, o governador Cláudio Lembo garantia que a situação estava “sob controle”, recusando-se, por três vezes, a aceitar ajuda de tropas federais de elite. Errático, chegou a atribuir a culpa pela situação à “burguesia branca” e às “dondocas”, perdeu-se em querelas políticas, tergiversou. A verdade, no entanto, é que a vida real – a vida bandida – falou mais alto. Até a quinta-feira 18 contavam-se 293 atentados, com 161 mortes. Quarenta e cinco ocorreram do lado policial e entre agentes de presídios. Bandidos, suspeitos de pertencerem ao PCC, e cidadãos cujas ligações com o campo criminoso o Estado não conseguiu provar foram 107. Nove presos morreram nos motins, um deles decapitado. Cinqüenta e seis casas de policiais sofreram ataques. Ao todo, houve nada menos que 293 atentados. Emboscadas, tiros pelas costas, execuções sumárias, trocas de balas e, também, legítima defesa – todas essas modalidades de homicídio se somaram no espetáculo sangrento inédito não apenas em São Paulo, mas jamais visto, nessa dimensão, em qualquer outra parte do País. Sem lei, sem estado de direito, a cidade foi notícia em todo o mundo, de Nova York a Beijing. A Bagdá dos atentados diários teve menos mortes. Lá, de domingo a quarta-feira morreram 75 pessoas. Em São Paulo, de segunda a quinta foram 107. A moldura dos crimes se deu pelos 82 ônibus incendiados, escolas que suspenderam aulas, os 22 shoppings que baixaram as portas, as 17 agências bancárias atacadas e os 80 presídios rebelados, com uma população de 130 mil encarcerados. Numa palavra: o caos.

O governo paulista e a cúpula da polícia já sabiam, cerca de 20 dias atrás, que uma megarrebelião estava sendo arquitetada nos presídios. Nada fizeram. Ou melhor: fizeram errado, à ultima hora, numa espalhafatosa movimentação de líderes do PCC para depoimentos na principal sede policial. Todos viram, todos souberam, e tudo isso foi acoplado a um indulto de Dia das Mães que beneficiou 12 mil presidiários. Essa tragédia de erros resultou no reforço da ordem da cúpula do crime para a eclosão de rebeliões. A partir da penitenciária de Avaré, a 300 quilômetros de São Paulo, outras cadeias passaram a aderir ao movimento, graças à comunicação instantânea via telefone celular. No momento seguinte, os soldados do PCC que estavam soltos pelas ruas passaram a espalhar a morte. Policiais fardados, à paisana, em serviço ou de folga, e até mesmo dois bombeiros foram surpreendidos e mortos, dentro e fora de seus locais de trabalho, numa sangrenta operação coordenada. Um dos assassinados à sangue frio levava sua filha de seis meses para um pronto-socorro. Outro estava namorando. Um terceiro recebeu um telefonema para encontrar um amigo na rua, e lá conheceu seu matador. Um a um eles foram fuzilados pelos bandidos obedientes às ordens de responder com cadáveres à transferência de seus líderes, em particular do mais ardiloso entre eles – Marcos William Herba Camacho, o Marcola. Assustada, a polícia abandonou as ruas, entrincheirou-se em postos, delegacias e quartéis. Em lugar de proteger a sociedade, escondeu-se dos criminosos. Tremeu. Esse recuo à vista de todos, em plena luz do dia, quando nem mesmo orientadores de trânsito se arriscavam a cumprir suas tarefas cotidianas, foi a mais decisiva contribuição oficial para o clima de paúra generalizada que baixou sobre a maior cidade do País. “A policia fez tudo certo para que tudo saísse errado”, diz o general da reserva Carlos Eduardo Jansen, comandante das Forças Armadas que ocuparam o Rio de Janeiro durante a Conferência Rio 92. “A estratégia de recuar para depois se vingar apenas aumentou o pânico.”

Levado para o Regime Disciplinar Diferenciado, o RDD da penitenciária de segurança máxima de Presidente Bernardes, no interior de São Paulo, em tese Marcola deveria amargar dez dias isolado dentro de uma cela solitária. Incomunicável, portanto. Mas isso só em tese. A verdade é que as portas de sua cela foram abertas na tarde do domingo 14, para que lá entrasse uma comissão negociadora do governo paulista. ISTOÉ apurou que a decisão de procurar Marcola, inutilmente desmentida pelo governo, foi tomada dentro do Palácio dos Bandeirantes, numa reunião informal entre policiais da chamada linha dura da PM. Enquanto Lembo recebia no final da tarde do domingo o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, e renegava a ajuda federal, esse grupo de policiais já havia se juntado numa sala próxima à garagem do Palácio. Ali combinou-se uma estratégia em dois planos: ir a Marcola e ir à forra. Na cidade, o que se deu, então, foi a barbárie policial em resposta à selvageria dos bandidos. A lei, na prática, foi suspensa na madrugada da terça-feira 16. Os carros da Rota, a tropa mais mortífera da Polícia Militar, saíram de seu quartel-general com os homens equipados com fuzis de calibre 12 milímetros. Essa é uma das senhas usadas para que os policiais saibam, sem que venha uma ordem expressa do seu comando, que está dada a licença para matar. Normalmente, eles andam armados apenas com pistolas de nove milímetros. Outro sinal é o uso de capuzes. Quando eles descem sobre as cabeças dos policiais, os moradores da periferia paulistana sabem que não haverá diálogo, mas apenas e tão-somente fuzilamentos. Em apenas 12 horas, a polícia matou mais de 60 suspeitos de ligações com o PCC. “Não, não notei nenhum tipo de exagero”, respondia, cândido, no dia seguinte, o governador Lembo. Para ele, frise-se, a situação estava sob controle desde a antevéspera.

