Em julho de 2004, a Polícia
Federal apreendeu no interior
do Amapá, na caçamba de uma caminhonete, 18 sacas de um
mineral granulado escuro muito mais pesado do que aparentava ser. O material, examinado depois nos laboratórios da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), era um composto de urânio e tório, minérios altamente radioativos que abundam em jazidas encravadas no extremo Norte brasileiro. Estava ali o fio da meada para a descoberta de uma das mais obscuras máfias em atuação no País, com braços internacionais e especializada na extração clandestina e na comercialização ilegal de urânio. Nas duas últimas semanas, ISTOÉ avançou nesse explosivo terreno. Conheceu a realidade das minas onde garimpeiros põem suas vidas em risco, expostos à radiação, e desvendou uma investigação que, até aqui, vinha sendo tratada como segredo de Estado. São centenas de horas de gravações telefônicas feitas pela polícia que revelam por dentro o funcionamento da máfia, desde a extração do minério nos garimpos situados em plena selva amazônica até as negociatas encabeçadas por quadrilhas que exportam o urânio para clientes tão misteriosos quanto elas próprias – e, muitas vezes, com o respaldo de autoridades constituídas e políticos. Além de brasileiros, estão sob a mira das polícias irlandesa, russa e alemã supostos integrantes de uma conexão que, segundo os investigadores, estaria levando o minério para países da Europa, Ásia e África, em particular a Rússia e a Coréia do Norte. O Palácio do Planalto já recebeu o alerta de que, daqui, o urânio pode estar indo parar, também, nas mãos do terrorismo internacional.

No rastreamento da teia de relações mantidas pelos traficantes, a polícia chegou
ao nome de Haytham Abdul Rahman Khalaf, libanês apontado como o elo com o grupo extremista islâmico Hamas. Na ponta brasileira da trama, até agora a Polícia Federal já identificou três grupos especializados no tráfico de urânio. Todos com base em Macapá. O principal deles tem como testa-de-ferro o empresário João
Luís Pulgatti, dono de um pool de empresas de mineração que consegue autorização oficial para pesquisar jazidas de ouro, mas que, na prática, explora e negocia minério radioativo. Por trás de Pulgatti está John Young, 58 anos, irlandês naturalizado canadense que diz representar no Brasil os interesses de uma companhia internacional de mineração. A partir de 2004, Young passou a ser
sócio das empresas de Pulgatti. De olho nas jazidas e com dólares para investir, a parceria do estrangeiro com o brasileiro avançou. Em agosto do ano passado, o canadense destacou um geólogo para visitar minas no Amapá. Queria comprar uma área de mil hectares que, segundo as conversas grampeadas pela polícia, guarda nada menos que 50 mil toneladas de minério radioativo. Provavelmente de tório e urânio. “Pode mandar o seu pessoal lá checar, trazer amostras e analisar”, diz o dono da área a Pulgatti, encarregado de cuidar das negociações. Pelas terras, o grupo pagaria US$ 1,2 milhão. As escutas revelam que, fora os planos para ampliar a exploração direta de urânio, a dupla tem toda uma estrutura para comprar minério radioativo. Espalha garimpeiros em lugares estratégicos e tem preferência na compra do que for encontrado. Segundo a polícia, outro grupo especializado na aquisição de urânio é encabeçado por Robson André de Abreu, dono de madeireiras, de uma mineradora e de um conhecido restaurante de Macapá. A exemplo de Pulgatti, ele possui uma rede de fornecedores de urânio. O terceiro “grupo criminoso”, como escrevem os agentes nos relatórios secretos obtidos por ISTOÉ, é chefiado por um homem até agora identificado apenas como Nogueira. Ao longo da investigação, os policiais descobriram que o negócio é infinitamente maior que aqueles 600 quilos apreendidos há quase dois anos. Nas escutas, surgem negociações de até dez toneladas.

A máfia do urânio também tem um braço no poder público. Os grampos da Polícia Federal registraram conversas em que o geólogo José Guimarães Cavalcante, braço direito de João Pulgatti, revela o auxílio de um senador da República para desencravar no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), em Brasília, um processo em que se buscava autorização para pesquisa de minério. O senador em questão é Papaléo Paes, do PSDB do Amapá. “Ele (um advogado de nome Luís Carlos) ia falar amanhã com o Papaléo pra pedir pra ele ver se segunda-feira ele vai logo lá falar com o diretor-geral (do DNPM), porque assim ele manda publicar isso”, diz Guimarães a um interlocutor, de nome Édson. Mais adiante, ele festeja: “O caminho do doutor Papaléo foi exatamente os orixás que abriram para solucionar o meu problema.” Também conhecido como Zé do Mapa, José Guimarães já foi diretor do distrito do DNPM no Amapá. Acabou afastado após investigação da própria Polícia Federal. Ao mesmo tempo que ocupava o cargo, ele era dono de garimpos no Estado. O atual diretor do distrito, João Batista Picanço Neto, é outro que foi sugado para dentro da investigação. Ele aparece falando com um dos sócios de Pulgatti. Dá orientações sobre como aprovar processos de lavra e indica o funcionário que pode resolver o problema. O interlocutor acolhe a orientação e evidencia a existência de algo suspeito no ar. “Vou procurá-lo pessoalmente. Isso não se fala por telefone”, diz. A investigação envolve até o procurador da República, que estava encarregado de acompanhar o caso. José Cardoso, um dos representantes do Ministério Público Federal no Amapá, passou a ser investigado depois de ter sido citado nas conversas grampeadas. Numa delas, um homem não identificado diz que ele o ajudaria a resolver em Brasília uma pendência burocrática no DNPM. “O dr. José Cardoso levou meu processo em mãos para Brasília e me garantiu que ele mesmo ia falar com o diretor-geral”, afirma o homem em conversa com o sócio de uma das empresas investigadas. Além de ter aparecido nos grampos, Cardoso tem algo mais a explicar. Até o mês passado, José Guimarães, o ex-diretor do DNPM pilhado no contrabando de urânio, trabalhava como funcionário de seu gabinete. Como passou a ser alvo, o procurador foi afastado do inquérito. Há, ainda, outras autoridades e políticos na mira da polícia. Entre eles, um deputado estadual, Jorge Salomão (PFL), e um ex-deputado federal, Sérgio Barcellos.

