A notícia é boa e má ao mesmo tempo: a maior ONG de combate à pobreza no mundo está se instalando no Brasil. Isso significa que precisamos de ajuda, mas também que teremos uma mãozinha para reduzir os números que mais envergonham o País. Há 50 anos os dados são os mesmos: enquanto 50% da população mais pobre tem 10% da renda, os 10% mais ricos detêm 50% dela, segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2000. Mais assustador é saber que pertence à privilegiada fatia dos 10% abonados quem ganha R$ 600 por mês. De acordo com o americano Peter Bell, 62 anos, presidente da Care Foundation e um dos maiores especialistas em pobreza no mundo, até China e Índia avançam mais na redução da miséria que o Brasil. A ONG atua em 60 países, capitalizando recursos em alguns para investir em outros. Depois de mapear a renda brasileira, a organização decidiu concentrar forças no Nordeste e no eixo Rio–São Paulo, que reúne os grandes bolsões urbanos de miséria. No Brasil, a Care desembarca com US$ 1 milhão para os próximos dois anos, mas para fazer tudo o que planeja precisará captar US$ 8 milhões. Bell, que chega a São Paulo no sábado 27, é um velho conhecido do presidente Fernando Henrique Cardoso e dos intelectuais tucanos. Quando morava por aqui, nos anos 60, teve papel decisivo na formação do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), através de sua atuação na Fundação Ford, organização filantrópica que, entre outras coisas, financia estudos acadêmicos. Também ajudou a tirar da prisão naquela época o sociólogo Bolívar Lamounier, então estudante de ciência política e hoje presidente da Care Brasil. Casado com uma americana que foi aluna de José Serra no Chile, Bell evita comentários sobre a gestão FHC, mas deixa claro: “O Brasil tem um dos piores índices de distribuição de riqueza do mundo.”

ISTOÉ – Por que a Care, que tem 56 anos de existência, veio atuar no Brasil só agora?
Peter Bell –
Porque o Brasil não é um país pobre. Mas tem muitas desigualdades. Cerca de 53 milhões de brasileiros vivem na pobreza. Destes, 22 milhões estão na extrema pobreza. Nos últimos 50 anos, construímos uma reputação de profissionalismo e confiabilidade. Pouco a pouco voltamos nossa atenção não apenas para a diminuição da miséria, mas para o ataque às suas causas. O Brasil agora possui muitas organizações comunitárias, agências governamentais e companhias privadas dispostas a serem nossas parceiras.

ISTOÉ – Quais são os primeiros projetos da Care?
Bell –
O primeiro é no sul da Bahia, onde vamos trabalhar com 19 organizações para aumentar a geração de renda, desenvolvendo a produção agrícola e sua comercialização. Também estamos elaborando um projeto na favela da Maré, no Rio, nas áreas de pré-escola e geração de empregos.

ISTOÉ – O sr. esteve no Brasil durante a ditadura militar…
Bell –
Cheguei pela primeira vez em 1964, quando eu integrava o staff da Fundação Ford. Conheci minha mulher, Karen, no Brasil, em 1969, quando ela estava fazendo uma pesquisa para a Universidade de Harvard no Instituto Oswaldo Cruz, no Rio.

ISTOÉ – Como nasceu a amizade com FHC?
Bell –
Em 1969, trabalhei com ele na formação do Cebrap. Naquele ano, Fernando e outros professores foram expulsos da USP. Esperava-se então que ele fosse para o exílio dar aulas na Sorbonne. Era um jovem e promissor professor de sociologia política e teve a idéia de ficar no Brasil para fazer algo que nunca tinha sido feito: fundar um centro de estudos e pesquisa privado no País. Fernando Henrique conseguiu poucos recursos de algumas empresas em São Paulo e perguntou se a Fundação Ford poderia ajudar. Então trabalhamos em uma proposta que eu mandei para o escritório em Nova York. Inicialmente, foi recusada. Insistimos e um representante da embaixada americana disse que seria bom para a minha carreira abandonar o projeto. Logo depois, um agente da CIA me procurou com dossiês imensos sobre Fernando Henrique. Diziam que ele era visto como um “reconhecido esquerdista”, algo assim. Eu disse que não havia razão para abandonarmos a idéia e conseguimos recursos para o Cebrap.

