Quando estava em Davos, em janeiro último, para a reunião de líderes globalizados, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez uma análise sobre a possível Segunda Guerra do Golfo. Para espanto de alguns de seus interlocutores, o brasileiro disse que seu colega americano, George W. Bush, havia perdido o momentum para um ataque. Na ocasião, houve quem visse ingenuidade geopolítica do estreante brasileiro no cargo. O tempo parece estar comprovando, pelo menos parcialmente, a sensibilidade profética de Lula. Depois de perder a guerra da opinião pública para o pacifismo encabeçado internacionalmente por França e Alemanha – jogando, desse modo, num buraco negro eleitoral seus aliados europeus –, o presidente Bush
começa a ver se esvaziar o apoio doméstico a seus desejos guerreiros. As pesquisas de opinião pública independentes mostram que entre 53%
e 57% dos cidadãos americanos só apóiam uma invasão do Iraque
caso ela seja sancionada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Bush, porém, foi buscar num colega do passado, Franklin Delano Roosevelt, outro que enfrentou oposição pública contra a guerra, um paralelo que lhe servisse. Depois de notar o vigor das manifestações de rua do começo do mês, parafraseou Roosevelt dizendo que o verdadeiro líder toma decisões pelo bem do país, e não visando popularidade. Roosevelt todos conhecem e George W. Bush não é nada parecido com ele. Mas já há quem o compare com outro predecessor, Lyndon B. Johnson, que foi obrigado a renunciar à candidatura à reeleição
por causa de seu apoio à guerra do Vietnã.

Para não ser engolido por aquilo que ameaça se tornar um maremoto pacifista, Bush começa a jogar mais lenha em sua máquina de guerra. “Estamos numa correria típica daquelas que antecedem as primeiras ações de combate. Acho que agora a lâmina já foi acionada e está deslizando rumo ao pescoço de Saddam”, diz uma fonte de ISTOÉ no Pentágono. Os fatos da semana passada confirmavam esta impressão de que, agora sim, é guerra. O exemplo mais significativo disso foi a chegada ao Qatar do general Tommy Franks, comandante-em-chefe do Exército americano e quem liderará as tropas ocidentais que invadirem o Iraque. O general, diga-se, mudou de mala e cuia e ficará morando na região do Golfo Pérsico até o imbróglio terminar. “Todas as peças já estão no tabuleiro. Falta só começar o jogo”, diz a fonte militar de ISTOÉ.

O jogo, porém, só poderá começar depois que o último esforço americano-britânico junto à ONU tiver se esgotado. Trata-se de nova moção pressionando o Iraque e renovando a ameaça militar ao regime de Bagdá, caso não haja total desmantelamento de suas armas químico-biológicas e dos meios de transportá-las. Mas este, sabe-se, é um jogo onde o placar tem sido desfavorável à aliança anglo-americana. A jogada só foi feita – a contra-gosto do presidente americano – para ajudar o aliado Tony Blair, primeiro-ministro britânico, na tentativa de contornar a crescente oposição que sofre no âmbito doméstico. Na quarta-feira 26, por exemplo, 122 dos 410 deputados trabalhistas votaram contra a guerra. Já nos corredores da ONU, na semana passada, diplomatas de países como Guiné e Camarões eram cobertos de atenções nunca experimentadas por eles. Pelo que disse a ISTOÉ um diplomata angolano, se depender do voto de seu país, os americanos vão mesmo sozinhos. “Talvez valesse à pena fazer como a Turquia e a Bulgária, que venderam caro os seus apoios”, disse brincando um diplomata africano. Em termos de prostituição de convicções, a Bulgária se deu muito bem. O primeiro-ministro búlgaro, Simeão de Saxe-Coburg-Gotha, o ex-rei Simeão II, foi recebido na Casa Branca com pompa que seus patrícios não viam desde os tempos da monarquia. É claro que houve quem se lembrasse de que a Bulgária chegou a cogitar de sua transformação em 16ª República da então União Soviética, na época em que o país servia a outro patrão. Os ex-satélites soviéticos, diga-se, aderiram com gosto ao american way of life. Da República Tcheca, passando por Romênia e Polônia, até a Lituânia, todos juram que são busheanos desde criancinhas. Tanto que uma irônica inversão aconteceu no mundo da diplomacia de hoje: o ex-Pacto de Varsóvia agora está na esfera de influência dos EUA, enquanto Alemanha, França, que pertencem à Otan (aliança militar ocidental) estão fora do círculo de aliados preferenciais.