O esquema é organizado e envolve cifras significativas. Os grupos trabalham com o auxílio de engenheiros e geólogos. Quando os garimpeiros encontram minério radioativo, submetem pequenas amostras a técnicos que certificam os teores exatos de urânio de cada carregamento. É o que vai indicar o valor do material. O quilo de torianita, que os negociantes preferem chamar de “material pesado”, ou simplesmente “pedra”, para evitar problemas, é vendido em dólar. Varia de US$ 200 a US$ 300. As empresas envolvidas no negócio lucram com a atividade, mas na prática não passam de firmas de fachada. Em Macapá, ISTOÉ foi averiguar o endereço declarado à Receita Federal pela Uniworld Mineração, teoricamente uma das principais empresas do grupo de Pulgatti e do canadense John Young. No lugar, numa rua enlameada de um bairro periférico da cidade, está um barraco de madeira. A pobreza do endereço é inversamente proporcional à vida que levam os cabeças do esquema. Nas escutas, eles aparecem comprando caminhonetes importadas e fazendo orçamento até de avião. Para driblar as autoridades, os estratagemas incluem mudanças constantes dos números de telefone. E as reuniões costumam ser em lugar ignorado, que nas ligações interceptadas eles chamam de “base” ou “batcaverna”. Mesmo com os dribles, a Polícia Federal tem tudo para desmantelar o esquema em breve. A operação, batizada de “Ouro Negro” em referência à cor e ao valor do material radioativo, mobiliza agentes da superintendência de Macapá, da Diretoria de Inteligência e da Divisão Anti-Terrorismo. Já há mais de uma centena de investigados. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) também acompanha o caso, por ordem do Planalto.

O urânio, menina-dos-olhos dos traficantes e alvo principal da investigação, é parte da composição da torianita, minério que mais parece uma areia grossa e escura. Cada quilo do material chega a ter 80 gramas de urânio e 750 de tório, igualmente radioativo e também prejudicial à saúde. A extração, o transporte e o armazenamento são feitos na surdina, para driblar a lei – afinal, exploração de minério radioativo é monopólio da União. A maior concentração das minas está na região central do Amapá, num triângulo formado pelos municípios de Porto Grande, Serra do Navio e Pedra Branca. Por ser mais próximo da capital, Macapá, localizada a 110 quilômetros e com ligação por rodovia asfaltada, Porto Grande funciona como uma espécie de entreposto do tráfico. É para lá que é levada boa parte da produção que sai dos garimpos. A rota a seguir é variada. O minério segue de carro para Macapá ou do garimpo é levado de barco até o Oiapoque, na ponta norte do Estado. Depois, vai para a Guiana Francesa, de onde é despachado para outros países. Rússia, Coréia do Norte e países do continente africano são alguns dos destinos sob investigação. Nos grampos, há referência até a um estoque de oito toneladas que estaria sendo mantido no interior de São Paulo.

Em Porto Grande, embora seja um dos motores da economia local, urânio é
palavra proibida. Ainda mais agora que a Polícia Federal começou a apertar o
cerco. “O quê? Nem me fale de urânio, isso tá dando problema. A Federal tá
em cima”, responde o comerciante Antônio Teixeira Lima ao ser perguntado se sabia de alguém que pudesse ter urânio para vender. O medo de contaminação, porém, não é tão grande quanto o medo da polícia. Atravessadores e garimpeiros costumam guardar o material até mesmo dentro de casa ou do quintal. Em fevereiro, a polícia apreendeu 500 quilos de torianita nos fundos do barraco onde o fiscal da prefeitura Estevam dos Santos Nascimento vive com cinco filhos, o menor com
três anos. “Sempre tem gente com material escondido por aí”, diz um morador
da vila, sem se identificar. Num dos garimpos da região do Cupixi, a 186 quilômetros de Macapá, no meio da selva, falar em urânio é pedir para encerrar a conversa. “Aqui não tem isso não, é proibido”, desconversa o maranhense João Moraes, 36 anos. Ressabiado, ele só fala de ouro. Ouro negro, ao menos diante de estranho, nem pensar. Pode ser polícia.

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