Na semana anterior ao primeiro turno das eleições presidenciais na França, o tédio dos eleitores era tamanho que só havia duas pequenas greves no país. Ambas, aliás, afetavam apenas os turistas, já que a paralisação atingia os trabalhadores do catering de aviões e – horror dos horrores – os funcionários responsáveis pelas devoluções de impostos sobre mercadorias nos aeroportos. Isso, note-se, num país onde o titular da Presidência, o também candidato Jacques Chirac, de centro-direita, ainda está mergulhado num escândalo de corrupção que afeta negativamente a posição do país na União Européia. Já o primeiro-ministro, o socialista Lionel Jospin, que também era aspirante ao palácio Elysée, demonstrava atitude tão blasé que o diário Le Monde estampou manchete a poucos dias do pleito: “Jospin descobre a campanha no interior.” Mas essa calmaria antecipava a colossal tempestade de que fala o chavão. O desinteresse pelas urnas, com 28,5% de abstenções, aliado à fragmentação das múltiplas candidaturas da esquerda, catapultou ao segundo turno o neofascista Jean-Marie Le Pen, da Frente Nacional. Jacques Chirac será o seu oponente e, de uma hora para outra, virou o novo Charles de Gaulle da V República, líder contra o fascismo e salvador da pátria. Na segunda-feira 22, depois das eleições, os franceses estavam na rua protestando como se fosse maio de 1968.

“Mas protestam contra o quê? Contra eles mesmos?”, disse a ISTOÉ o professor Jean-René Trochet, do departamento Géographie Politique Culturelle et Historique da Universidade de Sorbonne. Faz sentido a pergunta. Afinal, os que levam sua indignação às ruas são os mesmos que faltaram às urnas. “Neste mosaico de manifestantes estão tanto os partidários dos vários grupinhos de esquerda – que estilhaçaram uma possível composição que elegeria Jospin – como aqueles que se envergonham do fato de a França mandar para o segundo turno de sua eleição presidencial um radical direitista xenófobo. Muitos destes, é claro, não encontraram tempo para ir votar e evitar este fato”, diz o professor. É tragicômico notar que as pessoas que hoje convocam com tanta veemência uma união nacional em torno de Jacques Chirac no segundo turno são as mesmas que, durante a campanha, o acusavam de corrupto, indolente e imoral. Mas agora vale tudo para reconduzir o bicho-papão Le Pen ao porão da política francesa. Uma tarefa, diga-se, que não será tão complicada do ponto de vista eleitoral, já que o líder da Frente Nacional teve meros 17% dos votos – cerca de dois pontos porcentuais a mais do que sua média tradicional no passado. Quanto à dignidade política deste país que se considera o grande refúgio das esquerdas no mundo, esta ficou indelevelmente marcada. No silêncio da apatia eleitoral, o que se ouviu foi o som dos intestinos da França.

Motivos – Considere-se: juntamente com o candidato Bruno Mégret, um fascista de opereta, dissidente da Frente Nacional em virtude de diferenças personalistas com Le Pen, a extrema direita obteve mais sufrágios do que o atual presidente e primeiro colocado Chirac. Estes números demonstram que há solo fértil para o crescimento do neofascismo na França. “Intolerância racial, carestia depois do estabelecimento do euro, desemprego, a percepção da perda de prestígio político internacional, o medo da imigração descontrolada e o aumento da criminalidade são os cordões manipulados pela extrema direita para puxar o eleitorado”, diz o professor Alain Bachler, do Instituto de Ciências Políticas de Paris. E Le Pen diz ter o remédio para estas mazelas percebidas. Sua plataforma política propõe o fechamento das fronteiras aos imigrantes, inclusive com a revisão de tradicionais tratados internacionais que garantem asilo político na França, e expulsão dos não-documentados que já estão no país. Dá também poderes extraordinários à polícia, tanto para a caça aos não-cidadãos quanto na repressão ao crime. Le Pen promete também fazer barulho na União Européia, inclusive com ameaça de rescisão de acordos que formalizaram esta confederação. E mais: abolição de leis que garantem o direito de aborto, entre outras agressões à Constituição. “A plataforma é um monstrengo político de ficção. Mesmo que Le Pen vencesse no segundo turno – o que é muito improvável –, ele não teria força parlamentar para implantar esta plataforma”, diz Bachler.

Esquerda renascida – Por mais que a Europa olhe com horror o fenômeno Le Pen – que acompanha tendência naquele continente –, na verdade o homem deu nova vida à esquerda. Com o rabo entre as pernas e dentes arreganhados, la gauche retoma o caminho da união que fez maioria nas eleições parlamentares e elevou Jospin ao cargo de primeiro-ministro. Talvez tenha se ressuscitado aquilo a que ele chamou de “esquerda plural”, em que os vários grupelhos esquerdistas concordavam em discordar, numa camaradagem que, cá entre nós, nunca durou muito. Tanto que até mesmo os comunistas, que ocupavam postos no governo, lançaram candidato próprio. Na mesma onda vieram os trotskistas e mais uma miríade de “istas” que transformaram a esquerda plural em singular: cada um por si. Juntos, tiveram 42% dos votos – e poderiam abocanhar até mais, caso a atual esquerda festiva tivesse deixado as mesas
dos cafés.