A providência divina foi oficialmente invocada pelo governo argentino para tentar tirar o país da calamidade. “Seja o que Deus quiser”, disse o presidente Eduardo Duhalde, no início de uma semana repleta de fatos já rotineiros em Buenos Aires: troca de ministros, protestos nas ruas, Congresso cercado, bancos fechados e um desalentador clima permanente de incerteza.

Quando o então titular da pasta econômica, Jorge Remes Lenicov, entregou o cargo na quarta-feira (ato acompanhado por dois de seus colegas de Ministério), os bancos completavam três dias úteis sem abrir as portas. O economista assinou sua demissão quando percebeu que seu plano de salvação das instituições financeiras não passaria pelo Congresso (a esta altura, já cercado pela tropa de choque local, que afastou a multidão enfurecida). Lenicov planejava realizar um confisco dos depósitos, traduzido pela emissão de um bônus resgatável em cinco ou mais anos. Economias de vidas inteiras seriam trocadas por um papel pintado do governo, sem garantias de que um dia ele volte a ser dinheiro vivo.

Com a estratégia descartada, Duhalde lançou, na quinta-feira, um arrazoado de intenções que alguém do governo ousou chamar de plano. O presidente, entre outras coisas, prometeu respeitar acordos e compromissos internacionais, num claro aceno desesperado ao FMI (com quem o governo ainda negocia um pacote de ajuda), fechar o acordo de ajuste fiscal com as províncias em 15 dias (uma discussão que vem ocorrendo há meses e quase descambou para a agressão física entre os governadores) e garantir a disponibilidade dos depósitos aos correntistas. O problema de Duhalde é que nenhuma de suas intenções é factível no curto prazo.

Enquanto ganhava tempo com o anúncio do “plano”, o presidente procurava eventuais candidatos ao posto de Lenicov. A decisão saiu na noite da quinta-feira, durante uma interminável reunião da cúpula presidencial na residência oficial de Olivos. No dia seguinte, o escolhido, Roberto Lavagna, economista que deixou o cargo de embaixador junto à União Européia e à Organização Mundial do Comércio (OMC) para tentar resgatar a Argentina do abismo, chegava à capital para assumir o posto. Lavagna planejava passar o fim de semana todo discutindo os rumos do país com o presidente. Só na segunda-feira 29 os argentinos conhecerão o enésimo plano de salvação desde que a crise se acentuou e colocou o país na rota do descontrole.

Até fevereiro, Lavagna colaborava com uma consultoria chamada Ecolatina. Suas opiniões, registradas em estudos divulgados pela empresa, apontam que a grande missão do economista será tentar superar as dificuldades de diálogo e costurar um acordo de ajuda com o FMI. “O complexo panorama da economia argentina se agravou pelo virtual congelamento das negociações com o FMI”, escreveu no início do ano. Sua experiência como diplomata é outro indício das prioridades de sua gestão. Pelo seu perfil, espera-se que Lavagna fixe o câmbio para tentar conter o único fantasma econômico que ainda não aterrissou na atual crise argentina: a hiperinflação.

Tampão – O feriado bancário foi amenizado na sexta-feira. A tesouraria dos bancos e as operações de câmbio permaneceram suspensas, mas foram permitidas operações simples, como depósitos, solicitação de talões de cheques e transferências. O Banco Central tomou a decisão de reabrir parcialmente as instituições financeiras porque, um dia antes, o Congresso aprovou a chamada “Lei Tampão”, que dificulta o acesso ao exigir uma decisão de última instância para a realização de saques do dinheiro preso no “corralito”. Bloqueados por ordem do governo desde dezembro para evitar quebradeira nos bancos, os depósitos passaram a ser retirados após uma enxurrada de decisões judiciais contrárias ao cerco. A corrida às agências acabou levando o Banco Central a decretar o feriado bancário. Agora, só as resoluções judiciais definitivas poderão
ser cumpridas.

Deus, em pessoa, parece ainda não ter atendido aos apelos de Duhalde. Mas alguns de seus representantes em Buenos Aires – os padres da paróquia de La Redonda, no bairro de Belgrano – fizeram sua parte. O altar da igreja virou um caixa de banco improvisado para o pagamento da pensão dos aposentados argentinos. Com medo de ter o dinheiro confiscado pelas ações anticorralito em curso, os bancos estão evitando manter numerário nas agências. A saída foi improvisar no templo de Deus. Padarias e ginásios também estão sendo utilizados. Os malotes com as notas estão circulando “disfarçados” de entrega dos correios para evitar o confisco. Nas enormes e diversas filas que se formaram para o recebimento da aposentadoria, um idoso morreu de infarto. Que Deus ajude a Argentina!