Por trás das portas espelhadas do salão Tulieries, do Hotel Meurice, em Paris, o que se chama de “poder global” esteve representado da cabeça aos pés, no sentido literal, no dia 16 de abril. A começar pelos pés – e que aí não se impinja nenhuma conotação de inferioridade: Leonardo Ferragamo, o industrial italiano de confecções, que vende sapatos como jóias que cobrem os artelhos de gente da estirpe do ex-presidente Bill Clinton, além de ter algumas de suas gravatas apertando gentilmente o pescoço do presidente Fernando Henrique Cardoso. Ferragamo estava lá. No extremo oposto deste corpo de poder, na cabeça podia-se divisar o russo Oleg Deripaska. Entre outras riquezas, ele detém os ouvidos do presidente russo, Vladimir Putin. Em breve, Oleg possuirá também os olhos da cara da Rússia, já que está para assumir o controle (há quem diga que isso já ocorreu) da antiga rede de tevê NTV, aquela que o Kremlin tirou do milionário Vladimir Gusinsky no ano passado. À volta do quadrilátero de mesas instalado no centro do Tulieries estavam sentados, ou representados, na manhã daquele dia, nada menos que 21 cabeças-de-chave daquilo a que se chama de globalização. O número não evoca nenhuma cabala, daquelas tão citadas pelos teóricos conspiracionistas sobre a dominação universal engendrada por capitalistas. Simplesmente enumera os membros do novo Board of Advisors do banco brasileiro Brasilinvest. O grupo, capitaneado pelo empresário paulista Mario Garnero, completa, em 2002, 25 anos de história e resolveu comemorar a data com a primeira reunião da recém-remodelada Diretoria Conselheira.

Uma reunião de diretoria de banco brasileiro costuma atrair tanta atenção da imprensa quanto, digamos, um batizado de criança. Ou seja: nenhuma. A não ser que, em ambos os casos, estejam envolvidas celebridades. No Meurice, por exemplo, estavam não só Ferragamo e sua lindíssima esposa, Silvia, como também quatro ex-ministros de Estado, entre eles o americano William Cohen, ex-secretário de Defesa do governo Clinton. Além desta constelação de poderosos, pesava na pauta dos repórteres presentes a pergunta: que outro banco brasileiro tem como conselheiro um Rothschild? Trata-se de um sobrenome com cerca de 300 anos de tradição bancária. Nathaniel Rothschild – que apenas em sua empresa de Hedge Fund movimenta algo em torno de US$ 1,2 bilhão – está com assento cativo no Conselho do Brasilinvest. Ah! Pesava também o fato de que o discurso principal daquela manhã seria feito por George Walker Bush, o pai.

Nova ordem – Foi justamente o então presidente Bush quem divulgou o conceito de “New World Order”, a nova ordem mundial, no discurso de abertura da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1992. Mal sabia ele que a frase serviria como espantalho representante de forças diabólicas que formariam, anos mais tarde, o bestiário das paranóias conspiracionistas em seu país e ao redor do planeta. Segundo os teóricos da conspiração internacional, um conluio de banqueiros e homens de negócios teria organizado uma sociedade secreta com o propósito de – o que mais? – dominar o mundo e escravizar o populacho. Para tanto, estariam utilizando não apenas os governos das grandes nações, entre elas os Estados Unidos, mas também a ONU. George Bush, ainda de acordo com essa hipótese, teria sido apenas um empregado desses senhores de propósitos nefandos. A prova seria o enunciado da sentença “New World Order” naquela fatídica alocução. A camorra de capitalistas, no imaginário dos conspiracionistas, é resultado de uma reunião de aspirantes ao poder supremo internacional, supostamente realizada na Holanda, em finais da década de 60. O encontro aconteceu no
Hotel Bilderberg. Por isso, essa gente ficou conhecida como “Grupo
de Bilderberg”.

Os conspiracionistas, é claro, estavam errados. Mas imagine-se o quanto gritariam ao ver George Bush I entrar num hotel como entertainer de um grupo de capitalistas e políticos reunidos para fazer um balanço do mundo. Eis que surge, portanto, o “Grupo do Meurice” (hospedaria, diga-se, muito melhor que o Bilderberg). E balanço globalizado foi o que não faltou à reunião aberta. O primeiro a falar, e único a concentrar oratória em seu próprio negócio, foi “Natty” Rothschild. Aliás, ele mesmo disse pouco: mandou um de seus funcionários expor as estratégias brilhantes de seu Hedge Fund na “Atticus Capital LLC”, de Nova York. Tudo muito interessante, mas quem tem US$ 10 milhões para aproveitar os investimentos idealizadas por um Rothschild de 28 anos?