Na gangorra entre bandidos e policiais, governos e políticos, dias de tensão e madrugadas de violência, a população viu-se sem ter a quem recorrer. E amontoou as ruas com seus carros, em plena tarde da segunda-feira 15, fazendo com que o aparelho de medição de congestionamentos da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) entrasse em pane. Fora de hora, foram mais de 200 quilômetros de engarrafamentos, o maior índice do ano. A angústia, naquela busca para chegar em casa, perpassou todas as camadas sociais. Dos paulistanos mais humildes, que ficaram sem transporte para voltar do trabalho (os donos de frotas de ônibus recolheram às garagens suas frotas), aos mais abastados, que descobriram a pouca valia de suas blindagens. O sentimento de abandono e insegurança ganhou ares de frustração e desencanto quando, de Brasília, na quarta-feira 17, despontou a informação de que fora vendido ao PCC um documento secreto, produzido na CPI do Tráfico de Armas, com um longo depoimento do delegado Godofredo Bittencourt.

O assessor parlamentar terceirizado
Arthur Vinícius Silva admitiu que vendeu
um CD com o conteúdo do depoimento
por R$ 200 aos advogados Maria Cristina
de Souza Rachado e Sérgio Wesley da
Cunha, defensores de Marcola. Na verdade, segundo informação à qual ISTOÉ teve acesso, a venda se deu por “mais de R$ 10 mil”. O documento, que traçava um mapa das transferências dos líderes da organização criminosa, foi dividido entre a cúpula dos bandidos numa audioconferência, sempre via celular, da qual tiveram acesso 40 presidiários em 30 cadeias distintas. Revoltados diante dos planos da polícia, eles decidiram ali detonar a megarrebelião e, simultaneamente, os ataques na cidade. Essa ordem se deu no que os criminosos chamam de “salve”, espécie de ordem unida, comunicada pelo seu sistema de telefonia, logo após a confirmação da transferência de mais de 700 presos ligados ao PCC para novas cadeias. Ele se dá todas as segundas-feiras, às 9 h. Nesse caso, em regime de emergência, foi disparado na sexta-feira 12. A rapidez entre a ordem e a ação torna ainda mais impressionante o poder de organização do PCC, cujo exército é estimado em 90% dos 124 mil presos do Estado de São Paulo – e que pode ter nas ruas, sob seu jugo, mais de dez mil pessoas. “Nascido de um braço do Comando Vermelho, do Rio de Janeiro, o PCC hoje já é muito mais poderoso, perigoso e organizado”, lembra a deputada e ex-juíza Denise Frossard (PPS-RJ).

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

Antes de ordenar as rebeliões no sistema penitenciário, as execuções sobre policiais e as duas centenas de atentados em São Paulo, a cúpula do PCC negociava com a cúpula da polícia paulista como se fosse um sindicato de trabalhadores sentado à mesa diante de seus patrões. Exigiram aparelhos de tevê para assistir à Copa do Mundo, ampliação do banho de sol de uma para duas horas diárias, mais visitas íntimas e até mesmo a troca dos uniformes amarelos por cinzas, mais adequados para fugas noturnas. No desvario dos criminosos, o certo é que a cúpula da segurança paulista foi feita de trouxa. Na quarta-feira 17, o secretário de Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa, teve de admitir, humilhado, que 60 aparelhos de tevê, sem origem comprovada, nem mesmo notas fiscais, foram entregues pelo correio a sentenciados de diferentes cadeias. Como se fosse o fato mais normal do mundo – afinal, estamos às vésperas de a Seleção tentar o hexacampeonato mundial! –, Furukawa deixou as televisões entrarem, e só descobriu que cometera um desatino em termos de segurança quando foi confrontado com o fato.

Antes, o escamoteou. Nos Estados Unidos, cuja população carcerária é de dois milhões de pessoas, a maior do planeta, essa festa não acontece. Lá, os diretores de presídio podem determinar regimes especiais de recolha a cada ameaça de rebelião. Um preso apanhado com um telefone celular tem, na maioria dos Estados, a pena dobrada. Visita íntima, só para cônjuge. Nos Estados mais rigorosos, basta ter uma infração de trânsito para ser proibido de visitar um preso. Aqui, o entra-e-sai é constante, numa linha direta, sob as vistas do Estado, que permite aos chefões das cadeias operar o crime do lado de fora das grades. No passado, os crápulas do PCC tentavam se escudar sob bandeiras humanistas, buscando ser responsáveis por melhores condições carcerárias para os presos. Rapidamente, esse discurso foi desmoralizado. Enquanto a polícia e o governo batem cabeças, vacilantes entre cumprir a lei ou agir à sombra do estado de direito, ser rigorosos com os presos ou negociar acordos inconfessáveis com bandidos, o que o PCC quer mesmo é criar o caos. Na semana passada, chegou ao ápice.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias