O mecânico Sandro Costa Fragoso era um jovem sadio. Depois que terminou um namoro, no entanto, começou a ficar agressivo. Procurou assistência médica e tomou remédios, mas a situação só piorou. Após sete meses de crises, foi internado em 9 de julho do ano passado, no Hospital Psiquiátrico Dr. Milton Marinho, em Caicó, a 260 quilômetros de Natal, a capital potiguar. Oito dias depois, aos 22 anos, Sandro foi encontrado morto em um quarto com grades na janela. Morreu queimado, com as marcas das ataduras que o amarravam à cama. Apesar desses sinais, cogitou-se que a tragédia nada mais seria do que suicídio. Pelo menos é essa a versão registrada pelo médico Salomão Gurgel, um dos psiquiatras responsáveis pelo atendimento de Sandro, num documento sigiloso do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Norte. Gurgel só não explica como é que alguém amarrado consegue atear fogo num recinto e assim pôr fim à vida.

Sete meses após o caso, a história de Sandro volta à tona. Há pouco mais de um mês, o Instituto Técnico-Científico de Polícia do Rio Grande do Norte divulgou laudo que derruba a estranha hipótese de suicídio. Os especialistas chegaram à conclusão de que o paciente foi vítima de um incêndio criminoso. Procurado por ISTOÉ, Gurgel confirma que Sandro foi “contido” nas mãos, nos pés e no tórax com tiras de pano. Isso porque, em suas palavras, o jovem tentava fugir e agredia a todos. Ao conhecer a avaliação policial, entretanto, o médico alterou o discurso. “Coloquei o suicídio como causa provável. Agora, se chegaram à conclusão de que alguém entrou lá e o rapaz não tinha condições de se defender, cabe à polícia esclarecer”, diz.

Embora o psiquiatra Salomão Gurgel se diga um médico voluntário do hospital, na hora de informar a morte de Sandro à família ele se apresentou como diretor da instituição. Sidney, irmão do paciente, lembra que, ao tentar visitá-lo, oito dias após a internação, viu um carro de polícia na porta do hospital. Na ocasião, foi orientado a procurar Salomão Gurgel em sua casa. O médico lhe disse que Sandro, depois de tentar bater em dois pacientes, fora amarrado na cama em um quarto isolado. Sentiram cheiro de fumaça e o encontraram morto. “Ele me falou que foi Sandro quem ateou fogo. Como, se estava com pernas e braços amarrados?”, revolta-se Sidney.

Antes da morte de Sandro, outro episódio estranho havia ocorrido na mesma instituição. Em 11 de janeiro de 2002, Maria de Fátima Fernandes Gomes, cujos problemas mentais a impediram de se formar professora, foi internada no Hospital Milton Marinho. Dez dias depois, saiu de lá direto para o hospital Walfredo Gurgel, em Natal. Sua perna esquerda, que, segundo a família, era saudável, estava em avançado estado de gangrena. “Estranhei como alguém que nem tem diabete tivesse chegado com a perna naquele estado”, comentou o cirurgião vascular Irã José de Chagas, que amputou a perna de Maria de Fátima. Ele não arrisca palpites a respeito da causa do problema. Mas acrescenta que muitas vezes uma trombose (formação de coágulos dentro de um vaso sanguíneo) leva à gangrena. “Uma pessoa saudável pode desenvolver trombose durante um vôo de dez horas de duração”, explica. No caso de um paciente psiquiátrico, é possível que a pessoa seja sedada. “Ela pode ficar em posições desconfortáveis e não ter condições de reclamar, acabando exposta a esse tipo de complicação”, completa.

De acordo com Benedita Fernandes da Silva, irmã de Maria de Fátima, a visita só foi liberada uma semana após a internação. “Meu irmão foi visitá-la. Ela se queixou de fome e a perna estava preta. No dia seguinte, soubemos pelo hospital que Fátima tinha ido para Natal”, lembra com tristeza Benedita, cuja mãe, cardíaca, morreria “de desgosto” semanas depois. A versão de Gurgel para o drama de Maria de Fátima é outra. O médico conta que a paciente estava superagitada ao dar entrada no hospital e foi recebida pelo clínico geral. “Quando cheguei, ela já estava com a perna necrosada. Ficou em uma enfermaria e não foi amarrada”, afirmou. Segundo disse, a família foi avisada sobre o estado da perna de Maria de Fátima e não tomou providências imediatas. “Já era tarde quando ela foi para Natal. Nesse caso não tivemos
a menor responsabilidade”, diz Gurgel.

Ao saber das denúncias feitas por ISTOÉ, Jorge Solla, secretário de Atenção à Saúde, órgão do Ministério da Saúde, informou que será
aberta uma auditoria no Hospital Milton Marinho para apurar os fatos
e responsabilizar os culpados. Dependendo do resultado, o hospital poderá ser descredenciado pelo SUS ou até fechado. A morte de Sandro já está sendo investigada por um inquérito que corre em Natal. Além disso, sua mãe, Maria José Costa Fragoso, entrou em agosto passado com uma ação de reparação de danos contra o hospital na 1ª Vara
Cível de Caicó. “O andamento é muito lento”, lamenta o advogado
da família, Tarciano Fontes. A defesa de Gurgel surpreende pela simplicidade: “Morre gente em todos os hospitais psiquiátricos. Viramos bode expiatório por questões políticas e ideológicas.” O secretário Jorge Solla garante que as únicas mortes conhecidas pelo Ministério da Saúde são as de Caicó. “Se este senhor tem conhecimento de outros óbitos
em instituições psiquiátricas, que as denuncie para que possamos tomar as providências”, acrescentou Solla.

Salomão Gurgel não é o único suspeito pelas aparentes atrocidades do hospital, mas seu nome se destacou em função do currículo: foi prefeito de Janduís, cidade vizinha a Caicó, pelo PMDB, de 1983 a 1988, e assumiu duas vezes uma vaga na Câmara dos Deputados. A primeira, de 1981 a 1982 e a segunda entre 2001 e 2003, na vaga de Henrique Eduardo Alves, que chegou a ser cotado para ser vice-presidente na chapa do tucano José Serra. Alves acabou cortado da chapa após denúncias de ISTOÉ sobre a incompatibilidade entre seus rendimentos de classe média e as posses de milionário. No ano passado, Salomão Gurgel concorreu a deputado estadual pelo PDT, mas não foi eleito.

Há mais um episódio que envolve o nome de Gurgel. Em novembro de 2000, foi aberto em Caicó o inquérito policial 139/2000 para investigar a morte de José Martins da Silva. Segundo testemunhas, o paciente teria morrido de inanição no Hospital Milton Marinho, em 28 de outubro de 2000. Os responsáveis pelo hospital, segundo o inquérito, eram os médicos Milson Rabelo, Salomão Gurgel e sua mulher, Nina Vasilievna Barinova. Em 2001, como Gurgel era deputado federal, o inquérito seguiu para o Supremo Tribunal Federal, que retirou o nome do médico do inquérito e o devolveu à jurisdição de Caicó. O caso está parado na Justiça, sem previsão de julgamento. Apesar de tantas denúncias, Gurgel diz que o hospital está lotado e não tem vagas nem para o próximo mês.