ISTOÉ – O sr. tem acompanhado o governo FHC?
Bell –
Muito pouco. Tenho visto algumas coisas e mantido algum contato com Fernando. Há cerca de dois anos, quando exploramos a possibilidade de a Care se instalar no Brasil, encontrei-o em Brasília para discutirmos a idéia. E ele nos encorajou.

ISTOÉ – O sr. acha difícil fazer no governo o que se tinha pensado nos tempos de academia?
Bell –
É uma pergunta difícil. Acho que há uma diferença entre os papéis de acadêmico e de líder político. Mesmo como acadêmico, as pesquisas de Fernando e suas visões sobre o mundo continuam a se desenvolver. Não acredito que ele jamais tenha visto sua participação no governo como oportunidade de testar suas teorias acadêmicas.

ISTOÉ – O que deveríamos ter feito para combater a desigualdade e não fizemos?
Bell –
Não me sinto qualificado para responder. Acho que a geração de cientistas sociais com a qual trabalhei nos anos 60, incluindo Fernando, sonhava com um país democrático, igualitário, mais desenvolvido economicamente e socialmente mais justo. De certa maneira, o Brasil obteve progressos nessas áreas, mas o caminho foi mais difícil e irregular do que o esperado. Acho que o sonho ainda está vivo e esta é uma grande tarefa para toda a sociedade. Para se manter viva a esperança de um país melhor, é preciso combinar crescimento econômico e distribuição de riqueza.

ISTOÉ – O sr. passa boa parte do seu tempo viajando. O que se fala sobre o Brasil pelo mundo afora?
Bell –
O Brasil é conhecido por ter uma das piores distribuições de renda no mundo. Mas é visto como um país agitado, dinâmico e comprometido com os valores democráticos. A cultura política e as instituições são tratadas como ainda em desenvolvimento. As pessoas também dizem que o Brasil tem um potencial econômico enorme, que de certa forma vem sendo afetado pela má distribuição de riqueza. No Brasil, este problema é ainda pior que nos seus vizinhos da América Latina. Nos últimos 20 anos, esta questão não melhorou muito.

ISTOÉ – O trabalho da Care é decisivo no combate à pobreza ou é apenas mais uma ajuda?
Bell –
O objetivo maior da Care não é apenas aliviar a pobreza, mas atacar suas causas. Sabemos também que só seremos efetivos se trabalharmos com muitas outras organizações, se conseguirmos construir um movimento mundial voltado para a eliminação da pobreza. É um trabalho de décadas, mas acreditamos que o mundo hoje tem riqueza, conhecimento e tecnologia para acabar com a pobreza.

ISTOÉ – Os EUA devem fazer mais que os outros países no combate à pobreza?
Bell –
Os EUA precisam fazer mais do que fazem. Acredito que nada seja mais importante neste século do que o combate à pobreza. Entendo a necessidade de responder militarmente ao terrorismo, mas as pessoas precisam de esperança e os EUA e qualquer outro governo precisam oferecer mais do que segurança militar. Não há ameaça maior à dignidade das pessoas comuns do que a pobreza extrema e a diferença entre o rico e o pobre. Os países industrializados precisam tornar a globalização mais igualitária. Por exemplo, os ricos deveriam abrir seus mercados para produtos agrícolas dos países em desenvolvimento.

ISTOÉ – O sr. chegou a trabalhar no governo americano? Teve problemas?
Bell –
Fui presidente da InterAmerican Foundation, criada para promover o desenvolvimento na América Latina e no Caribe. Queríamos apoiar organizações comunitárias voltadas para a democracia, mas muitas pessoas nos criticaram na administração de Ronald Reagan. Alguns achavam que deveríamos apoiar apenas organizações claramente pró-americanas. Eles produziram um relatório criticando a fundação e minha direção. Depois pediram minha renúncia. Eu me recusei a sair, mas eles acabaram me despedindo.