Foram as arrumações de malas mais rápidas de que se tem notícia na história de viagens internacionais. Na semana passada, os representantes de países que ainda mantêm relações diplomáticas com o Iraque – inclusive o Brasil – receberam de Washington ordens peremptórias para empacotar malas e cuias e cair fora de Bagdá em ritmo de fuga desesperada. Já na quarta-feira 5, havia quem apostasse que a invasão de tropas americanas e britânicas começaria entre sábado 8 e domingo 9. “A guerra tem de começar num dia em que não há escolas em funcionamento. Do contrário, será aquela loucura de pais em disparada para buscar os filhos”, disse a ISTOÉ o comissário de polícia de Nova York Raymond Kelly. Na quinta-feira 6, o presidente George W. Bush apareceu em cadeia nacional de tevê e disse, de modo inequívoco, que o tempo da diplomacia havia se esgotado. Antecipou-se, assim, aos inspetores de armas da ONU, que na sexta-feira 7 voltaram a pedir mais tempo para concluir seu trabalho no Iraque. Seu compromisso fora decidido, e sua visão do resultado final é a da repetição da famosa cena de marines erguendo a bandeira Old Glory num monte da terra conquistada. Semelhante àquilo que fizeram em 1945 depois de tomarem a base aérea japonesa na ilha de Iwo Jima, na Segunda Guerra Mundial. A História, porém, ensina que as vitórias cobram alto preço. Em Iwo Jima, o caminho para a glória deixou 20 mil baixas americanas, das quais cinco mil mortos. Além disso, a geografia mostra que o Iraque não é o Japão.

Somente os mais alucinados acólitos de Saddam Hussein acreditam
numa derrota americana numa guerra contra o Iraque. Militarmente,
não há duvidas quanto à superioridade ianque. Quase 300 mil homens estão nas vizinhanças do Golfo Pérsico esperando para tomar Bagdá. Farão isso depois de um rápido, mas pesadíssimo bombardeio – com
três mil bombas caindo em três dias. O problema é que depois da destruição, obrigatoriamente terá de vir a reconstrução. Uma
empreitada muito mais fabulosa, e com resultados, no mínimo,
incertos. O futuro político do presidente dos EUA está perigosamente ligado ao futuro do Iraque pós-Saddam.

“Existem vários cenários que estão sendo desenhados pelos analistas”, diz o ex-assessor de comunicação do ex-presidente Bill Clinton, George Stephanopoulos, atual comentarista da ABC. “Em termos de organização, acho que podemos reduzir estes cenários a três: um absolutamente desastroso; um outro difícil, mas com algumas chances de sucesso e um último que poderia ser usado pelo presidente para clamar vitória e usar os resultados como cabo eleitoral em 2004. Seguindo as sugestões do comentarista, é possível antever:

O Armagedon – Nele, Saddam, se vendo perdido, resolve perpetrar a derradeira vingança. Detona as minas que, já se sabe, estão plantadas nos poços de petróleo de seu país. Não há informações precisas se estas minas foram colocadas em profundidade suficiente para danificar totalmente os equipamentos de prospeção, atrasando a exploração petrolífera iraquiana em décadas. E mais: usando as armas químicas que os Estados Unidos garantem que ele possui, o ditador poderia bombardear os poços dos vizinhos Kuait e Arábia Saudita. O trabalho de apagar o fogo tem de ser feito por gente vestindo equipamento contra agentes químicos e bacteriológicos, numa operação inédita na história destas operações. “Não acredito que armas químicas e biológicas possam complicar ainda mais a ação dos bombeiros. O incêndio nos poços terá temperaturas tão intensas que destruiriam quaisquer agentes nocivos dos arsenais de Saddam”, disse a ISTOÉ o veterano Joe Boeden, da empresa Wild Well Control, que foi uma das companhias que ajudaram a apagar o fogo nos poços do Kuait. “O problema é que a logística para se apagar incêndios em poços de petróleo é supercomplicada. No Kuait, os prejuízos no país foram de US$ 75 bilhões. Imagine se tivermos que repetir a dose de trabalho em frentes de dois países: no Iraque e no Kuait”, disse Boeden a ISTOÉ. Acrescente-se a isso o fato de que, depois do bombardeio de um único poço da Arábia Saudita, o preço do petróleo passará tranquilamente a barreira dos US$ 70 o barril. “A economia do mundo entrará em parafuso se o barril passar dos US$ 50”, analisa o porta-voz da Kwait Oil Co., Khaled Muhammed.