Outra área de influência que está se voltando contra o presidente Bush está situada no campo doméstico. Sua popularidade, ainda que se mantenha além dos 60%, já dá sinais de desgaste. Na terça-feira, 25, os índices que registram a confiança dos consumidores americanos apresentaram seu nível mais baixo desde 1993, desabando 14,8 pontos para o baixo patamar de 60,5. Trata-se do terceiro mês consecutivo de queda das intenções imediatas de compras – que representam dois terços da economia do
país. Também pudera, com o galão (equivalente a 3,8 litros) de gasolina apresentando seu maior preço (mínimo de US$ 1,66) desde o verão
de 1998. Some-se a estas más notícias a certeza de que o déficit resultante da política econômica do governo está prometendo repetir,
ou ultrapassar, o gigantismo brutal dos recordes conseguidos por Ronald Reagan nos anos 80. Num momento em que dois milhões de pessoas perdem seus empregos mensalmente, elevando o nível de desemprego para picos semelhantes aos da época da crise do petróleo, e com 49
dos 50 Estados americanos em situação de penúria, é de se admirar
que o presidente se mantenha popular. “Os bushies (gente do governo Bush) sabem muito bem que a popularidade desta guerra e do presidente estão numa curva descendente. Se não criarem um fato novo que
inverta esta tendência, a campanha de reeleição no ano que vem será uma corrida montanha acima”, diz Evan Chass, marketeiro do Partido Democrata em Nova York. “É preciso que a guerra venha logo. Em
tempos de guerra, o povo americano se une em torno de seu presidente. Quando as bombas começarem a cair em Bagdá, Bush começará
a subir em Washington”, diz Chass.

O raciocínio tem lógica, mas a história está repleta de cadáveres políticos de presidentes que perderam as graças do povo americano, mesmo os tendo liderado durante a guerra. Além de Johnson, outro nome serve como exemplo: George Bush, pai. Teve altíssimos níveis de popularidade durante a campanha Tempestade no Deserto, também no Iraque, para depois perder as eleições para seu oponente Bill Clinton, aquele candidato cujo lema era: “É a economia, estúpido.” Se os níveis econômicos de agora continuarem anêmicos ou piorarem, como prevêem vários economistas que apostam em custos entre US$ 100 bilhões e US$ 200 bilhões nesta aventura no deserto, não haverá solidariedade que sustente o presidente atual. Pode acontecer o que vaticinou outro analista da vida americana, o escritor Gore Vidal, que previu a saída de W. Bush do governo em 2005, sob o rótulo de “o presidente mais impopular da história dos Estados Unidos”.

Trincheira virtual

Pela primeira vez na história, os agentes dos serviços de inteligência americanos CIA e FBI, dos órgãos de espionagem britânicos MI-5 e MI-6 e do serviço secreto francês estão envolvidos numa guerra anunciada. As armas não são de fogo. São micro e supercomputadores altamente sofisticados. “Pela velocidade das mensagens transmitidas, a internet virou um poderoso e perigoso instrumento de propaganda de guerra e contra a guerra”, diz o estrategista Clóvis Brigagão, da Universidade Cândido Mendes. “A guerra eletrônica já começou, mas deve se intensificar quando começarem as ações bélicas”, prevê o general Carlos Eduardo Jansen, estrategista do Exército brasileiro.

A preocupação dos serviços de espionagem é com a possibilidade de hackers promoverem ações terroristas em cidades americanas ou européias. Hoje, todos os serviços essenciais desses países, entre eles o abastecimento de água e de luz, estão interligados em redes conectadas à internet. É um ambiente propício a ataques. “A partir de um computador é possível causar um blecaute, desestabilizar o sistema financeiro ou interferir na rede de telecomunicações de um país”, exemplifica Fernando Nery, um especialista em segurança.

O lado bom da internet é sua capacidade de mobilização. Foi através das mensagens eletrônicas que se organizaram as marchas pela paz, que reuniram seis milhões de pessoas em 600 cidades no sábado 15. Na semana passada, testou-se uma nova modalidade de protesto, a marcha virtual. Ao longo da quarta-feira 26, a ONG americana Ganhe sem Guerra comandou um protesto eletrônico em que solicitava que se bombardeasse de e-mails, faxes e telefonemas a Casa Branca e o Senado dos EUA. Tudo com uma única declaração: “Não ataquem o Iraque.” A estimativa é que cerca de 500 mil pessoas tenham se registrado na marcha e que um número semelhante tenha participado do protesto sem se cadastrar. Cada pessoa se comprometia a dar três telefonemas durante o dia. Resultado: quem tentou ligar para o Senado escutava uma gravação pedindo para retornar a ligação mais tarde porque todas as linhas estavam ocupadas.

Hélio Contreiras e Lia Vasconcelos