Mário de Andrade escreveu O turista aprendiz; Anne Tyler é autora de O turista acidental. Chega a vez de Paul O’Neill – o secretário do Tesouro americano – nos revelar “O Turista Boçal”. A obra ainda não está transcrita no papel, mas material para um livro de memórias do secretário é o que não falta. Agora mesmo, feriu o orgulho de seus anfitriões na Argentina, no Brasil e no Uruguai, antes mesmo de sair de casa. Em entrevista à rede de tevê Fox, no domingo 28, disse que nesta viagem não daria dinheiro aos países que visitaria, já que eles precisavam “pôr em prática políticas que assegurem que o dinheiro recebido seja bem aproveitado e não vá sair do país direto para uma conta na Suíça”. Ou seja, acusou a todos de incompetentes e desonestos. As declarações forçaram a Casa Branca, por intermédio do porta-voz Ari Fleshmen, a fazer rapapés aos brasileiros. O’Neill também mandou seu porta-voz dizer que suas palavras foram mal interpretadas. Ou seja: além de incompetente e desonesto, o governo do Brasil é burro, pois não entende o que é dito. Brasília ficou satisfeita e deu o caso por encerrado.

O fato de O’Neill ser o mais viajado entre aqueles que ocuparam o cargo favoreceu a lavoura de obtusidades cultivadas por este peregrino. Foi à África, por exemplo. Estava acompanhado pelo roqueiro Bono, astro do grupo U2 e militante na campanha pelo perdão das dívidas externas dos países miseráveis do continente. Antes de embarcar, o secretário disse que a princípio desconfiou que Bono estava apenas tentando “ganhar fama” à sua custa. “Mas me convenci que o rapaz tem proposta séria”, disse. Levado a ver os projetos que – com modestos subsídios – tiveram sucesso, O’Neill concluiu: “A África não precisa de dinheiro. Com meros US$ 100 algumas comunidades conseguiram sistemas de tratamento de água e melhoraram sua saúde. Isso prova que não é o dinheiro a chave do sucesso.” Bono explodiu: “Se o secretário não vê que o sucesso desses projetos depende fundamentalmente de dinheiro, ele deve estar cego, surdo e louco. US$ 100 são uma fortuna neste continente. É bastante dinheiro para muita gente em todo o mundo.” Até aquele momento, o roqueiro havia mantido o bom humor e procurava minimizar a, cada vez mais aparente, tacanhice de seu colega de viagem.

Na volta, O’Neill desaconselhou o perdão das dívidas africanas e foi mais longe. Em depoimento ao Congresso disse: “Não me fale em compaixão. Seres humanos de qualquer parte, sem exceção, têm a habilidade de conquistar o padrão de vida que temos aqui.” O que levou o senador democrata Patrick Leahy a gritar em desespero: “Mostre um pouco de humanismo, criatura!”

Mas que não se acuse Paul O’Neill de chauvinismo. Suas ofensas obedecem ao sistema de oportunidade igualitária: ofende não apenas estrangeiros, mas também o povo nativo. Numa entrevista ao jornal Financial Times em 19 de maio, o secretário disse que o sistema fiscal americano é “uma abominação” e pediu mudanças “na própria estrutura” de arrecadação. “Apóio absolutamente a eliminação de taxações sobre corporações.” O ônus dos impostos, para O’Neill, deveria cair exclusivamente sobre os ombros de pessoas físicas. “O governo trabalharia melhor se coletasse impostos de indivíduos de modo mais direto”, disse. Ou seja: empresas como a Enron, WorldCom, AOL e CityCorp não pagariam impostos, deixando a obrigação apenas para o chamado “Joe Six Pack” (a versão americana do “Zé Povinho”, ou os “carpinteiros e encanadores”, cujo dinheiro O’Neill disse proteger ao negar ajuda ao Brasil). E mais: nada de serviço de Previdência Social, pois o secretário acha que o governo não tem de se meter nisso. Não é sem motivo que, segundo a revista Times, o conselheiro Lawrence Lindsey – o mais importante assessor econômico de Bush – rola os olhos cada vez que O’Neill abre a boca. Seus colegas de governo o apelidaram de Forrest Gump de Washington.

Sobre remessas de dinheiro para paraísos fiscais – Suíça ou Cayman, por exemplo –, as opiniões do secretário do Tesouro obedecem ao sistema de dois pesos e duas medidas. Reprova o governo de Uganda por ter mandado dinheiro para a Suíça (ele cismou com o lugar), em vez de usar a ajuda para melhorar o sistema de água do país. Bono poderia ter lembrado o secretário de que a maior parte da bufunfa foi direto para o caixa dos credores da dívida soberana da nação, servindo para amortizar juros estupendos. Ou seja: não se presta para garantir a água das crianças, mas sim o uísque dos credores.

A mesma prática de escamotear dinheiro em contas numeradas, que parece preocupar tanto Paul O’Neill, porém, não é vista com tanto rigor se praticada por empresas americanas. Em 18 de janeiro de 2002, a organização ultrapartidária de Washington Public Citizen enviou carta ao secretário exigindo que ele prestasse contas e tornasse públicas suas comunicações com executivos da Enron e as pontes que teria construído entre a empresa e o governo Bush. A Public Citizen apontava evidências de que ele teria ajudado a empresa energética Enron a continuar escondendo informações sobre sua explosiva situação financeira. O’Neill também saberia das manobras contábeis da Enron através de contas da empresa nas Ilhas Cayman, mas até agora não respondeu à carta.

Sabe-se, porém, que o governo Bill Clinton, desde 1998, havia colocado em marcha uma campanha contra os paraísos fiscais. Ameaçava com sanções econômicas drásticas os países que mantinham sistema bancário propício para a evasão de divisas e lavagem de dinheiro de indivíduos ou grupos americanos. Mas, em fevereiro de 2001, O’Neill anunciou que o governo atual iria rever o assunto, o que de fato retardou esta ação. Em novembro daquele mesmo ano, o secretário dizia que Cayman não teria de rever suas regras bancárias até 2004. Foi assim que a Enron conseguiu manter 874 subsidiárias naquele país, escamoteando no período US$ 1,8 bilhão de prejuízo. O Congresso americano investiga o caso, mas O’Neill não quer depor sobre o assunto.

Para os brasileiros, ao insulto se junta ferimento. Antes de ocupar o cargo de secretário do Tesouro, Paul O’Neill – um formando da Universidade de Indiana – foi presidente da Alcoa, multinacional de alumínio. E durante sua gestão a Alcoa recebeu do Brasil incentivos como o corte de 70% nas tarifas de energia elétrica que utiliza. Ou seja: além de mal-educado, o secretário é mal-agradecido.