 

Some-se a isso, a fragmentação étnica de um país tão multicultural quanto o Iraque. No Sul, a maioria xiita vai beber o sangue da minoria sunita, que há décadas ocupa o poder no país. Um trailer deste festival de vendettas foi visto logo depois da guerra de 1991. Ao mesmo tempo que as cabeças são cortadas em Basra, uma outra guerra civil se desenrola ao Norte. Lá os curdos, cujas múltiplas facções estão em constantes refregas, partem para a decisão deste campeonato de lutas que disputam há anos. “Em Bagdá, as diversas facções da oposição nacionalista iraquiana, há anos no exílio, brigam entre si e contra os remanescentes do regime anterior, para ver quem sentará no trono vago de Saddam. O general Tommy Franks, comandante das operações de guerra e possível vice-rei americano apontado para governar o país na fase de transição, terá primeiro de lutar contra iraquianos, depois acabar com a luta entre eles. Tudo isso sem mencionar a hecatombe que seria a possibilidade de envolvimento de Israel e, consequentemente, de outros países árabes e dos palestinos no conflito.

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Quanto custará a ocupação americana numa nação que está
nestas condições?”, pergunta Richard Heller, da Universidade de Georgetown, em Washington – e outros milhões de americanos.
“Algo entre US$ 100 bilhões e US$ 200 bilhões”, responde o veterano senador democrata Teddy Kennedy.

O jogo difícil – Este cenário é uma versão mais light do imaginado anteriormente. Os poços de petróleo do Kuait e da Arábia Saudita são poupados. As minas nos poços iraquianos são colocadas apenas nas superfícies – o que facilitaria o trabalho dos bombeiros. A vingança xiita no Sul é contida, à moda do Kosovo, por tropas de paz americanas e da ONU. Ao Norte, sobrou apenas a facção curda pró-americana, aquela que ajudou as tropas especiais de Tio Sam durante a guerra. Estes são convencidos, à custa de milhões de dólares e mais o privilégio de se manter como uma província autônoma, a reduzir suas ambições territoriais. E pressões diplomáticas americanas e européias manteriam as tropas turcas dentro de suas fronteiras. Restaria, então, ensinar a prática da democracia aos iraquianos. “Quem nunca, em sua história, vivenciou a democracia,
terá dificuldades para aceitá-la”, diz ninguém menos do que Ahmad Chalabi, chefe do principal grupo de exilados iraquianos. O banqueiro Chalabi ajudou a fundar em Londres, em 1992, esta colcha de retalhos políticos e, apesar de estar fora do país há décadas, sustenta
pretensões de liderar o país depois que os americanos saírem. Um
grupo que terá dificuldades em aceitar as liberdades democráticas
são os oficiais das Forças Armadas iraquianas, que certamente desejam ocupar os palácios que Saddam construiu com tanto capricho. Terão de bater nesta corrida a burocracia remanescente do partido Baath – que reinou com Saddam, mas ainda tem as chaves que fazem funcionar as máquinas do país. Novamente o general Franks terá de ficar longa temporada entre os rios Tigre e Eufrates, apagando fogos de poços
de petróleo e fogueiras de vaidades.

Vitória de Bush – O cenário preferido pela Casa Branca. A opinião
pública mundial, e principalmente americana, começa a exigir a volta
do vice-rei, general Franks, o quanto antes. Ele sai de lá deixando um político como Chalabi – malquisto tanto pelo Departamento de Estado quanto pela CIA, na opinião de experts da região – tomando conta da tenda. É quando um general carismático nas casernas, sem passado muito íntimo com Saddam, mas por dentro das engrenagens partidárias
do Baath, dá um golpe de Estado, e imediatamente se declara pró-americano e a favor da existência do Estado de Israel. George W. Bush economizaria várias dezenas de bilhões, declararia que a tirania
e as armas de destruição de massa foram eliminadas da região e se voltaria imediatamente para as questões domésticas mais urgentes
nos EUA: aquelas que dizem respeito à sua reeleição.