Geopolítica – Em seguida foi a vez de quem já teve poder de fogo para literalmente obliterar a vida como a conhecemos na face da Terra. William Cohen – que o presidente da mesa, Mario Garnero, lembrou ser filho de padeiro – falou menos de pão e mais de canhão. Passeou pela geopolítica com a desenvoltura de quem foi secretário de Defesa dos Estados Unidos e ainda continua ligadíssimo no assunto. E, no embalo, não poupou o filho daquele que, minutos depois, seria o orador de honra do evento: criticou abertamente a política externa de George Bush, o filho. E, entre outras, cantou a bola de que o secretário de Estado americano, Colin Powell, então em meio ao périplo fracassado ao Oriente Médio, estava sendo fritado. “Ou o atual governo lhe dá total apoio ou o secretário Powell estará perdido”, disse. Antecipou em uma semana as conclusões do colunista Fareed Zakaria na revista Newsweek. Alertou também que “a estrada da paz no Oriente Médio não passa por Bagdá”, numa alusão às intenções do atual governo americano de derrubar Saddam Hussein. “Muitos países do Oriente Médio acham que é bom haver um equilíbrio
de poder entre Iraque e Irã”, disse. Contou que a palavra “engagement” (engajamento), tão usada durante o governo Clinton, havia sido abolida da literatura oficial do Pentágono, numa prova de que o aliciamento de opositores não é alvo do novo Bush. “Há gente na atual administração americana que deseja que Israel limpe a região de terroristas”, afirmou literalmente.

O tom crítico a esta ou aquela política foi correndo a mesa. O sheik Salman Bin Khalifa Al-Khalifa (é claro que tinha de haver um sheik árabe numa trupe tão poderosa, foi quem mais falou. Demonstrou com a autoridade de quem é vice-chairman da Bahrain Petroleum Co. por que o consumo de petróleo continuará, digamos, a todo vapor, a despeito da atual crise econômica. Revelou também que os preços do produto de seu país, o Bahrain, estão ridiculamente baixos. “Hoje, um litro de água custa no mercado americano menos do que um galão (3,7 litros) de gasolina.” Mas a mais contundente análise foi feita, surpreendentemente, por David Tang. Ele foi apontado como o garoto-propaganda da integração de Hong Kong com a China continental dos comunistas. Sua empresa de confecções, a Shangai Tang, é hoje uma das locomotivas da moda mundial. Seus hotéis-butique estão espalhados pela Ásia. Suas fábricas ocupam os quatro cantões da China. Sua boate-restaurante, o “China Club”, em Hong Kong, acolhe não apenas as mais belas mulheres do Oriente como também os homens mais importantes do mundo, que vão àquela casa em busca da boa cozinha e… belas mulheres. Tang, no entanto, baixou o sarrafo no governo chinês. “Se algum de vocês experimentar ir até Pequim e apenas sussurrar seu apoio à seita Falun Gong, com sorte ficará desaparecido por seis meses. Sem sorte, sumirá para sempre”, disparou. E desandou a dar um banho de realidade nos investidores internacionais que acreditam ser possível fazer um negócio da China, na China. “O sul e o norte, o leste e oeste do país não são ligados por nenhuma via ferroviária”, relatou. Aconselhou que os estrangeiros façam o caminho inverso de Marco Polo e tentem conseguir investimentos chineses em suas terras.

O discurso de George Bush, o velho, foi o esperado: ele ainda é um dos melhores oradores entre os ex-presidentes americanos vivos. Um profissional que cativa platéias com um enganoso jeitão de vovô autodepreciativo. Mas que ninguém se engane: o homem é duro como as pedras da costa da Nova Inglaterra. No Salon Pompadour, sob o olhar esbugalhado da dama que deu o nome à sala, Bush I falou da amizade que liga sua família a Mario Garnero e, ato contínuo, foi defender o trabalho do filho na Casa Branca. Em cerca de uma hora e meia de oratória, porém, encontrou lugar para sublinhar a importância de uma empresa brasileira estar forçando uma via de mão dupla rumo à globalização, onde os interesses nacionais não fiquem sujeitos apenas aos ditames de uma cabala à la Grupo de Bilderberg, e trace caminhos como o Grupo do Meurice.