Peixe na rede

Um peixe de respeitáveis dimensões caiu na rede dos americanos: o kuaitiano Khalid Sheikh Mohammed, autoproclamado chefe do comitê militar da al-Qaeda, foi detido em Rawalpindi, próxima de Islamabad, a capital do Paquistão, no sábado 1º. Junto com ele também foi detido Mustafa Ahmed al-Hawsawi, que teria ajudado no financiamento das ações terroristas de 11 de setembro de 2001. Apesar de estar hierarquicamente abaixo de Osama Bin Laden e do egípcio Ayman al-Zawahiri, Khalid Mohammed é tido como o cérebro operacional da rede terrorista. Sobre ele recai a suspeita de ter sido o autor intelectual dos ataques. Mesmo após os atentados, Mohammed foi um dos poucos líderes que mantiveram contato direto com as diversas células terroristas da al-Qaeda no mundo. A detenção de Mohammed teve lances de filmes de ação. Ele era procurado desde meados dos anos 90, quando foi acusado de planejar um fracassado atentado contra aviões comerciais nas Filipinas em 1995. Em junho de 2002, os serviços de inteligência dos EUA concluíram que Mohammed era um dos principais líderes da al-Qaeda, o que elevou seu “status” para um dos 22 terroristas mais procurados do mundo, com recompensa de US$ 25 milhões. Formado em engenharia nos EUA, Mohammed escapou várias vezes de ser preso. Em sua rota de fuga, segundo a Time, chegou a passar pelo Rio de Janeiro. Na sexta-feira 7, forças de segurança do Paquistão informaram que dois filhos de Osama Bin Laden teriam sido feridos e presos junto com outros membros da al-Qaeda.

Fernando F. Kadaoka

Heresia e liberdade de expressão
    
O pensador britânico Samuel Johnson (1709-1784) dizia que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas. Além de ser uma permanente ameaça às liberdades civis, o jingoísmo, às vezes, revela também uma colossal estreiteza mercadológica. Foi o que aconteceu com Stupid white men (Estúpidos homens brancos), de Michael Moore, uma das mais impiedosas sátiras ao establishment da direita cristã que passou a dominar a Casa Branca depois da ascensão de George W. Bush ao poder. O livro, que está saindo no Brasil pelo selo Francis, da W11 Editores, foi escrito nos meses que antecederam os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001.

As primeiras 50 mil cópias sairiam da gráfica na noite anterior à tragédia. Semanas depois, a editora, ReganBooks, uma divisão da HarperCollins, disse ao autor que o livro teria que ser reescrito porque o clima político do país mudara desde então. “Gostaríamos que você considerasse a possibilidade de reescrever até 50% do livro… retirando as menções ríspidas a Bush e dando um tom mais ameno às discordâncias”, disse um editor a Michael Moore. O autor desconfiou que tal orientação partira de Rupert Murdoch, proprietário da News Corp., dona da HarperCollins. Não houve acordo e os exemplares seriam destruídos pela editora.

Foi então, em dezembro de 2001, que Moore contou a história para cerca de 100 pessoas, às quais daria uma palestra em New Jersey. Uma bibliotecária decidiu fazer algo. Pela internet, escreveu uma carta a seus amigos e colocou o assunto num site, pedindo que todos escrevessem para a HarperCollins exigindo que o livro fosse lançado. Foi um escândalo. O livro acabou publicado, a contragosto da editora, e virou um sucesso de vendas. Stupid white men, que denunciava a eleição de Bush em 2000 como “golpe de Estado”, e, segundo a editora, estava “fora de sintonia com o povo americano”, entrou na lista dos mais vendidos do The New York Times. O sucesso se repetiu no Reino Unido. Uma prova, afinal, de que o mundo anglo-saxão, apesar dos retrocessos recentes, ainda não se transformou num estado policial empresarial, como temia Moore. Afinal, como dizia Graham Greene, outro escritor britânico – sempre eles! –, “a heresia é apenas outro nome para a liberdade de pensamento”.

Cláudio Camargo

 



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